A soberania da graça é contrária ao livre-arbítrio?

Essa é uma pergunta que surge no debate com os protestantes calvinistas. Para eles, a negação do livre-arbítrio é uma decorrência lógica da sustentação da soberania da graça de Deus. Veremos, nesse artigo, como a fé em ambos – graça soberana e livre-arbítrio – não só é teoricamente possível, como é a crença ortodoxa da Igreja de Cristo, com base nas Escrituras e na Tradição dos Apóstolos, tal qual ensinada pelos primeiros Padres. Mais: mostraremos como, em Santo Agostinho, o Doutor da Graça, a quem os luteranos e, especialmente, os calvinistas, sempre invocam como autoridade a pretensamente confirmar suas teses, defende exatamente o contrário. A doutrina agostiniana, pois, ao contrário do apregoado por Lutero, por Calvino e, mais tarde, por Jansênio, não nega o livre-arbítrio nem estabelece uma predestinação divina para a salvação que ignore o concurso da vontade e da liberdade humanas.

Por predestinação entende-se, em teologia, o ato pelo qual Deus, desde toda a eternidade, amou gratuitamente, elegeu livremente e orientou eficazmente para a salvação aqueles que deveriam ser salvos. Na teologia da Reforma Protestante, essa escolha livre de Deus importa em negação da resposta livre do homem ou do concurso igualmente livre de sua vontade. Daí que a predestinação para Lutero e, mais especialmente, para Calvino é um decreto eterno de Deus que não leva em consideração qualquer participação do homem e de seu livre-arbítrio. Ora, não é esse o ensino ortodoxo da Igreja de Cristo, razão pela qual essa teologia foi condenada como herética.

Nesse campo da soteriologia, bradam os calvinistas um dos lemas da Reforma Protestante, como que a distinguir sua doutrina daquela professada por Roma: sola gratia.

Acontece que o sola gratia é profundamente católico, desde que não interpretemos a graça como uma contraposição à liberdade. Nem calvinismo nem pelagianismo, é assim que a Igreja Católica crê. Na verdade, se estudarmos profundamente, veremos, como afirmado no primeiro parágrafo, que João Calvino distorce o pensamento de Santo Agostinho.

Sim, Deus predestina os salvos. Deus não só produz o agir (o aceitar pela fé) como o querer. Isso é católico. A Igreja não nega, outrossim, que mesmo o primeiro movimento da salvação pertence à graça. Aqui, calvinistas e católicos concordam.

“Esta predestinação que defendemos segundo a Sagrada Escritura, ninguém a pode contestar, sem erro.” (Santo Agostinho. De Dono Persev., c. XIX, n. 48; PL XLV,1023)

“Nenhum católico nega a predestinação divina.” (São Próspero da Aquitânia. Resp. I ad object. Gall.; PL LI,157)

“Crede firmemente que Deus antes da constituição do mundo, predestinou como filhos adotivos todos aqueles os quais quer fazer por sua bondade gratuita vasos de misericórdia.” (São Fulgêncio de Ruspe. De Fide ad Petrum, XXV; PL LXV,703)

Para nós, católicos, entretanto, essa primeira graça Deus dá a todos. Deus produz o querer em todos, ainda que alguns resistam a esse querer por fatores vários.

Não é preciso abrir mão da doutrina da primazia da graça, da predestinação, da eleição para abjurar o erro e converter-se à fé católica. Apenas abrir mão da interpretação calvinista dessa doutrina, isto é, da negação da participação livre do homem como resposta à graça.

O erro do pelagianismo é não aceitar a graça como causa de salvação ou, ao menos, considerá-la como um mero exemplo de Cristo aos homens. O erro do semi-pelagianismo é, apesar da aceitação da graça, considerar que o primeiro movimento da justificação pertence ao homem. A Igreja Católica não defende o semi-pelagianismo nem o pelagianismo, porém não aceita, também, o calvinismo e o jansenismo: para nós, a graça é o primeiro movimento, a graça é o querer, a graça é o agir, mas ela age instigando o homem à justificação, e este pode recusá-la. Ao recusá-la, perde-se por culpa própria. Ao aceitá-la, livremente, uma nova graça lhe é dada, a justificação. Não há negação da primazia da graça. Ela, quando aceita, é eficaz. Quando não aceita, é suficiente (porque Deus sempre quer a salvação de todos, e concede a graça de querer suficientemente para todos… alguns recusam, e, entretanto, tiveram a graça suficiente, apenas não se tornando eficaz por sua própria liberdade).

