Aborto

O que é aborto?

A resposta a essa pergunta, até há vinte e cinco ou trinta anos atrás, era muito simples. Cometer aborto significava matar uma criança não-nascida, matar um ser humano cuja fraqueza peculiar consistia na sua incapacidade de sobreviver fora do seio materno. E havia duas avaliações morais para esse ato:

1) que era um homicídio justificável – em certos casos. Essa era a posição de muitos não-católicos, embora não fosse de forma alguma a de todos;

2) que era um homicídio injustificável, isto é, que sempre constituía assassinato, e portanto nunca seria lícito. Essa era posição católica, compartilhada pela Igreja ortodoxa grega e por muitas outras pessoas religiosas e não-religiosas.

As razões que apoiavam a primeira afirmação – o homicídio justificável – eram simples: no caso extremo (o único: contemplado) de conflito entre a vida da mãe e a vida do filho, a vida da mãe tinha mais valor, e a vida do filho deveria ser sacrificada para que a mãe pudesse sobreviver. O caso extremo seria o de uma gravidez que, se chegasse ao fim, acabaria por causar a morteda mãe e talvez a do filho também.

Que pensar desta posição? Duas coisas: a) pode-se aceitar com certa facilidade que era inspirada por um sincero sentido humanitarista; b) que os princípios nos quais se baseava _ o de que uma vida humana vale mais do que outra, e o de que se pode matar uma pessoa inocente a fim de salvar outra – tinham inevitavelmente de abrir as portas à atitude que se vem generalizando nos nossos dias em relação ao aborto: a atitude daqueles que advogam o aborto on demand, sem outra justificativa além do fato de que a mãe – ou talvez o Estado – o pede.

Quanto à posição católica, basta dizer por ora que se baseia no princípio claro de que todo o ser humano recebe a vida diretamente de Deus, e que somente Deus a pode tirar, a menos que a pessoa abra mão do seu direito à vida por uma agressão criminosa voluntária. Não é possível imaginar ninguém mais inocente do que uma criança não-nascida; não se pode, portanto, matá-la diretamente por causa alguma. Era esta a situação quanto ao aborto há não muitos anos, uma situação global em que era fácil indicar e circunscrever os pontos de concordância e os pontos de discordância. Havia concordância entre os dois lados sobre a natureza do aborto: significava matar uma criança, era um homicídio, porque o ser no seio materno é um ser humano. E havia discordância quanto à licitude desse homicídio: para alguns, era sempre ilícito; para outros, era justificável e lícito em certos casos graves. Vale a pena acrescentar que, mesmo nos países em que prevalecia este último ponto de vista e a legislação civil reconhecia a legalidade do aborto nesses casos extremos, essa mesma legislação proibia e punia os abortos realizados sem que se verificassem essas circunstâncias excepcionais.

A Posição Atual

Se examinarmos a situação atual, veremos que se dão, não duas, mas três respostas à pergunta sobre o que é o aborto:

1) que é um homicídio injustificável; ou seja, é a posição católica, reafirmada por certo pelo Concílio Vaticano II – em termos mais fortes -, que diz (na Constituição sobre a Igreja no Mundo Moderno, n. 51) que o aborto é um “crime abominável” ;

2) que é um homicídio justificável em algumas circunstâncias, ou seja, a posição – já comentada – de certos não-católicos;

3) que não é um homicídio de forma alguma! Esta é a posição de que desejo ocupar-me especialmente, pois via de regra é a posição dos pró-abortistas modernos e é a posição ideológica – a nova base “moral” – com que procuram justificar o que não pode ser justificado.

A reformulação do problema

O aborto, dizem os novos reformistas liberais, não é de modo nenhum um homicídio, por uma razão muito simples: o que se mata não é um ser humano, o que está no útero não é humano. É evidente que esta suposição significa reformular por inteiro o problema do aborto. E a reformulação é tão radical que, se aceitássemos a base de que parte, o aspecto problemático da questão praticamente desapareceria para muitas pessoas, e o aborto tornar-se-ia um assunto – segundo pensam – quase que inteiramente destituído de dificuldades de natureza moral.

Por que a Reformulação?

Talvez a primeira coisa a fazer com relação a esta nova posição seja perguntarmo-nos por que e como surgiu em tão poucos anos. Não é difícil encontrarmos a resposta. Não há quem não goste de sentir-se humanitário. Os “liberais” da atual escola moral positivista não só gostam de sentir-se humanitários, mas também de poder proclamar-se como tais.

