A Igreja Católica proibiu a leitura da Bíblia?

Os protestantes serviram-se de um suposto impedimento da leitura do Texto-Sacro para advogar o Livre-Exame da Bíblia. Mas… alguma vez a Igreja romana proibiu a leitura do Texto Sacro? Abaixo, apresento trechos de um estudo de Dom Estevão Bittencourt nos ilustra profusamente a respeito do tema.

Até o século XVI

Por toda a Antigüidade o Livro Sagrado era recomendado à leitura dos cristãos. São Jerônimo (+420) é um dos mestres que melhor representam esta atitude pastoral, escrevendo a Eustóquio, filha de Santa Paula:

“Lê com freqüência e aprende o melhor que possas. Que o sono te encontre com o livro nas mãos e que a página sagrada acolha o teu rosto vencido pelo sono” (PL 22,404).

Na Idade Média apareceram correntes dualistas e heréticas que se valiam da Bíblia para apoiar suas concepções errôneas. Tal foi, por exemplo, o caso dos cátaros, avessos à matéria como se esta fosse, por si mesma, má. Em conseqüência, o Concílio de Tolosa (França) em 1229 proibiu o uso de traduções vernáculas da Bíblia. Esta disposição foi retirada pelo Concílio de Tarragona (Espanha) em 1233. A mesma proibição aparece num decreto do rei Jaime I da Espanha em 1235: “Ninguém possua em vernáculo os livros do Antigo e do Novo Testamento”.

No século anterior, os Valdenses (de Pedro Valdo, Pierre de Vaux) apoiavam-se na Bíblia traduzida para o provençal a fim de negar o purgatório, o culto dos Santos, o serviço militar, o juramento…; só admitiam os sacramentos do Batismo, da Penitência e da Eucaristia. (…)

Eis por que o Concílio de Trento (1543-65) tomou medidas que preservassem os fiéis católicos dos males acarretados pelas proposições dos reformadores; assim:

Declarou autêntica (isenta de erros teológicos) a Vulgata latina, tradução devida a São Jerônimo (+420) e muito difundida entre os cristãos. Assim se dissiparia a confusão existente entre clérigos e leigos, que, em meio a múltiplas traduções, já não sabiam encontrar a pura mensagem bíblica. O Concílio não quis afirmar que a tradução da Vulgata é lingüisticamente perfeita, mas tomou uma providência necessária no século XVI;

Rejeitou o princípio do livre exame da Bíblia. Esta só pode ser entendida se iluminada por instâncias objetivas, especialmente pela Tradição, que o magistério da Igreja formula com a assistência do Espírito Santo;

Proibiu edições da Bíblia sem o nome do autor responsável pela edição. Proibiu também a difusão do texto bíblico sem a autorização do Bispo diocesano;

Estimulou o reflorescimento dos estudos bíblicos nos colégios, conventos e mosteiros.

O Concílio de Trento definiu mais uma vez o Cânon Bíblico incluindo o deuterocanônicos (Tobias, Judite, Sabedoria, Baruc, Eclesiástico, I e II Macabeus), como já o tinham feito os Concílios do século IV. A prova de que o Concílio nada inovou é que o próprio Lutero traduziu os deuterocanônicos para o alemão; com efeito, na sua edição da Bíblia datada de 1534 encontra-se o texto dos sete deuterocanônicos, assim como os fragmentos de Ester 10,4-16,24, de Daniel 3,24-90; 13,1-14,42 e ainda a “Oração de Manasses” (Oração que a Tradição cristã não incluiu no seu cânon). A persistência desses livros nas edições protestantes bem mostra que não foi o Concílio de Trento que os introduziu no catálogo bíblico, mas Lutero e a Tradição protestante os receberam na Tradição cristã medieval e antiga ou mesmo dos judeus de Alexandria. Foi somente no século XIX que as Sociedades Bíblicas protestantes deixaram de incluir nos seus exemplares da Bíblia os livros deuterocanônicos. (…)

