Apologia (Parte 1)

» CAPÍTULO I

Governantes do Império Romano:

  • Se, sendo constituídos para a administração da justiça em vosso elevado Tribunal, sob os olhares de todos os cidadãos, ocupando ali a mais elevada posição no Estado, vós não podeis abertamente inquirir e perscrutar, diante de todo o mundo, a verdade real com respeito às perseguições feitas contra os Cristãos
  • Se, somente nesse caso, tendes receio ou ficais inibidos para exercer vossa autoridade, fazendo uma inquirição pública com os cuidados que promovem a justiça
  • Se, finalmente, os extremos rigores usados para com nosso povo, recentemente, em julgamentos privados, são para nós obstáculo para defender-nos perante vós

então, seguramente não podeis impedir de a Verdade chegar aos vossos ouvidos pelas vias secretas de um silencioso livro.

A Verdade não tem como apelar para vos fazer verificar sua condição, porque isso não promove vossa curiosidade por Ela. Ela sabe que não é senão uma transeunte na terra, e que entre estranhos, naturalmente encontra inimigos. E, mais do que isso, sabe que sua origem, sua habitação natural, sua esperança, sua recompensa, sua honra estão lá em cima. Uma coisa, enquanto isso, Ela deseja ansiosamente dos governantes terrestres: não ser condenada sem ser conhecida. Que dano pode causar às leis – supremas em seu poder – conceder-lhe ser ouvida? Absolutamente nada lhe prejudicaria e sua supremacia não seria mais distinguida ao condená-la, mesmo depois que Ela apresentasse sua defesa? Mas se for pronunciada uma sentença contra Ela, sem ter sido ouvida, ao lado do ódio de uma injusta ação, vós incorrereis na suspeita merecida de assim agirdes com alguma intenção que é injusta, como não desejando ouvir o que vós não estais capacitados a ouvir e a condenar.

Colocamos isto ante vós como primeira argumentação pela qual insistimos que é injusto vosso ódio ao nome de “Cristão”. E a verdadeira razão que parece escusar esta injustiça (eu diria ignorância) ao mesmo tempo a agrava e a condena. Pois que o que é mais injusto do que odiar uma coisa da qual nada sabeis, mesmo se pensais que ela mereça ser odiada? Algo é digno de ódio somente quando se sabe que é merecido. Mas sem esse conhecimento, por que se reivindicar justiça? Pois se deve provar, não pelo simples fato de existir uma aversão, mas pelo conhecimento do assunto. Quando os homens, portanto, cultivam uma aversão simplesmente porque desconhecem inteiramente a natureza da coisa odiada, quem diz que não se trata de uma coisa que exatamente não deveriam odiar?

Assim, confirmamos que tanto são ignorantes enquanto nos odeiam, e odeiam descabidamente, quanto quando continuam em sua ignorância, sendo uma coisa o resultado da outra, se não o instrumento da outra. A prova de sua ignorância, ao mesmo tempo condenando e se escusando de sua injustiça, é esta – odeiam o Cristianismo porque não conhecem nada sobre ele nem querem conhecê-lo antes de por a todos debaixo de sua inimizade.

Quantos, se antes foram seus inimigos, tornam-se seus discípulos. Simplesmente aprendendo sobre eles, logo começam a odiar o que antes tinham sido e a professar o que antes tinham odiado. E o número destes é tão grande que atraem a vossa preocupação. O clamor é de que o Estado está cheio de cristãos – que estão nos campos, nos vilarejos, nas ilhas; levantam-se lamentações, como se por alguma calamidade, pessoas de ambos os sexos, de todas as idades e condições, mesmo de classe alta, estão se convertendo à profissão de fé cristã.

Entretanto, não ocorre a ninguém o pensamento de que estão deixando de ver alguma coisa boa. Não se permitem que nenhum pensamento mais justo chegue à sua mente, não desejam fazer um julgamento mais correto. Somente neste caso fica adormecida a curiosidade da natureza humana. Preferem ficar ignorantes, embora aos outros o conhecimento tenha trazido a felicidade.