Penso que Calvino tenha, por medo do pelagianismo e do semi-pelagianismo, caído no erro oposto. Considerou que o combate de Santo Agostinho contra Pelágio e Celéstio era o mesmo que ele, Calvino, travava contra o catolicismo. Sua teologia parte de uma errônea compreensão do ensino agostiniano: confunde a ênfase dada à graça, necessidade de sua disputa contra a heresia que exagerava o papel do livre-arbítrio, com a negação deste último pela sustentação daquela. Pensa Calvino que a teologia de Santo Agostinho é a mesma sua, que a doutrina do grande Bispo de Hipona nega, como ele, a liberdade, o que não é verdade. As obras agostinianas falam mais da graça, explicitam que é dela mesmo o primeiro movimento para a justificação (e não só a resposta divina à fé humana, como pensariam os semi-pelagianistas), mas em momento algum ensinam que o homem não tem livre-arbítrio. Para concluir essa idéia herética, Lutero e, principalmente, Calvino precisaram distorcer as sentenças do santo, tira-lás de contexto e ignorar sumariamente os trechos em que ele defende explicitamente a liberdade humana. O pensamento de Agostinho é radicalmente oposto ao de Calvino: “Com efeito, se o homem não dispusesse de vontade livre, tanto seria injusto o castigo como o prêmio.” (De libero arbitrio., lb. II , cap. 1, n. 3)

Além disso, nenhum dos Padres da Igreja (nem Agostinho) pode ser interpretado isoladamente. A Tradição da Igreja, em seu contexto, apóia a graça, não obstante também o livre-arbítrio. Esses dois elementos não se contrapõem.

Sustentar que o homem seja livre para ter fé ou para recusar a graça divina parece uma negação da mesma para os calvinistas. A graça, dizem eles, é soberana – e nisso não erram, apenas na conseqüência que daí extraem. Soberana que é, seu querer é fato, é eficazmente poder – e aqui se equivocam. A crença na liberdade humana, para o calvinismo, importaria em negar a soberania da graça divina.

“Então Deus quer salvar o homem, mas não consegue realizar esse querer? É a vontade do homem que prevalece e não a de Deus? A graça não é soberana?” – Eis as objeções calvinistas.

Não é que Deus não “consiga” realizar Seu querer. Ele opta por não realizar se não for com o concurso do homem. O homem não está limitando a Deus, contudo Deus mesmo escolhe não realizar Seu querer.

Se Deus é quem decide não levar a cabo a justificação quando o homem resiste à graça, a soberania não fica afetada. Pertence à soberania ser livre e independente, não? Deus, ao decidir, decretar que só salvará o homem com o livre-arbítrio, está sendo menos soberano? Parece-me que não, pois é soberanamente que Ele decreta que o homem deve responder livremente à graça. O decreto divino não está na justificação. Está, isso sim, no estabelecimento de que, para ela, o homem deve concorrer com sua livre vontade.

Na verdade, entendo que é o calvinismo que tolhe a soberania de Deus. De fato, acaba por conceber um como que autômato: se Ele quer salvar, vai salvar e pronto. Maior explicitação da soberania há em Deus quando escolhe não só salvar, como tornar o homem participante desse processo. Soberanamente, Ele decide que Sua graça pode ser resistida. Deus é quem quis assim. E nisso não há negação da soberania.

Outra acusação calvinista aparece nessa argumentação. “Parece que fica invalidado o sacrificio da Cruz.”

Pelo contrário! O sacrifício da Cruz é eficaz naqueles que Cristo subjetivamente salvou, ainda que não seja nos outros, que, igualmente aos demais, foram alvos da Redenção objetiva. Compreender essas duas concepções da Redenção é fundamental.

E mais: aqui vai a grande desgraça do pecado. Quando o homem resiste à graça, está recusando o presente de Deus. Cristo morreu na Cruz por todos: os que não aceitam esse sacrifício, que não aceitam a graça, estão, na prática, dizendo que o sacrifício foi em vão. E aí está a malícia do pecado: fazer Cristo morrer em vão. Depois de tudo que Jesus fez por nós, ainda assim alguns insistem em recusar-Lhe fé e obediência.

Crer que a graça pode ser resistida me parece que torna o pecado mais tenebroso, mais terrível, mais injusto (sua real característica, aliás).

