A DECADÊNCIA DE UM IMPÉRIO

Dias atrás, assistindo a um dos programas jornalísticos que agora inundam nossa televisão a partir das 21 horas nos dias da semana, ouvi uma frase que acredito poder ser axiomática para definir o final do [segundo] milênio: “Eu, por motivos óbvios de idade, não tive a oportunidade de assistir à decadência do Império Romano; porém, tenho a sorte de presenciar o que ocorre agora, que é mais ou menos a mesma coisa…”

É claro que, como basta recorrer à memória para comprová-lo, a decadência do Império Romano não foi um fenômeno de final de milênio, mas fruto da corrupção de um projeto cultural que, tendo podido florescer transcedendo-se a si mesmo, se encerrou na contemplação de si próprio; um projeto que, no momento que precisava da transcedência para dar um novo sentido ao seu desenvolvimento histórico, negou-a para aderir à atitude auto-contemplativa, de prazer e bem-estar.

Afirmo isto porque um dos sintomas que alguns consideram como sintoma de uma crise de final de milênio é a aparição de múltiplos, variados e inesgotavelmente férteis movimentos religiosos; e, na verdade, creio que estes são sintomas de algo mais profundo: um processo de degradação e dissolução cultural que está começando a entrar em uma fase terminal.

É certo que as “seitas” ou movimentos anárquicos que tendem a aumentar a experiência religiosa de um povo têm existido e sempre existiram. Também é certo que alguns projetos culturais, como o hindu e o budista, convivem com a presença de centenas de grupos sectários; porém, o que é distintivo em nossa conjuntura cultural é a impossibilidade crescente que se experimenta para identificar nosso projeto cultural (que já não sabemos se é ocidental e cristão, ocidental puro ou outra coisa qualquer) com uma opção transcendente.

Ninguém pode negar as alternativas de variedade que experimentou a antiga religiosidade egípcia, porém, também é certo que é possível definir um esquema religioso próprio da cultura egípcia. Já falamos da multiplicidade de seitas no hinduísmo, porém, igualmente podemos definir claramente qual é o eixo transcendental que dá consistência à cultura hindu. Ao contrário, qual é o eixo transcendental que estrutura a nossa cultura ocidental (ou como quer que se chame) hoje?

Certamente que já teve algum; porém, a pergunta chave é: tem ainda hoje? Porém… o tem como uma mera resposta teórica ou como uma realidade plenamente constatável nas entranhas do povo, que é o sujeito dessa cultura e em suas elites dirigentes?

Se não refletimos sobre estes pontos, dificilmente poderemos nos dar conta de onde se encontra a verdadeira gravidade da presença do reverendo Moon em nosso país (=Argentina), porque evidentemente se trata ainda de um grupo pequeno na realidade religiosa argentina, com idéias extravagantes… porém, você já percebeu que a informação sobre a sua presença foi publicada na seção “política” dos pricipais jornais? Mas como? Não se tratava de um líder religioso?

Se você prestou atenção no desenrolar dos acontecimentos, talvez tenha percebido que não se parava de tentar esclarecer a dificuldade de sua visita: para os setores da esquerda, era preocupante que o grupo lutasse contra o marxismo, constituindo isto um dever religioso; para os setores nacionalistas, era alarmente que o projeto possuísse forte cultura coreana…

Entretanto, a abordagem religiosa ficou quase que exclusivamente a cargo da Igreja Católica, como se realmente o povo da nação argentina, cristão e católico por herança e eleição de origem, não tivesse o verdadeiro direito de se preocupar pela agressão de um senhor que se diz ser o Messias, mais caridoso que o próprio Jesus Cristo e que nega a divindade do mesmo Jesus de Nazaré, cuja fé iluminava e orientava os patriotas de Maio, os congressistas de Tucumán, os constituintes de 1953 e – talvez – os constituintes da última reforma.

O reverendo Moon é um exemplo do que significa nossa crise cultural: sincrético, teocrático, totalitário, sustenta descaradamente a unificação de todos os poderes em sua pessoa, se proclama abertamente o guia da humanidade e deslumbra aos que se consideram “os poderosos da terra”.

[Sun Myung Moon] não deve ser visto como um fóssil raro pertencente às realidades alheias à nossa; devemos ter consciência de que [sua proposta é a mesma] que está nucleando políticos de todo o Ocidente, jornalistas, acadêmicos, professores…

Que mais precisamos para ter consciência do risco de implosão que corre a nossa cultura?

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