O sentido humanitário liberal dos não-católicos de trinta anos atrás aceitava sem demasiada dificuldade que a vida de uma criança não-nascida fosse sacrificada para salvar a vida da mãe. Os anos passaram e, com os anos, intervieram dois fatores essenciais. Um é que os avanços da Medicina praticamente eliminaram o caso extremo que obrigava a escolher a vida da mãe ou a vida do filho. Apesar disso – e aqui está o segundo fator -, a procura pelo aborto aumentou.

Houve muitos motivos para esse aumento, entre os quais algumas “recomendações” de natureza mais ou menos médica: a fraca saúde da mãe, a tensão que uma gravidez representa para os seus nervos, etc. Mas o motivo principal relaciona-se simplesmente com o crescimento da mentalidade favorável ao controle da natalidade. Apesar de virem envolvidas em referências aparentemente desinteressadas aos problemas populacionais do mundo, as justificativas para o aborto em todos os casos individuais – pelo menos nos países mais desenvolvidos quase sempre se reduzem à incapacidade de ver a criança com amor. Afinal de contas, é a incapacidade de amar que faz um casal pensar na criança não-nascida como um peso – o peso da gravidez e dos cuidados que exigirá mais tarde – e que leva os pais a temer que, se a criança nascer, terão que renunciar a algum conforto material; é a incapacidade de amar que faz com que a mãe não queira carregar e dar à luz a criança que concebeu.

Transformar o Feto numa “coisa”

Matar uma criança para salvar a vida da mãe não repugnava ao sentido humanitário de alguns liberais de trinta anos atrás. Mas matar uma criança para salvar a conveniência da mãe (a sua relutância em arcar com a gravidez) – ou para salvar o bem-estar dos outros filhos ou a posição financeira da família -, querer que se aceite isso é pedir demasiado ao sentido humanitário seja de quem for, por mais liberal que se possa ser.

A solução encontrada foi muito simples. É demais sacrificar a vida de uma criança por um capricho da mãe, ou por  causa do padrão de vida da família, ou pelo bem-estar da sociedade? … Então não se sacrifique a vida da criança, mas tão-somente a vida de um “feto”. Conclua-se, além disso (segundo a feliz teoria de alguns), que o feto não é humano (conclua-se, digo, porque na verdade não se pode prová-lo), e que portanto não se está cometendo nem um homicídio nem um infanticídio, mas única e exclusivamente um “feticídio” que não é mais significativo na ordem moral do que matar alguns micróbios (igualmente corpos estranhos e indesejáveis) por meio de uma injeção de penicilina.

Aqui está a nova visão moral da questão do aborto. Teremos de enfrentar a objeção (parecem dizer os novos moralistas) de que o aborto é um homicídio? Realmente, pelo menos nos casos que nos interessam, seria difícil justificar um homicídio … Mas então não percamos tempo tentando justificá-lo. Digamos com toda a simplicidade que não é um homicídio, pois aquilo que se aborta não tem natureza humana, e portanto, não é um membro da nossa raça humana, é uma coisa. E já que as coisas não possuem direitos, o problema desaparece totalmente.

Aborto em dois Estágios:

O que esta visão nos oferece é, digamos assim, um aborto em dois estágios: é uma operação física precedida de uma operação metafísica, um aborto físico com um pré-requisito metafísico – a supressão da identidade do ser vivo que está no útero. Uma vez realizada essa operação metafísica (verdadeiramente indolor, contanto que se aplique um pouco de anestesia à consciência da pessoa … ), a operação farmacológica ou cirúrgica necessária para suprimir o que “resta” no útero não oferece especial dificuldade, já que esse “resto” – devidamente expurgado da raça dos homens e privado do seu status humano e dos seus direitos – já não é um ser humano, não é senão uma coisa não-humana.

Compreendamos o raciocínio claramente. O argumento esencial dos abortistas modernos não é (exceto nos dois casos que examinaremos mais adiante) que tenham sido descobertas novas indicações ou razões para o aborto, novas razões de peso que até hoje eram desconhecidas. O seu argumento é diferente, e é importante, repito, compreendê-lo bem. Eles não dizem que existam mais razões do que as conhecidas até agora para matar o que está no ventre materno. O que dizem é que o que está no útero tem menos importância do que antes se pensava; tem menos valor. Não tem valor humano e não possui direitos humanos.

