3. A Caridade

– “Meu Deus:
com todo o coração e acima de todas as coisas Vos amo,
bem infinito e nossa eterna felicidade,
e por vosso amor amo o meu próximo como a mim mesmo
e perdôo as ofensas recebidas.
Ó Senhor:
ame-vos eu cada vez mais”.

É oração conhecidíssima, com expressões bíblicas embutidas. Foi minha mãe que me ensinou. Rezo-a várias vezes por dia, mesmo agora, e procuro explicar-vo-la, palavra por palavra, como faria um catequista de paróquia. Estamos na “terceira lâmpada de santificação” do Papa João [XXIII]: a caridade.

“Amo” – Na aula de filosofia dizia-me o professor: “Tu conheces a torre de São Marcos?”. [Respondi-lhe:] “Conheço”. [Retrucou ele:] “Isso significa que ela entrou de algum modo na tua mente: fisicamente ficou onde estava, mas no teu íntimo ela imprimiu quase um retrato seu, intelectual. Mas tu, por tua vez, amas a torre de São Marcos? Significa isto que aquele retrato te impele de dentro e te inclina, quase te leva e te faz ir, com o espírito, até à torre que está fora.

Em uma palavra: “amar” significa “viajar, correr com o coração para o objeto amado”. Diz a “Imitação de Cristo”: quem ama “currit, volat, laetatur”: “corre, voa e alegra-se” (Imitação de Cristo 1,3,c.5,n.4).

Amar a Deus é portanto um viajar com o coração para Deus. Viagem belíssima, embora comporte por vezes sacrifícios. Mas estes não nos devem fazer parar. Jesus está na cruz: queres beijá-Lo? Não o podes fazer sem que te debruçares sobre a cruz e deixar que te fira algum espinho da coroa que está na cabeça do Senhor (cfr. Sales, Oeuvres, Annecy, t. 21. p. 153).

Não podes fazer a figura do bom São Pedro, que foi valente em gritar “Viva Jesus” no monte Tabor, onde havia alegria, mas não deixou sequer que o vissem ao lado de Jesus no monte Calvário, onde havia risco e dor (Ibidem, t. 25, p. 140).

O amor a Deus é também viagem misteriosa, isto é, eu não parto se Deus não toma primeiro a iniciativa. Disse Jesus:

– “Ninguém pode vir a Mim, se o Pai… não o atrair” (Jo. 6,44).

Perguntava Santo Agostinho a si mesmo:

– “Mas, então, e a liberdade humana? Deus, que decidiu que ela existisse e construiu essa liberdade, sabe muito bem como respeitá-la, levando embora os corações ao ponto que tinha em vista: ‘parum est voluntate, etiam voluptate traheris’; Deus atrai-te não só de modo que tu mesmo venhas a querer, mas até de modo que tu gostes de ser atraído” (In Io. Evang. Tr. 26,4).

“Com todo o coração” – Faço notar, aqui, o adjetivo “todo”. O totalitarismo, em política, é feio. Na religião, pelo contrário, um totalitarismo nosso, quanto a Deus, está muitíssimo bem. Foi escrito:

– “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos, que hoje te imponho, serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás aos teus filhos e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-te ou ao levantar-te. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço, e usá-los-ás como um frontal entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre os pilares da tua casa e sobre as tuas portas” (Deut. 6,5-9).

Aquele “todo”, repetido e levado à prática com tanta insistência, é com toda a verdade a bandeira do maximalismo cristão. E é justo: Deus é demasiado grande, demasiado merece de nós, para que baste deitar-lhe, como a um pobre Lázaro, unicamente algumas migalhas do nosso tempo e do nosso coração. Bem infinito, será a nossa felicidade eterna. Dinheiro, prazeres e felicidades deste mundo, em comparação com Ele, são apenas fragmentos de bem e momentos fugidios de felicidade. Não seria acertado dar muito de nós a estas coisas e dar pouco a Jesus.

