A tradição é velha?

Resolvi escrever um artigo com esse questionamento depois que passei por uma experiência que me fez refletir; estava eu rezando, de joelhos, em silêncio, num dos bancos da minha paróquia, em algum dia durante a semana, quando me deparei com um grupo de senhoras de pé e mãos dadas, em frente ao altar, rezando nas tais línguas e cantando músicas barulhentas, até mesmo o Pai-Nosso passou por um remake melódico. Foi aí que veio o questionamento; esta é a tal cara jovem da Igreja?

Claro que não posso falar com o poder das estatísticas oficiais, mas creio que para qualquer um é facilmente perceptível a grande força jovem dentro dos movimentos tradicionais. Hoje, quem alimenta o Opus Dei, Regnum Christi, Arautos do Evangelho, Administração Apostólica São João Maria Vianney, FSSP, e até mesmo os grupos radicais-tradicionalistas como FSSPX e similares, são os jovens e adultos com os seus trinta anos, ou seja, fiéis que não conheceram a realidade pré-conciliar, criados num ambiente de muita confusão litúrgica e relativismo doutrinal. Claro que, por outro lado, os movimentos carismáticos são também sustentados pela juventude, entretanto duas coisas devem ser levadas em consideração; a primeira é que enquanto os grupos tradicionais nadam quase sempre contra a maré, crescendo pelos méritos próprios, muitas vezes sofrendo com perseguições claras e tendo como aliada apenas a curiosidade juvenil que leva o adolescente a procurar conhecer tais movimentos – daí a força que têm na internet – , os grupos ligados à RCC gozam de grande prestígio nas dioceses brasileiras, sendo ligados a diversas paróquias e protegidos por um número avassalador de Sacerdotes, possuindo uma primorosa estrutura que sustenta toda a difusão do espírito carismático. Em segundo lugar, e isto também deve ser destacado, o Movimento Carismático é alvo da simpatia de muitas senhoras de idade que, do mesmo modo, nutrem uma debochada oposição a tudo aquilo que remete ao tradicionalismo – e aqui me refiro unicamente ao essencial tradicionalismo, o que é inerente à identidade católica.

Um ponto que merece ser frisado é que as senhoras católicas quase sempre são os maiores empecilhos no combate ao relativismo doutrinário e ao oba-oba litúrgico, seja lá porque alimentam uma tenra oposição ao tradicionalismo porque se consideram “sacerdotisas” para mandar e desmandar nas paróquias ou apenas porque se habituaram com a confusão. O interessante é que são fiéis que conheceram a realidade pré-conciliar, quando não havia o triunfo modernista com a “hermenêutica da descontinuidade”. Talvez a chave da questão seja, justamente, a ação do modernismo e a desconstrução da identidade católica. A heresia progressista não apenas atacou a doutrina e o arcabouço Tradicional da Igreja. De maneira esperta e sorrateira os heterodoxos entenderam que o diferencial na derrubada do ethos católico se dava através de um rompimento não só teórico, mas prático, ou seja, deveriam destruir tudo aquilo que, sensitivamente, ligava o fiel ao espírito de piedade, ortodoxia e Verdade. Para isso transformaram em alvo não apenas os ensinamentos teológicos, mas a música e a arte sacra, a dignidade dos paramentos, os atos cotidianos de oração, as devoções populares etc. Substituíram as casulas romanas e verdadeiramente góticas por casulas de péssimo gosto, enterraram a melodia gregoriana dando lugar ao pop nas Missas, tiraram as ladainhas de cena para colocar a algazarra e a gritaria, extinguiram a sobriedade e pompa litúrgica entronando o desleixo e caricata simplicidade etc. Estamos falando, então, de fiéis que não apenas se depararam com Sacerdotes e Bispos protetores da herética doutrina modernista, mas, também, de pessoas que viram, ouviram e sentiram dois catolicismos; o ‘antigo’ e o ‘moderno’, este último sendo colocado como antípoda do primeiro, tudo em nome do que entendiam por “aggionarmento” [1]. Tais mudanças foram quase como uma experiência psicológica; os hereges trataram de arquitetar o rompimento com a Tradição de maneira sensitiva para que assim, naturalmente, os fiéis entendessem que a Igreja atual era outra, diferente daquela do passado. Não era necessária uma pregação progressista nas paróquias, a radical transformação litúrgica e devocional já tratava de fomentar este espírito anti-tradicional nas mentes da comunidade; os católicos viraram marionetes nas mãos dos heresiarcas modernos!

O resgate do espírito tradicional dentro da paróquias se choca, então, não apenas com uma realidade sacerdotal herética mas, também, com uma comunidade defensora de uma mentalidade religiosa extremamente prostituída. A relação do modernismo dentro das igrejas é tão complexa que chega a ser difícil dizer quando foi o pároco que corrompeu os fiéis ou quando foram os fiéis que impuseram ao pároco a heresia. Claro que, obviamente, não estamos falando de uma comunidade defensora consciente de heterodoxias, tirando as paróquias da Teologia da Libertação quase sempre os membros não entram em questões teológicas complexas. A realidade em grande parte da Igreja no Brasil é a corrupção do “lex orandi” que, obviamente, influencia no “lex credendi’. A banalização do Sagrado, o descaso com o Mistério, a perda da contrição e da reverência, fizeram com que os fiéis se distanciassem do espírito tradicional católico. As diferenças estéticas – adoção de toscos paramentos, ou o desuso dos paramentos, a utilização de cantos inoportunos etc – vieram acompanhadas de um enfraquecimento da compreensão da realidade sobrenatural da Liturgia; em muitas paróquias o altar é um aglomerado de senhoras que se acham “sacerdotisas”, muitos são os que entram na Igreja e sequer fazem uma digna genuflexão e vênia ao Cristo ali presente e ao altar, as imagens de Nossa Senhora não mais são reverenciadas, as velas passaram a ser acesas de qualquer modo e por qualquer um, entretanto nada se aproxima do total desrespeito para com Nosso Senhor; o Sacrário tornou-se público, o Santíssimo Sacramento, no Ostensório, ofuscado pelas mãos!

