“A Reaproximação por Etapas Não Precipitadas, Nem Tampouco Lentas Demais”

(Entrevista com o cardeal Castrillón Hoyos de Gianni, presidente de “Ecclesia Dei”, sobre as relações entre Roma e os lefebvrianos)

O santo padre Bento XVI recebeu esta manhã, no Palácio Apostólico de Castel Gandolfo, o superior-geral da Fraternidade São Pio X, dom Bernard Fellay, que lhe havia pedido o encontro. O Papa estava acompanhado do eminentíssimo cardeal Darío Castrillón Hoyos, presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”. O encontro desenvolveu-se num clima de amor pela Igreja e desejo de chegar à perfeita comunhão. Mesmo conscientes das dificuldades, manifestou-se a vontade de continuar a caminhar por degraus e com prazos razoáveis.” Foi assim que um comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé de 29 de agosto passado deu a notícia do primeiro contato entre o novo Pontífice e a Fraternidade que, como lembrou o noticiário da Rádio Vaticano do mesmo dia, “foi fundada pelo arcebispo Marcel Lefebvre, falecido em 25 de março de 1991”.

A notícia da audiência concedida pelo papa Bento XVI, mesmo não tendo sido publicada pela seção “Nossas Informações” do L’Osservatore Romano, foi de qualquer forma dada pelo jornal oficioso da Santa Sé por meio um box condensado que apareceu no final da página 4 da edição datada de 31 de agosto.

Sobre a audiência de 29 de agosto, da qual participou também o padre Franz Schmidberger, antigo colaborador de dom Lefebvre e bem conhecido pelo papa Bento XVI, 30Dias fez algumas perguntas ao cardeal Darío Castrillón Hoyos, que, além de ser, desde abril de 2000, presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”, o organismo vaticano que se ocupa das relações com o variegado mundo tradicionalista, está também, desde 1996, na direção da Congregação para o Clero.

– Eminência, qual é o valor da audiência concedida pelo Papa ao superior-geral da Fraternidade São Pio X?

Darío Castrillón Hoyos: A audiência faz parte de um processo que começou com uma ini­ciativa muito importante do então cardeal Ratzinger, que assinou com dom Lefebvre um protocolo de entendimento antes que este último decidisse proceder às consagrações episcopais de 1988.

– Dom Lefebvre não retrocedeu…

Darío Castrillón Hoyos: Infelizmente, dom Lefebvre prosseguiu com a consagração e, portanto, verificou-se aquela situação de separação, ainda que não se trate de um cisma formal.

– Depois, não houve mais contatos oficiais até o Grande Jubileu do ano 2000.

Darío Castrillón Hoyos: Na qualidade de presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”, quando soube que eles estavam em Roma, em peregrinação, convidei para um almoço os bispos ordenados por dom Lefebvre; um encontro informal, para nos conhecermos. Depois, tive muitos outros encontros com sua excelência dom Fellay e com outros membros da Fraternidade. Encontros que se desenvolveram sempre num clima muito positivo. Tanto assim que a certa altura eu acreditava que estivéssemos realmente muito, muito próximos de uma plena reconciliação.

– O Papa estava ciente desses contatos?

Darío Castrillón Hoyos: João Paulo II era constantemente informado de tudo. E não só isso. O próprio Pontífice recebeu, para um breve encontro em sua capela privada, dom Fellay e padre Michele Simoulin, então superior da comunidade da Fraternidade em Albano Laziale. Não houve um diálogo propriamente dito, mas o Papa, nessa ocasião, ao dar sua bênção, fez votos de que o diálogo pudesse ser retomado.

– Há pouco, o senhor dizia que a certa altura pensou que a reconciliação fosse iminente; depois, o que aconteceu?

Darío Castrillón Hoyos: Percebi, em sua excelência dom Fellay e em seus colaboradores, uma espécie de sentimento de medo, como se Roma estivesse estendendo a eles uma armadilha. Como se a Santa Sé tivesse intenções de absorvê-los para depois fechar as possibilidades de celebrarem a missa de São Pio V, além de calar suas conhecidas críticas a alguns desdobramentos e interpretações que se seguiram ao Concílio Vaticano II. Assim, a reconciliação não aconteceu, mas o diálogo continuou.

– Mas, nesse contexto, em 2001, houve a reconciliação com o grupo brasileiro próximo da Fraternidade, chefiado hoje por dom Fernando Arêas Rifan, eleito em 2002 pela Santa Sé como bispo titular da administração apostólica pessoal de São João Maria Vianney de Campos.