“Acima de todas as coisas” – Agora entra-se numa comparação direta entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. Não seria justo dizer: “Ou Deus ou o homem”. Deve-se amar “não só a Deus mas também o homem”; este último, porém, nunca mais do que Deus ou contra Deus ou tanto como Deus. Por outras palavras: O amor de Deus é certamente dominador, mas não exclusivo.

A Bíblia declara Jacó santo (Dan. 3,35) e amado por Deus (Mal. 1,2; Rom. 9,13); mostra-o comprometido a sete anos de trabalho para conquistar Raquel como esposa; e pareceram-lhe poucos dias aqueles anos, tão grande era o amor que por ela sentia (Gên. 29,20). Francisco de Sales tece sobre estas palavras um comentariozinho. Escreve:

– “Jacó ama Raquel com todas as suas forças, e, com todas as suas forças ama a Deus; mas nem por isso ama Raquel como a Deus, nem a Deus como a Raquel. Ama a Deus como seu Deus sobre todas as coisas e mais que a si mesmo; ama Raquel como sua esposa acima de todas as outras mulheres e como a si mesmo. Ama a Deus com amor absolutamente e soberanamente sumo, e Raquel com sumo amor marital; um amor não é contrário ao outro, porque o de Raquel não inutiliza as vantagens supremas do amor de Deus” (Oeuvres, t.5, p. 175).

“E por vosso amor amo o meu próximo” – Estamos aqui diante de dois amores que são “irmãos gêmeos” e inseparáveis. A algumas pessoas é fácil amá-las; a outras, é difícil: não nos são simpáticas, ofenderam-nos e fizeram-nos mal. Só se amo Deus a sério, chego amar a elas como filhas de Deus e porque Deus me pede. Jesus fixou também como deve o próximo ser amado; quer dizer, não só com o sentimento, mas com obras. Este é o modo, disse:

– “Perguntar-vos-ei: ‘Tinha fome, e vós destes-me de comer quando assim estava faminto? Visitastes-me quando estava doente?'” (cf. Mt. 25,34ss.).

O catecismo traduz estas e outras palavras da Bíblia no duplo catálogo das sete obras de misericórdia corporais e sete espirituais. O catálogo não é completo e convinha atualizá-lo. Entre os famintos, por exemplo, hoje não se trata só deste ou aquele indivíduo; são povos inteiros. Todos nos lembramos das notáveis palavras do Papa Paulo VI:

– “Os povos da fome dirigem-se hoje de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão” (Populorum Progressio 3).

Neste ponto, à caridade junta-se a justiça, porque diz ainda Paulo VI:

– “A propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário” (Ibid., 23).

Por conseguinte, “torna-se escândalo intolerável… qualquer recurso exagerado aos armamentos” (Ibid., 53).

À luz destas vigorosas expressões vê-se o quanto indivíduos e povos estão ainda longe de amar os outros “como a si mesmos”, que é mandamento de Jesus.

Outro mandamento:

“Perdôo as ofensas recebidas” – A este perdão quase parece que o Senhor dá precedência sobre o culto:

– “Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta” (Mt. 5,23-24).

As últimas palavras da oração são estas:

“Ó Senhor, ame-vos eu cada vez mais – Também aqui há obediência a um mandamento de Deus, que estabeleceu no nosso coração a sede do progresso. Das palafitas, das cavernas e das primeiras cabanas passamos às casas, aos palácios e aos arranha-céus; das viagens a pé e sobre o dorso de mula ou de camelo, aos carros, aos trens e aos aviões. E deseja-se progredir ainda com meios cada vez mais rápidos, atingindo metas mais e mais altas. Mas amar a Deus — já o vimos — é também uma viagem: Deus quer que ela seja cada vez mais decidida e perfeita. Disse a todos os seus:

– “Vós sois a luz do mundo, o sal da terra” (Ibid.. v. 8); “sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Ibid. v. 48).

Isto significa: amar a Deus não pouco, mas muito; não parar no ponto a que se chegou, mas, com o Seu auxílio, progredir no amor.

  • Fonte: Vaticano, audiência de 27 de Setembro de 1978 (João Paulo I)
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