No século XX

Em 1920, o Papa Bento XV quis comemorar o 15º centenário da morte de São Jerônimo publicando a encíclica Spiritus Paraclitus, na qual escreveu:

“Pelo que Nos toca, Veneráveis Irmãos, à imitação de São Jerônimo jamais deixaremos de exortar todos os fiéis cristãos a que leiam todos os dias principalmente os Santos Evangelhos de Nosso Senhor, os Atos e as epístolas dos Apóstolos, tratando de convertê-los em seiva do seu espírito e em sangue de suas veias” (Enquirídio Bíblico nº 477).

Quanto às disposições para bem aproveitar a leitura bíblica, o Pontífice as resumia nestes termos:

“Todo aquele que se aproxima da Bíblia com espírito piedoso, fé firme, ânimo humilde e sincero desejo de aproveitar, nela encontrará e poderá degustar o pão que desce dos céus”.

A atitude de Bento XV representava algo de novo na Igreja posterior ao Concílio de Trento, mas estava na linha de conduta pastoral do Papa anterior, São Pio X. Pouco mais de dois decênios decorridos, o Papa Pio XII, na sua encíclica Divino Afflante Spiritu, recomendava por sua vez a difusão da Bíblia entre os fiéis:

“Os prelados favoreçam e prestem ajuda às piedosas associações cuja finalidade é difundir entre os fiéis os exemplares das Sagradas Letras, principalmente dos Evangelhos, e procurem que nas famílias cristãs se faça ordenada e santamente a leitura diária das mesmas; recomendem eficazmente a Santa Escritura traduzida para as línguas vernáculas com a aprovação da Igreja”

A orientação dos Pontífices foi assumida pelo Concílio do Vaticano II (1962-65), especialmente em sua Constituição Dei Verbum, c.6, que trata da Sagrada Escritura na vida da Igreja: um forte estímulo aí é dado à frequentação cotidiana da Escritura por parte dos fiéis, como também à difusão do texto sagrado em línguas vernáculas:

“Este Sagrado Concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os Religiosos, a que aprendam a eminente ciência de Jesus Cristo (Filipenses 3,8) mediante a leitura freqüente das Divinas Escrituras, porque a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo. Debrucem-se, pois, gostosamente sobre o texto sagrado, quer através da Sagrada Liturgia, rica de palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros meios que se vão espalhando…, com a aprovação e o estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém, de que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração, para que seja possível o colóquio entre Deus e o homem; com Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos.

Compete aos sagrados pastores, depositários da doutrina apostólica, instruir oportunamente os fiéis que lhes foram confiados, no reto uso dos livros divinos, de modo particular do Novo Testamento, e sobretudo nos Evangelhos. E isto por meio de traduções dos textos sagrados, que devem ser acompanhados de notas necessárias e verdadeiramente suficientes para que os filhos da Igreja se familiarizem de modo seguro e útil com a Sagrada Escritura e se embebam do seu Espírito” (nº 25).

Com se vê, não poderia ser mais favorável ao uso da Sagrada Escritura a atitude da Igreja contemporânea. As palavras de São Jerônimo (+420) tornaram-se norma da autoridade eclesiástica. As restrições foram impostas não ao texto latino, mas às traduções vernáculas, em virtude de fatores contingentes; a Igreja, como Mãe e Mestra, sente o dever de zelar pela conservação incólume da fé a Ela entregue por Cristo e ameaçada pelas interpretações pessoais de inovadores da pregação; eis por que lhe pareceu oportuno reservar o uso da Bíblia a pessoas de sólida formação cristã nos séculos em que as heresias pretendiam apoiar no texto sagrado as suas proposições perturbadoras. É, pois, para desejar que os estudiosos entendam os porquês da atitude da Igreja no século XVI-XIX e hoje se sintam convidados a difundir a Sagrada Escritura em comunhão com a Igreja e a Santa Tradição.

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