“(…) sicut elegit nos in ipso ante mundi constitutionem, ut essemus sancti et immaculati in conspectu eius in caritate; qui praedestinavit nos in adoptionem filiorum per Iesum Christum in ipsum, secundum beneplacitum voluntatis suae (…).” (Eph I,4-5)

“(…) nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante de seus olhos. No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua livre vontade (…).” (Ef 1,4-5)

Os calvinistas usam o texto bíblico acima para defender suas teses. “Antes do nosso nascimento, e antes que nós fossemos formados no ventre materno para depois de termos liberdade de escolha, fazermos a opção de aceitar ou rejeitar a graça” – dizem.

Sem embargo, Deus predestina em previsão dos que aceitarão a graça. Na verdade, a predestinação, segundo certas escolas teológicas católicas, não se difere da presciência, do saber de antemão.

Ele nos escolhe desde antes da fundação do mundo, antes de termos sido formados etc, porque sabe que, no tempo em que tivermos capacidade de escolha, iremos aderir livremente à graça.

Aí novamente entra em cena a soberania divina. Deus é tão soberano, tão poderoso, que sabe de antemão todas as coisas, inclusive conhecendo aqueles que não irão aceitar Sua graça. E mesmo assim, morre pelos que sabe que O rejeitarão: que grandioso amor! Dar a vida por aqueles que nunca O aceitarão!

Vemos que a fé na soberania divina e na eficácia da graça é plenamente coerente com a afirmação da liberdade humana: basta interpretar a predestinação com base na Tradição da Igreja, e no conjunto das Escrituras, visto que Deus “deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.” (1 Tm 2,4)

“Muitos serão os chamados, mas poucos os escolhidos.” (Mt 20,16) É aqui a chave de leitura desse tema. Deus chama a muitos (todos), dando a primeira graça, a graça do querer. Os poucos que aceitam essa graça, dando o concurso de sua livre vontade, são escolhidos, predestinados de antemão, em função da presciência de Deus dos que o aceitarão.

Mas, aceitar isso não significa sustentar que Deus fez uma escolha duvidosa?

Não. A escolha de Deus é sempre certa e eficaz. Se alguém não persevera até o fim é porque, de fato, não foi eleito desde sempre. É por isso que os católicos dizem que a justificação é um processo, que só termina na morte.

Isso, de modo algum, pode ser interpretado como calvinismo, dado que a escolha de Deus, de antemão, leva em consideração a aceitação futura do homem da graça e a perseverança nela até o fim. Deus chama a todos pela graça do querer. Aos que respondem positivamente e perseveram até o fim nesta graça, predestina.

Não se alegue que essa predestinação é futura, não sendo, pois, “pré” destinação, dado que Deus não está preso à dimensão temporal. Deus sabe quem irá não só responder, livremente, à sua chamada (“muitos são os chamados”), que é, em si, uma graça inicial, como perseverar na mesma, salvando-se. Predestinação, então, é a escolha de Deus, feita de antemão, daqueles que irão decidir-se, livremente, por Ele, e perseverar.

Não esqueçamos, também, que a graça santificante nos é dada pelo Batismo, e então, ao batizarmos alguém ele já tem a vida divina, devendo, por sua fé, responder livremente a uma graça que já está em sua alma (e que pode, claro, ser resistida).

Relacionado a esse tema está o ensino protestante da certeza da salvação. Ora, o acima exposto é exatamente um desmentido dessa doutrina. Realmente, não há como ter certeza da salvação. Vê-se, pois, que, apesar de elementos de verdade, o calvinismo é um sistema que gira em torno de seus próprios pressupostos e, para justificar algumas doutrinas, cria outras. Uma delas é a tal certeza da salvação, que não encontra eco em nenhum dos Padres da Igreja. “Anátema a quem disser que o homem regenerado e justificado tem o poder de crer que ele está no número dos predestinados.” (Concílio Ecumênico de Trento, Sess. VI, 12; Denz. 1565)

Não temos certeza da salvação (porque nem presumimos de nossos próprios méritos, nem presumimos da graça de Deus como se não fôssemos livres para resistir a ela). Tampouco, caímos em desespero. O que temos é a virtude teologal da esperança. Esperamos que Deus nos dê a graça e que corresponderemos a ela.

A tese da certeza da salvação, aliás, é fruto de um equivocado entendimento da virtude da esperança. Ela como que substitui, na teologia protestante, a noção de esperança. E isso por um motivo muito simples: para Lutero, a fé é uma confiança no sacrifício de Cristo, e não uma adesão do intelecto, movido pela vontade e iluminado pela graça, à Revelação de Deus em Cristo. Lutero, pois, confunde a fé com a esperança. Mais, chama de fé aquilo que, exatamente, é mais próprio da esperança. A esperança, então, fica vazia, e é preciso procurar um outro conteúdo para ela. Acha-se a “certeza da salvação”.