Anacarse reprova o estúpido prazer de criticar os cultos. Quanto mais não reprovaria ele o julgamento daqueles que sabe que podem ser denunciados por homens que são inteiramente ignorantes! Porque deles preconcebidamente não gostam, não querem saber mais. Assim, prejulgam aquilo que não conhecem até que, caso venham a conhecê-lo, deixem de lhe ter inimizade. Mas isso desde que pesquisem e nada encontrem digno de sua inimizade, quando deixam, então, certamente de ter uma aversão injusta. Entretanto, se seu mau caráter se manifesta, em vez de abandonarem o ódio encontram mais uma forte razão para perseverarem nesse ódio, mesmo sob a própria autoridade da justiça.

Mas argumenta alguém: uma coisa não é boa simplesmente porque as multidões se convertem a ela, pois que quantos são por sua natureza inclinados para o que é mal?! Quantos se desviam para os caminhos do erro?! Isso é verdade, sem dúvida. Contudo uma coisa completamente má, nem mesmo aqueles que a ela são levados ousam defendê-la como boa. A natureza encobre tudo o que é mau com um véu, seja de medo seja de vergonha. Por exemplo, vedes que criminosos ficam ansiosos para se esconderem eles mesmos, evitam de aparecer em público, ficam tremendo quando são caçados, negam sua culpa quando são acusados e, mesmo quando são submetidos à tortura, não confessam facilmente, nem sempre chegam a confessar; e quando não há dúvidas sobre sua culpa, lamentam o que fizeram. Em suas confissões admitem terem sido impelidos por disposições malignas, até põem a culpa seja no destino, seja nas estrelas. São incapazes de reconhecerem que aquilo veio deles, porque eles próprios sabem que aquilo é mau.

Mas o que tem isso de semelhante com o caso dos cristãos? Eles se envergonham ou se lamentam de não terem sido cristãos há mais tempo. Se são apontados cristãos, disso se gloriam. Se são acusados, não oferecem defesa. Interrogados, fazem uma confissão voluntária. Condenados, agradecem… Que espécie de mal é este que não apresenta as peculiaridades comuns do mal, do medo, da vergonha, do subterfúgio, do arrependimento, do remorso? Que mal, que crime é este de que o criminoso se alegra? Serem acusados cristãos é seu mais ardente desejo, serem punidos por isso é sua felicidade! Vós não podeis chamar isto de mal – vós que continuais convictos de nada saberdes do assunto.

» CAPÍTULO II

Se, repetindo, é certo que somos os mais malévolos dos homens, por que nos tratais tão diferentemente de nossos companheiros, ou seja, de outros criminosos, sendo justo que o mesmo crime deva receber o mesmo tratamento? Quando os ataques feitos contra nós são feitos contra outros, a esses são permitidos falarem ou contratar advogados para demonstrar sua inocência. Eles têm plena oportunidade de resposta e de discussão.

De fato, é contra a lei condenar alguém sem defesa e sem audiência. Somente os cristãos são proibidos de dizerem algo em sua defesa, na salvaguarda da verdade, para ajudar ao juiz numa decisão de direito. Tudo o que é levado em conta é que o público, com ódio, pede a confissão de um “nome”, não o exame da acusação, enquanto em vossas investigações ordinárias judiciais, no caso de um homem que confessa assassinato, ou sacrilégio, ou incesto, ou traição – para se ter idéia do crime de que são acusados – vós não vos contentais em imediatamente emitir uma sentença. Não o fazeis até que examinais as circunstâncias da confissão, qual é o tipo do crime, quantas vezes, onde, de que maneira, quando ele o fez, quem estava com ele e quem tomou parte com ele no crime.

Nada semelhante é feito em nosso caso, embora as falsidades disseminadas a nosso respeito devessem passar pelo mesmo exame para saber quantas crianças foram mortas por cada um de nós, quantos incestos cometemos cada um de nós na escuridão, que cozinheiros, que biltres foram testemunhas de nossos crimes. Ó que grande glória para os governantes que trouxessem à luz alguns cristãos que tivessem devorado uma centena de crianças. Mas, em vez disso, constatamos que mesmo uma inquisição, no nosso caso, é proibida.