O Argumento Católico

O argumento católico como um todo – e afirmo que, seja qual for o ângulo pelo qual se considere o assunto, é o único argumento verdadeiramente racional, verdadeiramente científico e verdadeiramente humanitário – sustenta que a criança não-nascida já é um ser humano e goza de todos os direitos próprios de qualquer ser humano, dos quais o principal é o direito à vida; além disso, sustenta que a sua situação particular como ser humano indefeso lhe confere o direito a uma proteção especial por parte da lei civil.

É interessante recordar que as Nações Unidas, em sessão plenária de novembro de 1959, aprovaram unanimemente a declaração dos direitos da criança nos seguintes termos: “A criança, em virtude da sua falta de maturidade física e intelectual, necessita de especial proteção e cuidados, incluindo a adequada proteção legal, tanto antes como depois do seu nascimento”. Esta declaração foi renovada depois na Conferência Internacional dos Direitos Humanos, em Teerã, em maio de 1968.

A Evidência da Embriologia

Do ponto de vista teológico, a vida especificamente humana começa mediante a infusão da alma no novo organismo embrionário por ação de Deus. Embora não haja nenhuma declaração dogmática sobre este ponto, o Magistério da Igreja cristalizou no ensinamento claro de que o início da vida hu­mana pessoal deve ser computado a partir do momento da concepção, do momento em que o óvulo é fecundado *.

Este ensinamento reflete-se na relação entre certas festas litúrgicas – por exemplo, entre a Anunciação (25 de março) e o Natal, entre a Imaculada Conceição (8 de dezembro) e a festa da Natividade de Nossa Senhora (8 de setembro) -, e é apoiado pelas disposições do Código de Direito Canônico (cf. cânon 871)

Muito mais significativo e interessante é que este ensina­mento universal da Igreja é apoiado e totalmente confirmado por todos os avanços científicos da moderna embriologia. Tanto isto é assim que podemos afirmar que, do ponto de vista científico, a verdade do ensinamento católico sobre este rema está acima de qualquer dúvida. A pesquisa embriológi­ca moderna demonstrou que o ser humano, em termos orgâ­nicos, está totalmente constituído a partir do momento da fecundação do óvulo, e que tudo o que se segue é simplesmen­te um processo de desenvolvimento de um organismo já exis­tente, sem que seja possível indicar qualquer dado ou aconte­cimento subseqüente sobre o qual basear o suposto início de uma vida humana pessoal.

(*) Alguns teólogos medievais lançaram mão do princípio filosófico esco­lástico de que a alma é a “forma substancial” do corpo para sustentar uma teoria de “animação retardada”, segundo a qual o feto não teria inicialmen­te senão uma alma animal ou vegetal, e a alma humana e racional só seria infundida quando ele já estivesse suficientemente desenvolvido e pudesse cons­tituir um “receptáculo” adequado para essa forma substancial. Com semelhante teoria, era impossível determinar um momento que não fosse totalmente arbitrário para a “animação” – o que, aliás, alguns esco­lásticos fizeram (40 ou 80 dias depois da concepção). A embriologia moder­na ajudou os teólogos a rejeitar essa teoria e a retornar à afirmação mais antiga (defendida, por exemplo, pelos Padres da Igreja como São Basílio e São Gregório Magno) de que a alma racional está presente desde o momen­to da concepção. Como vemos, a filosofia está em débito para com a fisiolo­gia graças a essa compreensão mais científica do estágio a partir do qual o organismo humano passa a estar fundamentalmente constituído, ou seja, do estágio básico da fecundação, em que já pode receber a sua “forma substan­cial”.

A Arbitrariedade da posição abortista

É significativo que os abortistas ou os defensores da “livre escolha da mãe” nunca falem de crianças não-nascidas. Usam rigorosamente o termo “embrião” ou “feto”. Se lhes perguntarmos (uma pergunta que não é muito do seu agrado) como definem o que é um feto, falam de “vida humana potencial” ou até, ocasionalmente, de “vida potencial”. E se forem obrigados a levar avante a sua linha pseudo-jurídica ou pseudo-filosófica, defenderão que essa vida potencial não se torna vida humana atual e real – com os correspondentes direitos – senão com o nascimento, ou pelo menos enquanto o feto não for viável.