Não, não tenho certeza da salvação. Não porque duvide da graça, mas porque sei que sou fraco e posso, a qualquer momento, cair da graça por decisão pessoal. Tampouco me desespero, achando que Deus não perdoará ou salvará, ou que inevitavelmente irei cair. Tenho, isso sim, duas atitudes, na verdade duas virtudes (todos temos pelo Batismo): a fé e a esperança (claro, e a caridade). Pela fé, creio firmemente que Cristo morreu por mim, que Seu sacrifício foi suficiente para a minha salvação, que Ele me dá a Sua graça para querer a salvação e que, se perseverar, terei a justificação. “Sê fiel até a morte e te darei a coroa da vida.” (Ap 2,10) Isso no campo da fé. Pela esperança, outrossim, confio que Deus não me abandonará e me dará a graça final. Não tenho certeza, apenas confio, espero (no sentido da virtude de esperar, não o esperar no entendimento popular). Se eu me mantiver fiel, minha confiança se transformará, no céu, em realidade. “Por ele é que tivemos acesso a essa graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança de possuir um dia a glória de Deus.” (Rm 5,2) Por isso é que São Paulo nos diz que a esperança cessará, como a fé, permanecendo apenas a caridade: no céu não há lugar para esperança, pois só se espera o que não se tem. Se a esperança fosse certeza da salvação, como sustentam os protestantes, então, no céu ela continuaria (porque a certeza da salvação haverá no céu, aliás, é só ali que haverá), e a Bíblia estaria errada.

“Que ninguém, nesta vida mortal, tenha a presunção de penetrar no mistério secreto da predestinação divina, a ponto de afirmar absolutamente que ele é do número dos predestinados, como se fosse certo que aquele que é justificado não pode pecar ou que, se pecar, pode prometer seguramente o seu arrependimento. A não ser por uma revelação especial ninguém pode conhecer os que Deus escolheu.” (Concílio Ecumênico de Trento, Sess. VI, 12; Denz. 1540)

Temos fé na salvação no sentido objetivo (Cristo nos salvou a todos, morrendo na Cruz), e esperança na salvação no sentido subjetivo (aproprio-me pela fé e pelos sacramentos dessa salvação).

Não há dificuldade com a passagem dos vasos predestinados para a salvação e para a perdição (cf. Rm 9,18ss). Todo o problema passa pela compreensão do conceito de predestinação. Para o calvinismo, predestinar é escolher sem qualquer critério e sem a participação do homem. Para a Igreja Católica – com base nos fortes testemunhos dos Padres e da Escritura –, predestinar é escolher, de antemão, com base na presciência de que o predestina aceitará, livremente e pela fé, a graça (nos sistemas molinista e congruísta, de Suárez; já no sistema tomista, embora não falte a presciência dos méritos nem a participação livre do homem na justificação, com o concurso de sua vontade, a predestinação é gratuita; as três escolas têm cidadania na Igreja Católica, e foge ao escopo desse artigo explicar os matizes de suas diferenças).

“Nós confessamos firmemente a predestinação dos eleitos para a vida e a predestinação dos ímpios para a morte, mas com esta diferença: que na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, enquanto que na condenação dos que se perderam, o demérito precede o justo julgamento de Deus. Pela predestinação Deus somente decretou o que ele mesmo deve fazer por sua misericórdia ou por seu justo julgamento. Para os maus Deus previu a malícia deles, porque ela vem deles mesmos. Ele não a predestinou porque a malícia não vem dele.

Quanto à pena, que segue as suas obras más, ele a previu e a predestinou, porque ele é justo e coloca sobre todas as coisas, segundo a observação de Sto. Agostinho, uma sentença tão irrevogável quanto certa é sua presciência. (…)

Com o concílio de Orange nós lançamos o anátema a todos os que disserem que alguns homens são predestinados para o mal pelo poder de Deus.” (Concílio de Valença, cân. 3; Denz. 628-629)

O calvinismo pretende que tudo seja obra da graça, negando a liberdade humana. O pelagianismo, ao contrário, pensa que tudo é obra do livre-arbítrio, rejeitando a graça. O semi-pelagianismo, por sua vez, crê na graça, mas coloca ao seu lado a liberdade, de modo que a ação do homem e a de Deus têm o mesmo peso, sendo o primeiro movimento para a salvação proveniente do homem, a partir do qual Deus o salva.