Darío Castrillón Hoyos: Lá, a situação era um tanto diferente, pois, enquanto a Fraternidade São Pio X é uma associação não reconhecida, servida por bispos que se declaram “auxiliares”, no Brasil o bispo dom Antônio de Castro Mayer, quando renunciou à diocese, foi seguido por cerca de cinqüenta sacerdotes que, de fato, mantinham uma organização paralela à diocese. Quando Castro Mayer morreu, um dos sacerdotes foi consagrado bispo pelos bispos lefebvrianos. Graças a Deus, esse bispo, dom Licínio Rangel, e seus sacerdotes, entre os quais o atual bispo administrador apostólico dom Fernando Rifan, no momento de pedir a reconciliação, afastando-se nisso dos bispos da Fraternidade, reconheceram que não existiam mais as condições que dom Lefebvre chamou “de necessidade”, em seu tempo, para justificar a consagração de bispos sem mandato apostólico. E isso porque o Papa havia manifestado a sua vontade de conceder a eles o uso do rito tridentino, reconhecendo a sua peculiaridade. Da parte deles, houve o reconhecimento da validade do novo rito da Missa e da legitimidade do Concílio Vaticano II, mesmo propondo manter uma discussão res­peitosa e honesta sobre alguns textos conciliares menos claros, sobre algumas interpretações desses textos e sobre alguns desdobramentos ocorridos depois do Vaticano II.

– O senhor considera bem-sucedida a solução adotada em Campos?

Darío Castrillón Hoyos: Os fatos o confirmam. Graças a Deus, os fiéis e os sacerdotes da diocese e da administração convivem fraternalmente, e os dois bispos se encontram freqüentemente para a coordenação necessária. Não só isso. Cerca de dez bispos do Brasil já assinaram convênios com a administração para assistir os fiéis de suas dioceses que gostam da liturgia antiga.

– Mas foi uma solução que não agradou à cúpula da Fraternidade…

Darío Castrillón Hoyos: Sim, a solução de Campos foi um momento delicado, pois a Fraternidade mostrou-se contrariada. Para mim, no entanto, foi um fato providencial, porque mostrou um caminho possível para uma solução mais ampla da questão.

– Eminência, voltemos à audiência de 29 de agosto. Como foi organizada?

Darío Castrillón Hoyos: A audiência foi pedida por dom Fellay por canais normais, por intermédio da minha pessoa, na qualidade de prefeito da Congregação para o Clero e de presidente de “Ecclesia Dei”, visto que a Fraternidade São Pio X é uma realidade sacerdotal composta de padres ordenados validamente, ainda que de maneira ilegítima. O pedido foi apresentado ao Papa. E o Papa quis conceder a audiência. O teólogo Ratzinger, o cardeal Ratzinger, com sua grande competência, sempre acompanhou a questão e conhecia bem a questão e as pessoas envolvidas no diálogo. O papa Bento XVI pôde acrescentar a isso a especial assistência do Espírito Santo garantida pelo fato de ter-se tornado o Sucessor de Pedro.

– O que o senhor pode contar da audiência?

Darío Castrillón Hoyos: Foi um encontro marcado pela caridade, em sentido teológico, de amor de Deus e da Sua Igreja. Foi um colóquio entre irmãos que desejam, com a ajuda de Deus, coser outra vez o tecido da unidade plena. O Papa deixou que os participantes falassem: dom Fellay, padre Schmidberger e eu. E depois o Santo Padre falou, fazendo um forte apelo à unidade e expressando o desejo de que a reaproximação possa acontecer por etapas não precipitadas, mas nem tampouco lentas demais.

– Quais foram as observações do superior da São Pio X?

Darío Castrillón Hoyos: Dom Fellay – mas isso já se sabia mesmo antes – teve a oportunidade de ilustrar seus temores sobre o estado da Igreja Católica à luz dos abusos não apenas litúrgicos que se verificaram depois do Concílio Vaticano II. Acredito que as contribuições críticas que poderão vir da Fraternidade, nesse sentido, possam ser uma riqueza para a Igreja, se expressas sob o carisma de Pedro e na caridade entre irmãos. De fato, na Igreja somos todos livres para formular observações críticas sobre o que não diz respeito aos dogmas e à disciplina essencial da própria Igreja. Nesse sentido, posso testemunhar que o cardeal Ratzinger já estava plenamente convencido da necessidade de um diálogo teológico sobre os pontos difíceis. Na plena unidade, encontramos mais luz para estudar esses pontos sensíveis.

– Depois da audiência, um respeitado purpurado intimou à Fraternidade que reconhecesse a legitimidade do atual Pontífice…

Darío Castrillón Hoyos: Infelizmente, essa é a prova de que dentro da Igreja, mesmo em níveis altos, nem sempre se tem um conhecimento completo da realidade da Fraternidade. A Fraternidade sempre reconheceu em João Paulo II, e agora em Bento XVI, o legítimo sucessor de São Pedro. Isso não é um problema. O fato de haver realidades tradicionalistas que não reconhecem os últimos papas, os chamados “sede-vacantistas”, é uma outra questão que não diz respeito à Fraternidade São Pio X.