Plínio, o Moço, quando era governador de uma província, tendo condenado alguns cristãos à morte, e abalado outros em sua firmeza, mas ficando aborrecido com o grande número deles, procurou, em última instância, o conselho de Trajano, o imperador reinante, para saber o que fazer com eles. Explicou a seu senhor que, com exceção de uma recusa obstinada de oferecer sacrifícios, nada encontrou em seus cultos religiosos a não ser reuniões de manhã cedinho em que cantavam hinos a Cristo e a Deus, confirmando que, em suas casas, seu modo de vida era um geral compromisso de ser fiel a sua religião, proibido-se assassínios, adultério, desonestidade e outros crimes. A respeito disso, respondeu Trajano que os cristãos não deveriam de modo algum ser procurados, mas se fossem trazidos diante dele, Plínio, deveriam ser punidos.

Ó miserável libertação – de acordo com o caso, uma extrema contradição! Proíbe-se que sejam procurados, na qualidade de inocentes, mas manda-se que sejam punidos como culpados. É ao mesmo tempo misericordioso e cruel. Deixa-os em paz, mas os pune. Por que entrais num jogo de evasão convosco mesmo, ó julgamento? Se vós os condenais, por que também não os inquiris? Se não quereis inquiri-los, por que não os absolveis?

Postos militares estão espalhados através de todas as províncias para prenderem ladrões. Contra traidores e inimigos públicos, todo cidadão é um soldado. Buscas são feitas mesmo de seus aliados e auxiliares. Somente os cristãos não devem ser procurados, embora possam ser levados e acusados diante do juiz, se uma busca tiver um resultado diferente do previsto. Deste modo, condenais um homem que ninguém deseja perseguir, quando ele vos é apresentado e que, nem por isso, merece punição. Suponho que não por sua culpa, mas porque, embora seja proibido persegui-lo, ele foi encontrado.

Novamente, neste caso, não concordais conosco sobre os procedimentos ordinários de julgamento de criminosos, porque, no caso de negarem, aplicais a tortura para forçar uma confissão. Aos cristãos somente torturais para fazê-los negarem. É como se considerásseis que se somos culpados de algum crime, nós o negaríamos, e vós com vossas torturas nos forçaríeis a uma confissão. Mas não podeis pensar assim pois, na verdade, nossos crimes não requerem tal investigação simplesmente porque já estais cientes por nossa confissão do nome de nosso crime. Estais diariamente acostumados a isso, sabendo de que crime se trata porque senão exigiríeis uma confissão completa de como o crime foi executado.

Deste modo, agis com a máxima perversidade quando verificando nossos crimes comprovados por nossa confissão do nome de Cristo, nos levais à tortura para obter nossa confissão que não consiste senão em repudiar tal nome, e que logo deixais de lado os crimes de que nos acusais quando mudamos nossa confissão. Suponho que, embora que acreditando que sejamos os piores dos homens, não desejais que morramos. Não há dúvida de que, por conseguinte, estais habituados a compelir o criminoso a negar e a ordenar o homem culpado de sacrilégio a ser torturado se ele persevera em sua confissão. É esse o sistema? Mas, então, não concordais que sejamos criminosos, e nos declarais inocente, e como inocentes que somos, ficais ansiosos para que não perseveremos na confissão que sabeis que vos fará assumir uma condenação por necessidade, não por justiça.

“Sou cristão” – o homem brada. Ele está lhe dizendo o que é. Vós, porém, desejaríeis ouvi-lo dizer que não o é. Assumindo vosso cargo de autoridade para extorquir a verdade, fazeis o máximo para ouvir uma mentira nossa. “Eu sou o que me perguntais se eu sou” – ele diz. Por que me torturais como criminoso? Eu confesso e vós me torturais. O que me faríeis se tivesse negado? Certamente a outros vós não daríeis crédito se negassem. Quando nós negamos, vós logo acreditais. Essa perversidade vossa faz suspeitar que há um poder escondido no caso, sob a influência do qual agis contra os hábitos, contra a natureza da justiça pública, até mesmo contra as próprias leis. Pois que – salvo se estou errado – as leis obrigam a que os malfeitores sejam procurados e não que sejam acobertados. A lei foi feita para que as pessoas que praticarem um crime sejam condenadas, e não absolvidas. Os decretos do Senado, as instruções dos vossos superiores expõem isso claramente. O poder do qual sois executores é civil, não uma tirânica dominação. Entre tiranos, de fato, os tormentos são utilizados para serem aplicados como punições; entre vós são mitigados como um instrumento de interrogatório. Guardai vossa lei como necessária até que seja obtida a confissão. E se a tortura é antecipada pela confissão, não há necessidade dela. A sentença foi passada. O criminoso deve ser entregue ao castigo devido e não libertado.