Isto, evidentemente, é pura arbitrariedade, e não pode basear-se em qualquer princípio ou fenômeno científico ou racional. É puro produto do preconceito. Pode alguém defender a sério que o que hoje nasceu é humano, mas que o que estava no ventre ontem não o era? E se é uma questão de viabilidade, poderemos dizer que uma criança recém-nascida é significativamente mais viável do que uma criança ainda no seio materno? Pelo contrário, é a todas as luzes menos viável. Precisa de mais cuidados – e não de menos – para ser alimentada. Requer maiores precauções para a sua segurança, por exemplo para não cair escada abaixo, precauções que a sua mãe lhe garantia muito mais eficazmente quando ainda a trazia no seu ventre.

Se não se adquire personalidade humana e direitos humanos enquanto não se é realmente viável, enquanto não se pode sobreviver por recursos próprios, é duvidoso que qualquer criança com menos de 6 ou 7 anos seja realmente um ser humano. Repito: todos os argumentos científicos são contrários à posição dos abortistas e favoráveis à posição católica. Se alguém quiser comprová-lo na prática, basta que pergunte a um médico não-católico que tenha realizado um aborto se o que ele extraiu do útero não passava de uma coisa, ou se era um ser vivo. E, se era um ser vivo, de que espécie era? Não, a posição abortista não se baseia na ciência nem na razão; baseia-se em preconceitos e interesses, nenhum dos quais verdadeiramente humanitário.

A Mulher que aborta….

Como sacerdote, aprendi a distinguir entre o pecado e o pecador. Aprendi também que, embora possamos e às vezes devamos julgar as ações e os acontecimentos, é difícil e arriscado julgar as pessoas. Só Deus pode fazê-lo. Num momento de tentação, uma mulher grávida – que não quer ter o seu filho e decide abortar – pode ter sido influenciada por incontáveis fatores: fatores de formação pessoal, de pressões provenientes do ambiente, dos parentes ou amigos, fatores de solidão, de medo, de tensão nervosa … Não podemos julgar o grau de culpa que uma mulher pode ter em tal situação. Somente Deus, repito, que leva todas essas coisas em conta, pode julgar. Podemos, contudo, julgar outra coisa, ou pelo menos formar uma opinião segura a esse respeito: o que acontecerá com essa mulher, em termos humanos, conforme se arrependa ou não do que fez.

Não nos enganemos. A mulher que praticou um aborto sabe que procurou a morte, o assassinato, do seu próprio filho, do fruto do seu ventre. E passa a ter uma profunda ferida na sua consciência. Uma sociedade permissiva pode não encontrar dificuldade em perdoa-la, mas o problema é que ela não será capaz de perdoar-se ou de esquecer o que fez. E a minha experiência é que, nos casos excepcionais em que uma mulher conseguiu silenciar a sua consciência, fê-lo à custa de um suicídio moral, destruindo a sua própria consciência, o sentido dos valores, desfeminizando-se e desumanizando-se a si mesma. O seu instinto maternal em particular, e em geral toda a sua capacidade de amar, sofreram uma lesão enorme e irreparável. A Igreja nunca condena as pessoas. Se condena o pecado, se condena as ações erradas, é para ajudá-las a ter idéias claras, para ajudá-las a olhar para a própria consciência (que também as acusará se cometeram algum erro), e para que então, pelo arrependimento, possam encontrar o perdão e a paz. Os que negam a culpa das ações imorais são os que podem estar condenando as pessoas a uma vida terrível de angústia moral.

Personalização e Despersonalização

Isto leva-nos a tocar um outro pseudo-argumento dos abortistas, segundo o qual o caráter de pessoa da criança não-nascida deveria depender não de fenômenos biológicos, nem de fatores vinculados ao tempo (como a viabilidade ou o nascimento), mas de um fator psicológico. Baralhando conceitos pedidos de empréstimo à psicologia moderna –conceitos que sublinham a importância dos relacionamentos intersubjetivos no processo da “personalização” -, alguns abortistas vêm sugerindo que a criança não-nascida não pode propriamente ser olhada como uma pessoa antes de ser aceita pelos pais; se falta essa aceitação – continua o argumento -, não poderá ser considerada pessoa nem possuir direitos humanos. Este argumento incorre no mesmo tipo de problema que o argumento da “viabilidade”: “prova” demasiado. Sobre essa base, uma criança de um ou de cinco anos não seria uma pessoa, caso os seus pais não a “aceitassem”.