A argumentação usada pelos fiéis corrompidos pela mentalidade modernista é centralizada no amor; amam tanto Cristo que o desobedece (?!). Vejamos como o progressismo impõe os mais absurdos paradoxos; um católico acredita que Cristo instituiu uma Igreja visível, com estrutura hierárquica e ensinamentos objetivos, além disso, crê que Nosso Senhor transmitiu à Sua Ecclesia toda a Sabedoria cristã, contidas na Sagrada Escritura, interpretada pela Igreja, na Sagrada Tradição, protegida pela Igreja, e no Sagrado Magistério, o poder da Igreja. Em suma, ser obediente a Igreja é ser obediente a Cristo, entretanto, o que vemos atualmente não é exatamente isto; com a justificativa do amor a Nosso Senhor muitos são os que corrompem, deturpam e desdenham dos ensinamentos transmitidos pela Igreja e, além disso, subvalorizam as heranças tradicionais mais preciosas, como o espírito litúrgico, uma das pérolas sagradas deixadas por Cristo. Ora, estamos falando de um amor desobediente, um amor revolucionário que, bem diferente do esperado, rejeita os ensinamentos do Amado? O sentimentalismo açucarado, com as justificativas mais infantis e desconexas, tenta justificar os abusos lançando mão de uma argumentação simplória que apenas psicologiza a religião, transformando o verdadeiro Amor em divã terapêutico. Quem ama segue! Qual o sentido de amar a Jesus e seguir o contrário do que Ele ensinou? O amor já é tão grande que as pessoas sabem mais sobre Cristo do que o próprio?  Nem vamos abordar o fato de que muitos sequer acreditam que a Igreja foi instituída por Nosso Senhor e que simplesmente transmite, através da incumbência deixada por Ele, os Seus ensinamentos! Também me recuso a entrar no mérito da questão a respeito dos fiéis que se dizem inspirados pelo Espírito Santo e, por isso, seguem o contrário da Igreja por estarem “ungidos”. Não é do meu feitio bater palma para doido dançar!

Essas senhoras católicas muitas vezes são fiéis ao erro, devotas da realidade que, de certo modo, a homenageiam, afinal, com a instauração do oba-oba litúrgico e doutrinal, as paróquias ficaram entregues aos loucos desejos e vontades dos fiéis. Os tais grupos litúrgicos, agindo como proprietários da Missa, modificam as rubricas e rasgam os cânones tradicionais, quase sempre desconhecem os documentos magisteriais sobre a Liturgia, mas mesmo assim se sentem capacitados para organizar uma Celebração. O que devemos entender, então, é que o círculo vicioso talvez tenha encontrado um fim; estamos falando de uma primeira comunidade, corrompida pelo espírito modernista, que, quando protegida por Sacerdotes formados nos seminários atacados pelo mesmo vírus, instaurou uma identidade católica progressista e destruidora das heranças apostólicas. Entretanto, quem vem se levantando nas paróquias, lutando contra esta realidade decadente, são os corajosos jovens, muitas vezes solitários na batalha, armados com documentos pontifícios, pronunciamentos papais, um ardor muito forte e uma boa vontade imensa. Combatem a heresia de forma brava, orgulhando, sem dúvida alguma, os mais santos cavaleiros católicos que, no passado, pegaram em armas para proteger a fé do inimigo descrente. Hoje, esses heróis da Tradição são rapazes e moças que de peito aberto tentam, ao máximo, fazer triunfar a Verdade em Sua plenitude, apenas munidos do amor ao Cristo Crucificado e à Sua Igreja, pequenos soldados da Cidade Eterna que, em nome do Sumo Pontífice, guerreiam contra o poderoso inimigo herético! Rapazes que de maneira firme enfrentam párocos modernistas, moças que munidas com seus véus vão à Missa testemunhando o espírito de piedade e contrição!

Estes são os atuais heróis da fé!

[1] S.S Paulo VI presenciou na prática a deformação dos ensinamentos conciliares através da ação modernista com a sua hermenêutica corrompida. Além da já conhecida “fumaça de Satanás na Igreja” que, de acordo com o Cardeal Noè, Mestre de Cerimônia do Papa Montini, “não era outra coisa além da mentalidade que queria distorcer os cânones tradicionais e litúrgicos da cerimônia Eucarística.”, o Santo Padre, na 8ª Sessão Solene do Concílio Vaticano II, disse:

A Igreja conforma-se às novas normas dadas pelo Concílio: são normas fiéis, são normas insignes pela novidade duma consciência mais perfeita da comunhão na Igreja, da sua admirável estrutura, da caridade mais ardente que deve unir, activar e santificar a comunhão hierárquica da Igreja.

É este o período daquele verdadeiro «aggiornamento» preconizado pelo nosso predecessor, de venerada memória, João XXIII. A julgar pelas suas intenções, ele não queria certamente dar a esta palavra o significado que alguns tentaram dar-lhe, como se fosse lícito considerar tudo na Igreja segundo os princípios do relativismo e o espírito do mundo: dogmas, leis, instituições, tradições; ele, com efeito, de temperamento austero e firme, tinha diante dos olhos a estabilidade doutrinal e estrutural da Igreja, a ponto de nela basear o seu pensamento e a sua actividade. De futuro, portanto, usaremos a palavra «aggiornamento» para significar a sábia penetração do espírito do Concílio celebrado e a aplicação fiel das normas, feliz e santamente por ele emanadas.

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