A Instrução DIGNITAS CONNUBI para os processos matrimoniais

Em 25-I-05 foi publicada a Instrução «Dignitas connubii» sobre as normas que se devem observar nos tribunais eclesiásticos nos processos matrimoniais.

A Instrução foi preparada pelo Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, presidido pelo Cardeal Julián Herránz, em colaboração com outros Dicastérios da Santa Sé – a Congregação para a Doutrina da Fé, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica e o Tribunal Apostólico da Rota Romana –, dando cumprimento a uma indicação explícita do Papa João Paulo II em 1996.

Natureza e finalidade

Como explicava o Cardeal Herránz na apresentação no Vaticano a 8-II-05, pretende-se oferecer aos tribunais eclesiásticos «um documento de índole prática, uma espécie de vademecum, que sirva de guia imediato para um melhor cumprimento do seu trabalho nos processos canónicos de nulidade matrimonial», à semelhança da Instrução Provida Mater em relação ao Código de 1917.

Com efeito, os processos matrimoniais devem seguir determinadas normas, para garantir que se realizam segundo a justiça. No Código de Direito Canónico encontram-se as normas consideradas essenciais; no entanto, a actividade dos tribunais tem levado a interpretá-las de modos diversos e também a preencher as lacunas com critérios diversos.

A Instrução Dignitas connubii («A dignidade do matrimónio») não é um novo texto legislativo, mas quer simplesmente facilitar a consulta e a aplicação do Código de 1983. «Por um lado, apresenta unido tudo o que diz respeito aos processos de nulidade matrimonial – normas que no Código estão espalhadas em diversos lugares –, e, por outro lado, integra os desenvolvimentos jurídicos verificados depois do Código: interpretações autênticas do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, respostas do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, jurisprudência do Tribunal Apostólico da Rota Romana». Portanto, a Instrução «não se limita a repetir o texto dos cânones, mas contém interpretações, esclarecimentos sobre as disposições das leis e novas disposições sobre procedimentos para a sua execução». Deste modo, toma posição nalguns pontos discutidos na jurisprudência, deixando naturalmente margem para se continuar a acertar na procura da verdade e da justiça.

Com este documento, a Santa Sé pretende «encorajar a responsabilidade dos Bispos diocesanos», como juizes por direito divino das suas comunidades, cuidando a idoneidade dos membros do seu tribunal e assegurando a conformidade das sentenças com a recta doutrina – como recordava João Paulo II no seu último discurso à Rota Romana, em 29-I-05.

Certamente, a finalidade pastoral da Instrução é «contribuir positivamente para o bem do matrimónio e da família». A ele se opõe o contexto histórico actual, onde o hedonismo e o egoísmo subordinam tudo à satisfação individualista, sacrificando para isso a realidade familiar e matrimonial, com o divórcio e a união de facto. Deste modo, facilmente se esquece que o vínculo matrimonial – que se estabelece pela entrega e aceitação mútuas dos direitos e deveres conjugais (abertura aos filhos e fidelidade perpétua) – é essencial para o desenvolvimento da pessoa humana (os cônjuges e os filhos); pelo contrário, cada vez se dá mais importância à «felicidade» ou bem dos cônjuges, menosprezando o bem dos filhos e o bem comum eclesial.

Necessidade dos processos matrimoniais

Desde sempre, quando um  matrimónio não conseguia superar uma crise grave e um dos cônjuges desejava celebrar uma nova união matrimonial, recorria-se à autoridade eclesiástica. Nalguns casos, seguindo os ensinamentos de Jesus (Mt 5, 31-32; 19, 3-9), o bispo permitia a separação, proibindo no entanto nova união; noutros casos, além da separação, permitia nova união, por estimar que o matrimónio anterior era irregular (com o tempo, ao clarificar-se a importância do consentimento matrimonial, veio a considerar-se nulo esse matrimónio). Em qualquer caso, o matrimónio era considerado uma realidade social, reconhecida pela sociedade e pela Igreja.

Com a multiplicação destes casos e a sua complexidade, nasceu a necessidade do processo judicial canónico, continuando o bispo a ser o moderador e responsável do seu tribunal eclesiástico.

Um princípio fundamental nos processos matrimoniais é o do favor iuris: «o matrimónio goza do favor do direito» (cân. 1060). Em que consiste? Será apenas que se parte, em princípio, da validade do matrimónio celebrado, como aliás qualquer acto jurídico? Assim podia parecer, atendendo à concretização do mesmo cânon: «em caso de dúvida se há de estar pela validade do matrimónio, até que se prove o contrário».

Mas o favor iuris do matrimónio não será algo mais? Não será que as normas canónicas favorecem a validade do matrimónio celebrado e que a sua interpretação deva ir no mesmo sentido (cf. A. Bernárdez Cantón, Compendio de Derecho Matrimonial Canónico, 6.ª ed., Madrid 1989, p. 51-52)? Se houvesse normas a favorecer a nulidade dos matrimónios fracassados ou se se permitisse nesse sentido a interpretação das normas, então o favor iuris não seria o favor matrimonii mas um mal-entendido favor libertatis ou favor personae (cf. João Paulo II, Discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana, em 29-I-04).

O processo matrimonial – como todo o processo canónico – é um processo humano, portanto, falível. A responsabilidade do bispo consiste em escolher juizes competentes e de consciência recta. Mesmo assim, está disposto que, para se executar uma sentença de nulidade do matrimónio, seja necessária uma segunda sentença conforme (cân. 1682 §1; 1684 §1; 1641, 1.º) – é um exemplo do favor iuris  do matrimónio. Outro exemplo deste favor iuris é a actividade do Defensor do vínculo (cân. 1432 ss).

Como proceder se o processo canónico não consegue demonstrar a nulidade de um matrimónio e um dos cônjuges tem uma convicção profunda da sua nulidade, mais ainda se é corroborada pelo confessor ou por um canonista?

Uma resposta seria fazer notar a maior competência dos juizes do tribunal eclesiástico e a concordância dos sucessivos tribunais de apelação; além disso, para evitar um demasiado formalismo, está previsto que a declaração de uma Parte tenha valor probatório em casos justificados (cân. 1536 §2).

Mas, por vezes, tem-se proposto outra solução só para o foro interno, que é o «matrimónio nulo de consciência»: neste caso, o cônjuge poderia aproximar-se dos sacramentos, desde que não desse escândalo; nesta linha, defende-se que a Igreja renuncie aos processos matrimoniais, deixando os problemas jurídicos para os tribunais civis. Segundo o Cardeal Herránz, aceitar esta solução «equivaleria a obscurecer na prática a sacramentalidade do matrimónio» e reduzir o matrimónio a «uma questão de interesse exclusivamente privado».

Daí a importância dos processos canónicos matrimoniais. Neste sentido, a Igreja procura «melhorar os processos, quer em seriedade, quer a tempo, facilitar-lhes o acesso a todos em igualdade de oportunidades e tornar cada vez mais harmónicas as decisões dos vários tribunais».

O Cardeal Herránz terminava recordando que, no actual contexto de mentalidade divorcista, «os processos canónicos de nulidade podem ser facilmente mal entendidos, como se fossem vias para obter um divórcio com o aparente beneplácito da Igreja». Através de uma hábil manipulação das causas de nulidade, qualquer matrimónio fracassado tornar-se-ia nulo. Pelo contrário, a declaração de nulidade não é a dissolução de um vínculo existente, mas a constatação da inexistência de verdadeiro matrimónio desde o início. Por isso, a Igreja favorece a convalidação dos matrimónios nulos, quando é possível.

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