Obviamente, é antes e não depois de gerar uma criança que os pais têm que decidir se a querem ou não. Antes, era uma possibilidade; precisamente, uma simples “potencialidade”. Depois, é uma realidade, e essa realidade é uma pessoa, quer tenha um dia de idade ou um ano. É uma pessoa que, por isso mesmo, possui personalidade no sentido humano mais pleno, uma personalidade que a torna sujeito de direitos . (Poderíamos acrescentar aqui aos argumentos embriológicos referidos acima, um argumento extraído da ciência jurídica. Todas as jurisprudências antigas e modernas atribuem à criança não-nascida plena personalidade jurídica, expressa por exemplo na sua capacidade de herdar.)

Existe, naturalmente, uma certa ambigüidade no argumento da personalização. Mas é uma ambigüidade que, quando vem à tona, se volta contra os próprios defensoresdesse argumento. Como é óbvio, se alguém perguntar se a criança não nascida tem a sua própria “personalidade” no sentido popular do termo – no sentido de possuir uma forma de ser totalmente pessoal de pensar, de falar e de agir -, a resposta será não. Neste sentido, a criança não nascida não é uma criança “personalizada”, quer tenha um dia ou um mês de idade, mas também está muito pouco personalizada a criança de três ou de cinco anos. Na medida em que “personalização” significa realmente o processo de desenvolvimento de uma personalidade individual, designa um processo que leva anos a completar-se; na verdade, todos os anos da vida. Somente com os anos – com tudo o que os anos trazem de experiência humana: de generosidade ou de egoísmo, de virtudes e de pecados, de respeito e de amor aos outros ou ausência destes, de capacidade de assumir responsabilidades ou de rejeitá-las – é que uma pessoa desenvolve a sua personalidade própria.

Auto-Realização para mulheres “liberadas”?

O argumento da personalização – que não se aplica ao caso da criança não-nascida (que personalidade pode ser desenvolvida por uma pessoa a quem se mata?) – aplica-se, pelo contrário, muito clara e precisamente ao caso da mãe que aborta. Pois aqui podemos perguntar e prever em ampla medida:

“Que tipo de personalidade uma pessoa que mata irá desenvolver?”

A psicologia moderna insiste em que os homens e as mulheres se “realizam” ou se “completam” sobretudo no seu relacionamento com as outras pessoas, e que uma das provas mais evidentes da presença ou da ausência de personalidade é a capacidade ou incapacidade de estabelecer relacionamentos interpessoais. Que personalidade será desenvolvida por uma mulher que, diante do mais íntimo relacionamento interpessoai imaginável – o relacionamento entre a sua pessoa e a pessoa do filho que ela concebeu, o relacionamento verdadeiramente único entre o seu corpo e o corpo do filho no seu ventre -, rejeita e destrói esse relacionamento, matando o seu filho e entregando o corpo desse filho a um incinerador de hospital? Que outros relacionamentos poderão permitir que essa mulher “se realize”, se a sua reação ao sagrado relacionamento mãe-filho foi extirpar do coração os seus mais íntimos instintos de maternidade e de compaixão, extirpando do seu corpo o filho?

É triste ver a propaganda “pró-escolha” apresentar o aborto como um “direito” de toda a mulher, reivindicando esse direito precisamente em nome da “liberação” das mulheres. É uma triste propaganda, essa que só pode tornar amarguradas e tristes as mulheres que lançam mão desse “direito”. Quem irá “liberá-las” depois de ganharem consciência do que fizeram, violando os seus instintos humanos mais íntimos?

Há alguns anos, quando se debatia na Inglaterra a proposta de “liberalização” da lei do aborto, lembro-me de ter visto um programa de TV em que se entrevistava uma série de mulheres, cada uma das quais tinha cometido vários abortos. As perguntas do entrevistador visavam evidentemente “provar” um ponto: que nem física nem psicologicamente elas tinham sofrido qualquer efeito adverso proveniente desses abortos. As respostas das mulheres corroboraram totalmente essa tese. Contudo, ainda guardo viva a lembrança das suas faces rígidas, do seu modo de responder, da sua evidente preocupação por justificar-se, da sua insistência em que nunca tinham sido incomodadas pelo menor sentimento de repugnância ou de remorso, do seu ar de orgulho e de triste solidão; numa palavra, a impressão do que mencionei acima: de uma brutal desfeminização e desumanização.

Gostaria agora de examinar dois pontos: duas novas “recomendações” ou argumentos que tendem a aparecer cada vez com mais freqüência nas campanhas pró-aborto. Vou considerá-los rapidamente, não porque esses argumentos sejam menos importantes – são terrivelmente significativos e importantes -, mas simplesmente porque não disponho de espaço para qualquer tratamento mais extenso.