Geralmente, o que se chama arminianismo – doutrina professada pela maioria dos protestantes ligados a igrejas batistas – é uma espécie de semi-pelagianismo. É comum aos calvinistas entenderem a teologia católica sobre a graça como arminiana ou semi-pelagiana, por terem diante de si somente essa escola teológica como antagônica às suas teses, sem considerar que há espaço para maior entendimento em outro espectro, mais amplo.

Ledo engano o dos calvinistas!

Para o católico, do mesmo modo que os reformados e luteranos, tudo é graça. Ocorre que, se para esses nossos irmãos separados, herdeiros de Calvino e Lutero, a afirmação “tudo é graça” importa em negar a liberdade humana, para o católico não. Para nós, tudo é graça, até mesmo a resposta livre do homem. Tudo é graça porque precisamente a misericórdia de Deus é maior quando Sua graça renova o homem verdadeiramente em seu ser, dando-lhe capacidade de livremente responder ao chamado. O homem só pode dar o concurso de sua vontade a Deus (e assim receber a graça santificante) porque há uma graça atual de Deus que o capacita para tal.

Abordando esse tema, faz-se mister afirmar que o correto entendimento do que seja a graça passa pela compreensão de que, com esse nome, nos referimos a duas realidades:

a) a graça habitual ou santificante;
b) a graça atual.

Por graça santificante (habitual) entendemos a inabitação do Espírito Santo na alma, a regeneração divina operada no homem, tornando-o santo.

Já a graça atual é qualquer dom concedido por Deus sobre as potências da alma, ajudando o homem na caminhada rumo à eternidade. Graças atuais são, por exemplo, os milagres e as respostas divinas às preces (“alcancei uma graça”, diz o devoto agradecido, referindo-se a uma graça atual), uma ajuda interna (ação de Deus dando ao homem o gosto pelas coisas divinas, inspirando-lhe um bom propósito, movendo-lhe a determinado ato) ou externa (um livro, uma conversa edificante), tendo sempre em vista a vida eterna.

O convite de Deus para que o homem O aceite é uma graça atual. A cura da vontade fraca, conseqüência do pecado, é uma graça atual. A primeira graça, movendo o homem no querer, é uma graça atual.

Se o homem não rejeita essa primeira graça, atual, recebe, por sua fé, a graça santificante.

É difícil para o calvinista entender que a graça não elimina a liberdade, pois a teologia de Calvino não distingue entre graça atual e graça santificante/habitual, que ele herdou de Lutero.

Outra dificuldade do calvinismo e do próprio luteranismo para conceber que a aceitação da liberdade humana não destrói a soberania da graça, nem mesmo impede que tributemos tudo à graça, está no entendimento protestante de sua ação na alma.

Para Lutero e Calvino, a graça é uma capa que reveste o justo. Pelo pecado, o homem tornou-se absoluta e irreversivelmente pecador. Ao receber a graça, o homem é declarado justo, com uma justificação externa, forense, judicial. Um vez crendo no sacrifício vicário de Cristo, oferecido na cruz pelos nossos pecados, o pecador obteria a graça de Deus, vindo assim, a ser revestido da mesma. Não se operaria, contudo, uma verdadeira transformação. O pecador continuava com sua natureza pecadora, e assim se apresentaria para sempre, mesmo na glória. Todavia, por causa de sua fé, aos olhos de Deus ele seria considerado justo. A graça era como um revestimento do pecador. Sua justificação se dava por um decreto, um julgamento de Deus: era julgado, pelos méritos de Cristo, como justo, por causa desse revestimento da graça – daí o termo “justificação forense”. Por tal doutrina, surgiu em ambientes protestantes a máxima de que o cristão é simul iustus et peccator (ao mesmo tempo justo e pecador). O homem continua, na essência, pecador, sendo coberto pela graça.