– Sabe-se que a Fraternidade São Pio X pede à Santa Sé uma liberação da missa chamada tridentina e uma declaração que confirme que essa liturgia nunca foi abolida.

Darío Castrillón Hoyos: A missa de São Pio V nunca foi abolida. A respeito da liberação, lembro que sob o pontificado de João Paulo II houve uma reunião de todos os chefes de organismos da Cúria Romana, na qual a opinião amplamente majoritária não era contrária a esse pedido. Perigoso seria criar uma contraposição entre o velho rito e o novo. A liturgia não pode ser um campo de batalha. Como sacerdote, como cardeal e como prefeito da Congregação para o Clero, sinto uma dor grandíssima ao ver a linguagem inaceitável com a qual às vezes é tratada a vontade de Jesus de dar seu corpo e seu sangue, e de confiá-los a sua Igreja. E isso vale para alguns expoentes da Fraternidade São Pio X, mas não apenas para eles.

– Há resistência de muitos bispos contra a liberação?

Darío Castrillón Hoyos: Às vezes a ânsia pastoral de um bispo o leva a pensar que conceder a permissão de celebrar a missa tridentina em sua diocese possa engendrar confusão entre o povo de Deus. Quando os fiéis que pedem esse tipo de celebração são muito poucos, essa perplexidade pode até ser compreensível. Mas, quando quem pede a missa é um grupo mais consistente, cabe à Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei” lembrar ao bispo, de maneira honesta e cordial, que a vontade do Sucessor de Pedro é que sejamos generosos na aplicação em favor desses fiéis. E vejo com alegria que, dia após dia, é sempre maior o número daqueles que a aplicam.

– O senhor conhece bem o mundo tradicionalista. Como avalia a piedade pessoal dos sacerdotes que fazem parte dele?

Darío Castrillón Hoyos: Muitos sacerdotes tradicionalistas que conheci me deram uma ótima impressão: têm um amor sincero pelo ministério. Infelizmente, pode haver também alguns fanáticos que estão ligados à liturgia antiga do mesmo jeito como uma pessoa pode estar ligada a uma fórmula matemática cujo valor nem entende até o fundo.

– O senhor considera que eles representam a herança de um passado de certa forma em via de extinção?

Darío Castrillón Hoyos: Na Jornada Mundial da Juventude de Colônia havia um consistente grupo de jovens ligado à missa tradicional. Os reflexos foram positivos. E eu testemunho o quanto é míope considerar o fenômeno tradicionalista como algo em via de esgotamento. Mesmo porque, no mundo tradicionalista, proporcionalmente, o número de vocações sacerdotais é claramente superior ao de muitas dioceses da Igreja.

– Em setembro de 2001, João Paulo II, num discurso na reunião plenária da Congregação para o Culto Divino, fez um elogio às “belíssimas orações” contidas no Missal de São Pio V. Essa alocução foi publicada com um atraso fora do comum pelo L’Osservatore Romano, e nunca chegou a ser publicada nas Acta Apostolicae Sedis, que normalmente também imprimem os discursos papais nas planárias dos organismos romanos. Quando, mais tarde, em 24 de maio de 2003, o senhor celebrou, pela primeira vez depois da reforma litúrgica pós-conciliar, uma missa tridentina numa basílica patriarcal romana, a de Santa Maria Maior, L’Osservatore Romano ignorou totalmente o acontecimento. Como o se­nhor julga essas duas “censuras”?

Darío Castrillón Hoyos: Prefiro julgar os fatos, mais que as intenções, e não sei qual tenha sido a causa da falta dessas duas menções, que, porém, tiveram ampla repercussão.

– O senhor considera que o discurso de João Paulo II a que nos referimos antes possa ser finalmente publicado nas Acta?

Darío Castrillón Hoyos: Se não foi vontade explícita do Papa não publicar aquele discurso, que ele, de qualquer forma, pronunciou, creio que seja uma coisa grave não tê-lo feito.

– O Corriere della Sera de 26 de agosto, ao antecipar a audiência de três dias depois, definiu, no título, como “a paz impossível” a que se poderia construir entre os chamados lefebvrianos e a Santa Sé.

Darío Castrillón Hoyos: Os jornais podem dizer isso e muitas outras coisas. Por sorte, e subli­nho “por sorte”, os jornais não são infalíveis.

– Eminência, uma última palavra para quem reprova à Fraternidade o fato de usar uma linguagem às vezes pesada, nos limites da irreverência, quando se refere à Santa Sé.

Darío Castrillón Hoyos: Pode aborrecer, mas não me impressiona, no fundo, o fato de que possam aparecer palavras, artigos, cartas que usam uma linguagem até crua. Inclusive algumas afirmações atribuídas a sua excelência dom Fellay. Enquanto não houver plena unidade, e portanto uma plena caridade recíproca, não podemos nos escandalizar se houver ainda algumas intemperanças verbais. É sempre bom lembrar o que disse Santo Agostinho: “”In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas””.

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