O Argumento Eugenésico.

O primeiro argumento é a chamada indicação “eugenésica”; em outras palavras, a probabilidade ou possibilidade de que a criança já concebida possa nascer com algum defeito mental ou físico. Todas as leis abortistas modernas incluem uma cláusula legalizando o aborto por motivos eugenésicos. A cláusula costuma ser muito curta, e muitas pessoas provavelmente olham-na como uma recomendação mais, do mesmo tipo mais ou menos que as outras.

Mas não é assim! Se a filosofia de vida que subjaz às outras indicações é repelente, a ideologia subjacente a esta cláusula é infinitamente pior. Esclareçamos muito bem este ponto: tal recomendação não é fruto de um mero hedonismo egoísta, nem produto de um materialismo individualista sem senso de direção nem de valores … Através dessa pequena cláusula, há uma filosofia repugnante, poderosa e evidente, que vem abrindo caminho – um caminho legal- nos países ocidentais. A filosofia, ou melhor, a ideologia dessa cláusula é a da pureza racial, e difere muito pouco, ou nada, da ideologia hitlerista. Pois o eugenismo, afinal de contas, significa apenas isto: não queremos nenhuma raça inferior, não queremos nenhum indivíduo sub-standard, “abaixo do padrão”, que possa perturbar a tranqüila contemplação do nosso Admirável Mundo Novo, pedindo compaixão, clamando por caridade e afeição, ou simplesmente recordando-nos que existe um Deus a quem devemos ser gratos pelas coisas boas de que desfrutamos.

Vidas que não são dignas de serem vividas

Não esqueçamos o que essa cláusula significa na prática. Significa que, de cada vez que é aplicada, uma ou várias pessoas estão fazendo o seguinte juízo: “Na nossa opinião, essa vida” – e estão falando de outro ser humano já existente – “essa vida não é digna de ser vivida. É (ou melhor, pode tornar-se mais tarde) tão defeituosa que é melhor para ela morrer agora”.

Esta crítica, devemos notá-lo, aplica-se também aos que sustentam que o feto ainda não é uma pessoa humana, pois estão fazendo o mesmo juízo: “Essa vida que – a menos que nós a matemos – se tornará uma pessoa humana, será uma vida humana que não merecerá ser vivida. Portanto, matemo-la” .

A única base essencial para o que chamamos direitos democráticos é que todo o ser humano é um valor inviolável; e que ninguém – nenhum Estado, nenhuma autoridade, nenhuma pessoa – pode decidir que a vida do outro é inútil e dispensável. Pode-se chegar à conclusão de que alguém está vivendo em condições indignas de um ser humano, e a partir daí fazer todos os esforços para remediar essas condições. Isso é humanitarismo. O que não se pode fazer, porém, em nome do humanitarismo, é julgar que alguém não é digno de viver mesmo que tenha de viver em condições indignas de um ser humano. Este juízo não seria um juízo humanitário, mas totalitário. Quando alguém o emite, põe fim ao humanitarismo.

Consequências do Eugenismo

Os argumentos eugénesicos estão sujeitos a inúmeras outras críticas. Limitar-me-ei a apontar duas:

a) Nunca se pode fazer com certeza absoluta o prognóstico de que uma criança pode nascer defeituosa. Se se praticam abortos com base nesses prognósticos, o resultado será que, numa porcentagem bastante elevada (segundo algumas estimativas, até 50%), se matarão crianças totalmente normais. Seria muito mais lógico, se se parte do ponto de vista eugenésico (e, se os eugenistas se consideram humanitários, seria também muito mais humanitário para eles) deixar todas essas gestações chegarem ao seu termo e, uma vez nascidas as crianças, matar aquelas que se viesse a comprovar que realmente eram defeituosas. Se alguém diz que isto é demasiado repugnante, concordo plenamente. Mais repugnante ainda é a lógica do eugenismo.

b) Se, em virtude do princípio de que uma vida defeituosa não merece ser vivida, for humano matar a fim de prevenir o nascimento de uma pessoa que pode vir a tornar-se defeituosa, é inquestionavelmente mais humano ainda matar uma pessoa que já se tornou defeituosa, matar uma pessoa defeituosa já nascida, quer tenha um dia ou um ano de idade, ou vinte ou quarenta ou sessenta. E essa pessoa pode ser morta porque (é um ponto inerente ao mesmo princípio) não possui a vida humana com pleno direito. O seu defeito mental ou físico tornou defeituoso o seu direito à vida. Pode ser morta, não talvez pelo “defeito” de ser judia, mas por ser psicótica, aleijada, cronicamente doente ou simplesmente velha.

