14. A revelação e a descoberta do significado esponsal do corpo

1. Relendo e analisando a segunda narrativa da criação, isto é, o texto javista, devemos perguntar-nos se o primeiro homem (‘adam), na própria solidão original, “vivia” o mundo verdadeiramente como dom, com atitude conforme à condição efetiva de quem recebeu um dom, tal como se conclui da narrativa do capítulo primeiro. A segunda narrativa mostra-nos, de fato, o homem no jardim do Éden (cfr. Gênesis 2,8); mas devemos observar que, até nesta situação de felicidade original, o mesmo Criador (Deus Javé) e depois também o “homem”, em vez de sublinharem o aspecto do mundo como dom subjetivamente beatificante, criado para o homem (cfr. a primeira narrativa e em particular Gênesis 1,26-29), fazem notar que o homem está “só”. Já analisamos o significado da solidão original; agora é, porém, necessário notar que pela primeira vez aparece claramente certa carência de bem: “Não é conveniente que o homem (varão) esteja só” — diz Deus Javé — “vou dar-lhe um auxiliar” (Gênesis 2,18). A mesma coisa afirma o primeiro “homem”; também ele, depois de tomar consciência até ao fundo da própria solidão entre todos os seres vivos sobre a terra, espera um “auxiliar que lhe fosse igual” (cfr. Gênesis 2,20). De fato, nenhum destes seres (animalia) oferece ao homem as condições de base, que, tornem possível estar em relação de dom recíproco.

2. Assim, pois, estas duas expressões, isto é o adjetivo “só” e o substantivo “auxiliar”, parecem ser verdadeiramente a chave para se compreender a essência mesma do dom a nível do homem, como conteúdo existencial inscrito na verdade da “imagem de Deus”. Com efeito, o dom revela, por assim dizer, uma característica particular da existência pessoal; mais, da existência mesma da pessoa. Quando Deus Javé diz que “não é conveniente que o homem esteja só” (Gênesis 2,18), afirma que “sozinho” o homem não realiza totalmente esta essência. Apenas a realiza existindo “com outrem” — e ainda mais profunda e completamente extinto “para outrem”. Esta norma do existir como pessoa aparece no Livro do Gênesis como característica da criação, precisamente mediante o significado destas duas palavras: “só” e “auxiliar”. São elas precisamente que indicam quão fundamental e constitutiva para o homem é a relação e a comunhão das pessoas. Comunhão das pessoas significa existir num recíproco “para” numa relação de recíproco dom. E esta relação é exatamente o fim da solidão original do “homem”.

3. Tal fim é, na sua origem, beatificante. Sem dúvida está implícito na felicidade original do homem, e justamente constitui aquela felicidade que pertence ao mistério da criação realizada por amor, isto é, pertence à essência mesma do dar criador. Quando o homem-“varão”, desperto do sono genesíaco, vê a mulher dele tirada, diz: “esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gênesis 2,23). Estas palavras exprimem, em certo sentido, o início subjetivamente beatificante da existência do homem no mundo. E dar-se isto “ao princípio” confirma o processo de individuação do homem no mundo, e nasce por assim dizer, da profundidade mesma da sua solidão humana, que ele vive como pessoa diante de todas as outras criaturas e de todos os seres vivos (animalia). Logo também este “princípio” pertence a uma antropologia adequada e pode sempre ser verificado com base nela. Esta verificação puramente antropológica leva-nos, ao mesmo tempo, ao tema da “pessoa” e ao tema do “corpo-sexo”. Esta contemporaneidade é essencial. Se, de fato, tratássemos do sexo sem a pessoa, ficaria destruída toda a adequação da antropologia, que encontramos no livro do Gênesis. E para o nosso estudo teológico ficaria então velada a luz essencial da revelação do corpo, que nestas primeiras afirmações transparece com tanta plenitude.