Na concepção católica, apoiada pela Patrística e pela Escritura, Deus não declara ninguém justo sem, ao mesmo tempo, fazê-lo, de fato, justo. “O Senhor é lento para a cólera e rico em bondade; ele perdoa a iniqüidade e o pecado, mas não tem por inocente o culpado.”(Nm 14,18)

O Concílio de Trento, convocado para extirpar o erro protestante, proclamou a verdade católica, tal qual sempre foi crida. A fé no sacrifício de Cristo é condição para a obtenção da graça, e nisso todos concordamos. Essa graça, porém, não é um mero revestimento, senão um poder sobrenatural que age no homem de forma interna e espiritual, moldando sua natureza. A graça nos é transmitida, ordinariamente, pelos sacramentos e pela fé. Assim, o Batismo não só introduz o pagão na Igreja, mas realmente apaga seu pecado original. Para Lutero, a graça só cobria o pecador, não mudando sua natureza. Para a Igreja Católica, contudo, a graça atinge a essência do homem. Renascido pelo Batismo, o homem é livre de seu pecado original, de modo que podemos dizer, sem temos, que entre a operação desse sacramento e o primeiro pecado cometido, está o homem não só “com a capa da graça”, mas transformado por ela. Não é declarado ou julgado justo – embora ainda pecador na essência. Ele é realmente justo, pois a essência do pecado é apagada. No luteranismo, o justo, o santo, o é de jure. Na Igreja de Cristo, o justo o é de facto.

O texto de São Paulo aos Filipenses geralmente é apresentado pelo calvinismo para justificar a eleição divina sem referência à liberdade humana: “porque é Deus quem opera em vós o querer e o executar, segundo o seu beneplácito.” (Fp 2,13)

Todavia, esse versículo é continuação de outro, de modo que ambos devem ser entendidos como uma só mensagem. O texto não pode ser tirado de seu contexto. O que diz o versículo 12, imediatamente anterior? “Portanto, meus caríssimos, trabalhai na vossa salvação como temor e tremor, não só como na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência.” (Fp 2,12) O texto completo fica: “Portanto, meus caríssimos, trabalhai na vossa salvação como temor e tremor, não só como na minha presença, mas muito mais agora na minha ausência. Porque é Deus quem opera em vós o querer e o executar, segundo o seu beneplácito.” (Fp 2,12-13)

No v. 13, São Paulo diz que não só o executar procede da vontade de Deus, mas o próprio querer. O desejar ser salvo, então, é fruto da ação da graça da alma. Com isso, os calvinistas pretendem seja anulado livre-arbítrio: o homem não pode nem querer sem a graça; logo, nesse querer produzido pela graça não há espaço para a liberdade. Mas, no v. 12, o mesmo São Paulo exorta aos cristãos que trabalhem na sua salvação. Ora, se devem trabalhar, isso supõe um esforço humano, naturalmente fruto de um ato livre de vontade. A empreender a interpretação calvinista do v. 13, o v. 12 restaria uma contradição a ele. Na Bíblia não existem contradições. Muito menos em uma frase seguida da outra! A solução é harmonizar o entendimento.

Realmente, até o querer ser salvo é fruto da graça divina. Porém, ao contrário do ensinado pelo calvinismo, isso em nada abala a crença no livre-arbítrio, uma vez que a graça, para a teologia católica, não é uma simples capa que reveste o pecador (teoria da justificação forense, própria de Lutero e Calvino), mas uma ação de Deus na alma. A graça, para o calvinismo, é extrínseca à alma; para a Igreja Católica, na esteira dos Padres, é uma ação intrínseca: Deus, de fato, justifica o pecador, não só de direito. Ele não apenas declara o pecador justo, e sim o faz justificado, transforma seu coração, purifica mesmo sua alma. Uma graça meramente externa, como uma capa, agindo até no querer humano só lhe pode anular a liberdade. A graça que o transforma, que o muda de fato, mais do que de direito, age no querer humano sem retirar o livre-arbítrio. Deus concede uma graça de querer, só que ela pode ser resistida, dado que não é uma ação extrínseca, meramente declarativa de Deus, senão constitutiva, que muda a própria alma humana. É algo mais sutil e mais profundo. E se a entendermos por declaratória, só o será num sentido real, não fictício: Deus não declara o que não é, só declara justo o que já constituiu justo de antemão.

“Ele tem misericórdia de quem quer, e endurece a quem quiser.” (Rm 9,18) Em seguida desse versículo há a passagem dos vasos de barro, uns destinados à ira, outros à glória; uns à salvação, outros à danação.

Parece haver, com isso, uma dupla predestinação e, mais, uma predestinação sem o concurso da liberdade humana. Mas não. “Anátema a quem disser que a graça da predestinação não é concedida senão aos predestinados e que os outros são também certamente chamados, mas não recebem a graça, visto que eles são predestinados para o mal pelo poder divino.” (Concílio Ecumênico de Trento, Sess. VI, 12; Denz. 1367) Os vasos destinados à ira o são não por simples disposição de Deus, mas porque recusaram a graça, e essa recusa é livre. São Paulo emprega uma analogia com os vasos. Apenas uma analogia. Não são os homens vasos. Os homens são homens. As características de vasos e de homens diferem-se, e entre elas está a liberdade (os vasos são coisas, não a têm). São Paulo, dizia, emprega uma analogia. E como toda analogia, trata-se de uma comparação imperfeita, própria para uma ilustração. Não se pretenda com isso que o homem, como o vaso, não tenha liberdade, afinal o vaso também não tem alma, e não se quererá que o homem, pela analogia paulina com o vaso, não a tenha também.

