A Igreja e a viuvez

– “Em que se baseia a Igreja para aconselhar às viúvas que não se casem novamente?” (Platão – Rio de Janeiro-RJ).

Foi o Santo Padre Pio XII quem moveu recentemente a questão – antiga na Igreja – do valor da viuvez. Aos 16 de setembro de 1957, dirigindo-se aos membros de um Congresso da União Internacional de Famílias, Sua Santidade houve por bem explanar um aspecto do tema estudado nesse certame: «A família destituída de pai». Entendia o Papa focalizar o papel da viúva cristã na sociedade e na Igreja, principalmente o da senhora que, ainda jovem, perca o marido e se veja a braços com a tarefa de educar a prole. Eis aqui o pensamento do Santo Padre, que exprime autenticamente o da Santa Igreja.

Pio XII reagia, antes do mais, contra o sentimento de tristeza, humilhação e contra a atitude de resignação passiva e desanimada que o nome de viúva desperta em não poucas senhoras, a ponto de quererem ocultar ou desfazer a sua condição de viúvas:

– “Reação normal aos olhos de muitos, mas, digamo-lo bem claramente, reação pouco cristã. (…) Deve-se ao desconhecimento das realidades mais autênticas”, observou o Pontífice.

Com efeito, a viuvez como tal sempre foi tida em alta estima no Cristianismo. Já Cristo, em sua vida mortal, lhe testemunhava particular benevolência, haja vista o elogio que pronunciou em favor da viúva que oferecera apenas duas moedinhas em esmola no templo:

– “Em verdade, eu vo-lo digo: esta pobre viúva deu mais do que todos os outros” (Lucas 21,2-3).

Mostrou-se [Jesus] profundamente compreensivo também para com a viúva de Naim, cujo filho Ele ressuscitou (cf. Lucas 7,11-16); quis, enfim, ser reconhecido e proclamado pela viúva que passava seus dias em jejum e oração no templo (cf. Lucas 2,36-38).

Os Apóstolos e os antigos cristãos tributavam análoga deferência às viúvas (cf. 1Timóteo 5,9-16). Aquelas que tivessem atingido a idade de 60 anos e fizessem o propósito de permanecer viúvas até o fim da vida, comportando-se irrepreensivelmente, constituíam uma categoria própria oficialmente reconhecida na Igreja, categoria à qual a comunidade cristã prestava assistência material e espiritual. Eram-lhes especialmente recomendadas as boas obras, entre as quais a hospitalidade, o serviço de indigentes e principalmente a oração:

– “Aquela que realmente é viúva e isolada, colocou sua esperança em Deus e persevera noite e dia em súplicas e preces” (1Timóteo 5,5).

Vê-se, assim, que São Paulo e a antiga Igreja tendiam a fazer da viuvez um estado especialmente consagrado a Deus, propondo-lhe o ideal da vida una, indivisa, vida que é característica do estado virginal; a viúva, destarte, procuraria imitar o ideal sublime da virgindade, depois de haver passado pelo matrimônio. Claro está que, propondo este programa, o Apóstolo não intencionava proibir as segundas núpcias; ao contrário, recomendava-as a quem não se pudesse conduzir condignamente sem elas (cf. 1Timóteo 5,14; 1Coríntios 7,9.39-40).

É em vista destas riquezas espirituais da viuvez que o Santo Padre deseja restaurar a estima a tal estado, impugnando a mentalidade pouco cristã ou pagã que julga frustrada a condição de uma viúva. Como se vê, Pio XII não faz senão incutir um tema clássico na Igreja ou uma doutrina bíblica, talvez dificilmente compreensível para a mentalidade moderna, inclinada ao gozo.