4. Há nexo íntimo entre o mistério da criação, como dom que brota do Amor, e aquele “princípio” beatificante da existência do homem como homem e mulher, em toda a verdade do corpo e do sexo em ambos, que é pura e simples verdade de comunhão entre as pessoas. Quando o primeiro homem, à vista da mulher, exclama: é osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gênesis 2,23), afirma simplesmente a identidade humana dos dois. Com esta exclamação parece dizer: eis um corpo que exprime a pessoa! Seguindo uma passagem precedente do texto javista, pode-se dizer também: este “corpo” revela a “alma viva”, como ficou sendo o homem quando Deus Javé lhe insuflou o sopro da vida (Gênesis 2,7), pelo qual se iniciou a própria solidão diante dos outros seres vivos. Atravessando precisamente a profundidade dessa solidão original, o homem surge agora na dimensão do dom recíproco, cuja expressão — que por isso mesmo é expressão da sua existência como pessoa — é o corpo humano em toda a verdade original da sua masculinidade e feminilidade. O corpo, que exprime a feminilidade “para” a masculinidade e vice-versa a masculinidade “para” a feminilidade, manifesta a reciprocidade e a comunhão das pessoas. Exprime-a por meio do dom como característica fundamental da existência pessoal. Este é o corpo-testemunha da criação como dum dom fundamental, portanto testemunha do Amor como origem de que nasceu este mesmo dar. A masculinidade-feminilidade — quer dizer, o sexo — é o sinal original duma doação criadora e duma tomada de consciência por parte do homem, varão e mulher, dum dom vivido, por assim dizer, de modo original. Tal é o significado com que entra o corpo na teologia do corpo.

5. Aquele “início” beatificante do ser e do existir do homem, como homem e mulher, está ligado com a revelação e com a descoberta do significado do corpo, que é oportuno chamar “esponsal”. Se falamos de revelação e ao mesmo tempo de descoberta, fazemo-lo em relação com a especificidade do texto javista, no qual o fio teológico é também antropológico; mais, aparece como certa realidade conscientemente vivida pelo homem. Já observamos que às palavras que exprimem a primeira alegria da comparência do homem na existência como varão e mulher (Gênesis 2,23) segue o versículo que estabelece a unidade conjugal de ambos (Gênesis 2,24), e depois o que atesta a nudez dos dois, destituída de vergonha recíproca (Gênesis 2,25). E justamente este significativo confronto que nos permite falar da revelação e ao mesmo tempo da descoberta do significado “esponsal” do corpo no mistério mesmo da criação. Este significado (enquanto revelado e também consciente, “vivido” pelo homem) confirma até ao fundo que o dar criador, que deriva do Amor, atingiu a consciência original do homem, tornando-se experiência de dom recíproco, como se percebe já no texto arcaico. Disto parece também dar testemunho — talvez até de modo específico — aquela nudez dos primeiros pais, ambos, nudez isenta de vergonha.

6. Gênesis 2,24 fala da finalização da masculinidade e feminilidade do homem, na vida dos cônjuges-pais. Unindo-se entre si tão intensamente que se tornam “uma só carne”, estes submeterão, em certo sentido, a sua humanidade à bênção da fecundidade, isto é, da “procriação”, de que fala a primeira narrativa (Gênesis 2, 28). O homem entra “no ser” com a consciência desta finalização da própria masculinidade-feminilidade, isto é, da própria sexualidade. Ao mesmo tempo, as palavras do Gênesis 2,25“Estavam ambos nus (…) mas não sentiam vergonha” – parecem acrescentar a esta verdade fundamental do significado do corpo humano, da sua masculinidade e feminilidade, outra verdade não menos essencial e fundamental. O homem, consciente da capacidade procriativa do próprio corpo e do próprio sexo, está ao mesmo tempo livre da “constrição” do próprio corpo e sexo. Aquela nudez original, recíproca e ao mesmo tempo não sujeita à vergonha, exprime a liberdade interior do homem. E a liberdade do “instinto sexual”? O conceito de “instinto” implica já uma constrição interior, de maneira análoga ao que sucede com o instinto que estimula a fecundidade e a procriação em todo o mundo dos seres vivos (animalia). Parece todavia que ambos os textos do Livro do Gênesis, a primeira e a segunda narrativa da criação do homem, relacionam suficientemente a perspectiva da procriação com a fundamental característica da existência humana em sentido pessoal. Por conseguinte, a analogia do corpo humano e do sexo diante do mundo dos animais — que podemos chamar analogia “da natureza” — em ambas as narrativas (embora em cada uma a seu modo) é analogia elevada, em certo sentido, a nível de “imagem de Deus”, e a nível de pessoa e de comunhão entre as pessoas.

A este problema essencial será preciso dedicar ainda outras análises. Para a consciência do homem — mesmo do homem contemporâneo — é importante saber que nestes textos bíblicos, que falam do “princípio” do homem, se encontra a revelação do “significado esponsal do corpo”. Mais importante é porém ainda estabelecer que é que exprime propriamente este significado.

  • Fonte: Vaticano, Audiência de 09.01.1980.
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