De outra sorte, no próprio texto da Carta aos Romanos, São Paulo compara os corações endurecidos do homem com o coração do Faraó à época da libertação dos hebreus por Moisés (cf. v. 17) Calvino pretende com isso que São Paulo esteja ensinando que parte diretamente de Deus o endurecimento do coração, o que fundamentaria sua tese da predestinação dupla: o Faraó não se teria endurecido por seu livre-arbítrio, porém por vontade direta e absoluta de Deus. Ora, se o Faraó teve o coração endurecido por vontade direta do Senhor, que “endurece a quem quiser” (Rm 9,18), todos os que são reprovados por Deus o são porque Ele lhe endureceu os corações. Essa comparação entre o Faraó e os réprobos, os condenados, é feita por São Paulo, não o nego. Mas, São Paulo quer mesmo dizer que o endurecimento do coração do Faraó foi diretamente provocado por Deus?

A Sagrada Escritura, em certos trechos afirma que o coração do Faraó foi endurecido por Deus (cf. Ex 4,21;7,3.13;9,12;10,1;11,10;14,17). Outras passagens, sem embargo, atribuem o endurecimento do seu coração ao próprio Faraó (cf. Ex 7,22-23;8,15.32). Como harmonizar os dois ensinos? Do mesmo livro do Êxodo! Somente se interpretarmos que Deus, ao endurecer o coração do Faraó, não o fez diretamente, mas sim permitindo que ele trilhe o caminho do pecado, que escolheu por culpa própria. Admitir que Deus tenha endurecido o coração do Faraó de modo direto, como pretende Calvino, significaria rechaçar os trechos bíblicos que responsabilizam o próprio rei egípcio por seu coração duro, e, por via de conseqüência, negar a infalibilidade (e a inspiração) das Escrituras! A teologia calvinista, então, não se sustenta diante da Bíblia!

Nesse diapasão, o reconhecimento de que o endurecimento do coração é feito indiretamente por Deus é claro na doutrina católica. Com efeito, “Deus não endurece o coração do homem diretamente, mas sim indiretamente, permitindo que persevere no pecado, e não lhe dando a graça eficaz de que se tornou indigno, por ter abusado das graças suficientes, que Deus dá a todos para se salvarem.” (Pe. Matos Soares, comentário a Rm 9,18)


Para a Igreja, só há uma predestinação: para a salvação. “O homem, ao fazer um mau uso do seu livre-arbítrio, pecou e caiu; daí vem esta massa de perdição; do gênero humano inteiro. Deus justo e bom escolheu nessa massa pela sua presciência aqueles que por sua graça predestinou à vida, e ele os há predestinado para a vida eterna.” (Concílio de Quiercy, em 853; Denz. 621) E mesmo essa leva em conta a adesão livre do homem, após dar sua anuência à graça atual do querer ser salvo, para então receber a graça santificante (que pode ser perdida pelo pecado e aumentada pelos sacramentos e pelos atos de fé, de esperança e de caridade). O Concílio de Valença, celebrado em 855, ensina “1º que há uma predestinação dos eleitos para a vida eterna; 2° esta eleição é uma misericórdia que precede as boas obras dos santos; 3° pela predestinação Deus decreta de toda a eternidade o que ele mesmo cumprirá no tempo, pela sua misericórdia gratuita.” (Denz., 628) Se o homem se salva, é porque foi predestinado. Se se condena, é por sua própria culpa. E mesmo quando se salva, o fato de ser predestinado não exclui a participação livre da vontade do homem colaborando com a graça ou, mais propriamente, não a atrapalhando. “Não somente nós não cremos que alguns homens sejam predestinados para o mal pelo poder divino, mas, se há espíritos que desejam acreditar em tão grande mal, nós lhes lançaremos o anátema com indignação” (Concílio de Orange, em 529; Denz. 397)

Vê-se que existe outra “classificação” das graças: graça suficiente e graça eficaz. Deus dá a graça (atual) suficiente para que todos se salvem. Alguns a recusam. Assim agindo, incorrem, por culpa própria, na condenação eterna. Os que respondem positivamente a ela, com o concurso de sua livre-vontade, salvam-se, tornando-se a graça mais do que meramente suficiente, e sim eficaz.