Sua Santidade, no discurso citado, ilustra a grandeza da viuvez ainda por outra via, também inspirada por São Paulo: se o matrimônio cristão é imagem e participação das núpcias de Cristo com a Igreja (cf. Efésios 5,22-23; 1Coríntios 11,3-9), o estado da viúva é, de maneira particularmente rica, sinal e imitação da Igreja posta nas circunstâncias da vida presente. Sim, Cristo subtraiu à Igreja sua presença sensível, foi-se corporalmente para a mansão celeste, deixando-a aparentemente só aqui na terra (embora Ele lhe assista intimamente); a Igreja, assim, pode ser ilustrada pela imagem da viúva (aliás, na parábola de Lucas 18,1-8, a viúva é tida como símbolo da Igreja).

A viúva cristã, permanecendo fiel ao falecido esposo, sem procurar segundas núpcias, proclama de novo modo o valor do sacramento do matrimônio; afirma em novo tom que de fato este é miniatura da união de Cristo com a sua Igreja. Na realidade, a alma do marido defunto não morre, mas continua a viver junto a Deus na pátria eterna; por conseguinte, o amor que o cônjuge dedica à sua consorte aqui na terra, não se extingue pela morte mas, ao contrário, torna-se ainda mais puro, porque isento de todas as fraquezas e escórias do egoísmo; a viúva que em sua fé cristã tenha consciência disto, pode consequentemente continuar a viver a sua união com o falecido esposo, e continuar a vivê-la em disposições de alma ainda mais puras, mais espirituais (embora o seu casamento no plano jurídico e sensível esteja desfeito).

Eis textualmente as respectivas palavras do Santo Padre:

– “Longe de destruir os laços do amor humano e sobrenatural contraídos pelo matrimônio, a morte os pode aperfeiçoar e reforçar, sem dúvida; no terreno meramente jurídico e no das realidades sensíveis, a instituição matrimonial (após a morte de um dos cônjuges) não existe mais; mas o que constituía a alma da mesma, o que lhe dava vigor e beleza, isto é, o amor conjugal, com todo o seu esplendor e seus votos de eternidade, subsiste, como subsistem os seres espirituais e livres que se devotaram um ao outro (…) Pela aceitação da cruz, da separação, da renúncia à cara presença (do marido), trata-se, para a viúva, de conquistar outra modalidade de presença, mais íntima, mais profunda, mais forte. Presença que também será purificadora, pois quem vê a Deus face a face (isto é, a alma do cônjuge falecido) não tolera, naqueles que mais amou durante sua existência terrestre, o fechamento em si mesmos, o desânimo, as afeições vãs. Se já o sacramento do matrimônio, símbolo do amor redentor de Cristo à sua Igreja, aplica ao esposo e à esposa a realidade desse amor, os transfigura, os torna semelhantes, um ao Cristo que se entrega para salvar a humanidade, a outra à Igreja resgatada, que aceita participar no sacrifício de Cristo, então a viuvez se torna de certo modo a consumação dessa consagração mútua; ela simboliza a situação presente da Igreja militante privada da visão de seu Esposo celeste, com quem ela não obstante permanece indefectivelmente unida, encaminhando-se para Ele na fé e na esperança, vivendo do amor que a sustenta em todas as provações e esperando impacientemente o cumprimento definitivo das promessas iniciais. Tal é a grandeza da viuvez, quando é vivida como prolongação das graças do matrimônio e preparação do pleno desabrochar das mesmas na luz de Deus. Qual o precário consolo humano que jamais poderia igualar tão maravilhosas perspectivas? É preciso, porém, merecer penetrar o sentido e o alcance desta realidade e pedir a compreensão da mesma por meio de oração humilde e atenta, e pela aceitação corajosa da vontade do Senhor” (texto transcrito de «Documentation Catholique» nº 1262, de 13.10.1957, col.1287-1288).

Em resumo: a Santa Igreja não condena as segundas núpcias; quer, porém, inspirando-se na doutrina de São Paulo, chamar a atenção das viúvas para as possibilidades que seu estado lhes oferece, de cultivar mais intensamente a vida espiritual, principalmente mediante a oração e a dedicação caridosa ao próximo; o pouco que a pobre viúva possa fazer pelos seus semelhantes e pelo Reino de Deus será altamente valioso aos olhos do Senhor, desde que proceda de um coração magnânimo!

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 4 – abr/1958
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