A aceitação do aborto eugenésico significa – esteja o público consciente ou não dessa realidade – a aceitação não só dos princípios subjacentes à eutanásia, mas de todos os princípios da política de pureza racial: o princípio da eliminação do deficiente, dos que são indignos de viver, dos que não estão à altura dos padrões de qualidade estabelecidos para a raça humana …

Mas certamente – já estou ouvindo a objeção – tudo isto é bastante exagerado, não é? Não. Não é nenhum exagero. É apenas uma projeção. Simplesmente desenvolve as conseqüências lógicas das novas filosofias abortistas e projeta-as sobre a vida prática de um futuro talvez não muito longínquo.

O mundo de amanhã será produto das tendências e das ideologias que prevalecerem no mundo de hoje. Como será esse mundo? É algo a ser pensado, enquanto ainda houver tempo para pensar. Não é este o momento de brincarmos de avestruzes, escondendo as nossas cabeças na areia. É de uma responsabilidade elementar ler os sinais dos tempos, ver para onde se dirige uma grande parte da nossa civilização moderna, e perguntar-nos se nós também queremos seguir nessa direção. Preferir não nos fazermos essa pergunta é o caminho mais seguro para que cedo ou tarde nos vejamos arrastados nessa mesma direção.

Auto-Excomunhão da Humanidade…

Seja-me permitido enfatizar mais uma vez o que disse antes. O aborto – quer tolerado, quer legalizado, quer olhado com indiferença ou aprovação – representa um extremo de barbárie difícil de ser superado. Poder-se-ia muito bem ver nele um símbolo de como a nossa civilização parece inclinada a destruir as verdadeiras sementes de sobrevivência que traz dentro de si.

É compreensível que a Igreja deseje sublinhar a gravidade desse crime abominável”, decretando uma excomunhão ipso facto não somente para a mulher que pratica o aborto, mas também para todos os que intervêm nele diretamente, mesmo que somente a tenham aconselhado a praticá-lo (Código de Direito Canônico, cânones 1398 e 1329).

Um abortista – continuo a pensar sobretudo naqueles que procuram justificar esse crime – excomunga-se a si mesmo da mais elementar comunidade humana, a comunidade daqueles que se esforçam por respeitar os direitos humanos dos outros, seja qual for a sua religião, raça, cor, posição social, estado de saúde físico ou mental, ou idade.

O Argumento demográfico

O segundo argumento recente que se vem utilizando em favor do aborto é o argumento demográfico. Existem já países em que o aborto é imposto como um modo de controlar a natalidade. Em outros lugares, por enquanto, a situação é a inversa, isto é, a propaganda constante sobre a superpopulação atua como um fator favorável ao aborto. Na medida em que a opinião pública vai sendo levada a pensar que não se deve ter mais do que um ou dois filhos, que se trata de um dever imperativo e urgente, que o seu não cumprimento deve ser encarado, a princípio, como uma total falta de responsabilidade e, a seguir, como um crime flagrante contra a sociedade … – então torna-se progressivamente mais fácil persuadir o público de que o aborto não é um crime; que, longe de ABORTO ser um crime, pode ser o melhor meio e o mais apropriado de levar as pessoas a cumprir um estrito dever,

É lógico que aqueles que simpatizam com este “argumento”, devem também ficar encantados com a idéia de que o aborto é, sem sombra de dúvida, o meio mais eficaz de conter o crescimento da população. Não se requer nenhum grau excepcional de inteligência para compreender que o melhor meio de assegurar que não haverá excesso de população é matar os ”’excedentes”.

Este é, em toda a sua crueza, o modo de pensar de algumas pessoas, embora ainda não ousem expressá-lo de maneira tão brutal. Mas, na verdade, o assunto é brutal; a tal ponto que poderíamos muito bem pedir aos que pensam desse modo que nos expliquem se há alguma diferença real, como meio, entre o bisturi e a metralhadora.

BURHKE, Cormac – Amor e Casamento – Tradução de Grabriel Périssé – Quadrante  – São Paulo – 1991 – pags 173 – 189.

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