A distinção entre graça suficiente e graça eficaz remonta à diferença entre Redenção objetiva e subjetiva. Objetivamente, todos somos salvos por Cristo. Subjetivamente, só são salvos os que se apropriam da salvação objetiva.

A idéia de justificação forense de Lutero e Calvino aparenta preservar a soberania de Deus. Ambos os reformadores negam o livre-arbítrio (acentuadamente Calvino) porque pensam que ele negaria o caráter soberano de Deus e de Sua graça. Realmente, Deus é soberano, disso não há dúvida. Mas será que a participação do homem na salvação impede a soberania divina? Não, já o vimos linhas acima, pois Deus é quem decide que o homem livremente responda à chamada da primeira graça (graça atual de querer). Se é Deus quem decide, onde a negação da soberania? Se é soberano, não pode Deus, soberanamente, decidir que o homem participará do processo de justificação?

Por outro lado, o conceito luterano-calvinista de justificação meramente declaratória, forense, e de graça extrínseca, como uma capa que reveste o pecador (simul iustus et peccator), só aparentemente salva a soberania divina. Pretende sua preservação, mas se analisarmos profundamente ocorre justamente o contrário.

Por que Deus, podendo mudar o coração do homem e fazê-lo, de fato, justo, só o faz de direito? Por que Deus, podendo transformar o pecador em justo, apenas o declara justo? Porque é o ensino reformado que o homem peca sempre, mesmo quando faz o bem. O homem está tão corrompido pelo pecado que nem Deus o pode resgatar. Deus não pode mudar o coração do homem, Deus não pode fazê-lo justo. Então só o declara. Deus não o pode justificá-lo de fato, e, pois, o único que Lhe é possível é não ter em conta os pecados do homem, declará-lo inocente, justo, por uma graça extrínseca, sem mudá-lo interiormente, permanecendo justo e pecador ao mesmo tempo. Esse o ensino luterano, do qual Calvino se apropriou e o desenvolveu.

Ora, isso é reconhecer que Deus é limitado! Deus só justifica de modo forense, conforme as teses protestantes, porque Lhe é impossível justificá-lo de modo real… Será soberano um Deus a quem algo é impossível?

Procurando defender a soberania divina, Lutero e Calvino acabaram por destruí-la!

Soberano é o Deus que não apenas justifica juridicamente, mas que tem o poder de mudar a alma do pecador, fazendo-o justo de fato, e não apenas cobrindo-o com a graça. Soberano é o Deus cuja graça opera íntima e real transformação na alma, não sendo somente uma capa externa.

Os calvinistas, igualmente, ao acusarem a Igreja Católica de pelagiana, equivocam-se, dado que cremos, sim, na graça divina e que só ela é capaz de regenerar o homem. Tampouco podemos ser tidos por semi-pelagianos, uma vez que estes, embora não a neguem, conferem à graça um papel secundário, de mera resposta à fé do homem, fé esta que nasce só de um ato da vontade humana. Para o sistema semi-pelagianista, como vimos, o primeiro movimento da justificação pertence ao homem pela fé, e só depois, a partir da fé, socorre-nos a graça. Ora, vimos que: a) não é assim que ensina a Igreja, pois o primeiro movimento da justificação é ação da graça em despertar no homem o querer, o desejo da própria salvação; b) nem poderia ser o primeiro movimento o da fé, em face da natureza decaída do homem. Essa confusão calvinista em não conceber como a graça pode ser anterior à fé e posterior a esta também, ao mesmo tempo em que a fé é livre, deve-se, do exposto concluímos, da herança teológica protestante em recusar a diferenciação entre graça atual e graça habitual ou santificante.

Dizia Santo Agostinho, “há alguns que tanto ponderam e defendem a liberdade, que ousam negar e fazer caso omisso da graça de Deus, enquanto outros existem que quando defendem a graça de Deus, negam a liberdade.” (De gratia et libero arbitrio; PL XLIV,881) O Bispo de Hipona, pois, com as claríssimas palavras acima, não pode ter fundamentado a teologia calvinista, que ele refutaria com mais de mil anos de antecipação!

“É tão grande a bondade de Deus que ele quer que os seus dons sejam os nossos méritos, para os quais será reservada a recompensa eterna.” (São Celestino I. Carta aos Bispos das Gálias, 12)

 

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