De acordo com isso, ninguém anseia pela absolvição do culpado, não é certo desejar isso, e assim ninguém nunca deve ser compelido a negar. Bem, julgais um cristão um homem culpado de todos os crimes, um inimigo dos deuses, do Imperador, das leis, da boa moral de qualquer natureza. Contudo vós o obrigais a negar, porque, assim, podeis absolvê-lo, o que sem sua negação não podeis fazê-lo. Vós agis rápido e desmereceis as leis. Quereis que ele negue sua culpa, porque podeis sempre, mesmo contra sua vontade, isentá-lo de censura e livrar-lhe de toda culpa em referência a seu passado. De onde vem essa estranha perversidade da vossa parte? Como não refletis que uma confissão espontânea é mais digna de crédito do que uma negação obrigada? Considerai que, quando compelido a negar, a negação de um homem pode ser feita de má fé, e se absolvido, ele pode, agora e ali, logo que o julgamento termine, rir da vossa hostilidade; e um cristão igualmente.

Vendo, então, que em tudo agis conosco diferentemente de que com outros criminosos, preocupados por um único objetivo – o de obter de nós o nosso nome (na verdade, não nos cabe dizer que os cristãos não existam) – fica perfeitamente claro que não há crime de nenhuma espécie nesse caso, mas simplesmente um nome que um determinado sistema – mesmo indo contra a verdade – persegue com sua inimizade. E age assim principalmente com o objetivo de se assegurar que os homens não venham a ter como certo o que conhecem como certo e de que esse sistema é completamente desconhecedor.

Consequentemente, também, acontece que eles acreditam em coisas sobre nós das quais não têm prova, sobre as quais não estão inclinados a pesquisar, incomodados com as perseguições. Eles gostariam mais de confiar, pois está provado que nada há de fundamentado contra os cristãos. Com esse nome tão hostil àquele poder rival – seus crimes sendo presumidos, não provados – eles poderiam ser condenados simplesmente por causa de sua própria confissão. Assim, somos levados à tortura se confessamos e somos punidos se perseveramos, mas se negamos somos absolvidos porque toda a hostilidade é contra o nome.

Finalmente, por que ides constar em vossas listas que tal homem é cristão? Por que não também que ele é um criminoso, por que não um culpado de incesto ou de outra coisa vil de que nos acusais? Somente em nosso caso, ficais incomodados ou envergonhados de mencionar os nomes verdadeiros de nossos crimes. Se ser chamado “Cristão” não implica em nenhum crime, esse nome é seguramente muito odiado quando por si só constitui crime.

» CAPÍTULO III

Que pensarmos disto: a maioria do povo tão cega bate suas cabeças contra o odiado nome de “Cristão”? Quando dão testemunho de alguém, eles confundem com aversão o nome de quem testemunham. “Gaio Seius é um bom homem” – diz alguém… “só que é cristão”. E outro: “Fico atônito como um homem inteligente como Lúcio pode de repente se tornar cristão”. Ninguém considera necessário apreciar se Gaio é bom ou não, e Lúcio, inteligente ou não. O que conta no caso é se é cristão ou se é cristão embora sendo inteligente e bom. Eles louvam o que conhecem e desprezam aquilo que não conhecem. Baseiam seu conhecimento em sua ignorância embora, por justiça, preferencialmente se deva julgar o que é desconhecido pelo que é conhecido e não o que é conhecido pelo que é desconhecido.

Outros, no caso de pessoas a quem conheceram antes de se tornarem cristãos, que conheciam como mundanas, vis, más, aplicam-lhes a marca da qualidade que verdadeiramente apreciam. Na cegueira de sua aversão, tornam-se grosseiros em seu próprio julgamento favorável: “Que mulher era ela! Que temerária! Como era alegre! Como ele era jovem! Que descarado! Como era amigo do prazer! – E pena, se tornaram cristãos!”.

Assim, o nome odiado é usado preferencialmente a uma reforma de caráter. Alguns até trocam seus confortos por este ódio, satisfazendo-se em cometer uma injúria para livrarem sua casa dessa sua mais odiosa inimizade. O marido, agora não mais ciumento, expulsa de sua casa a esposa, agora casta. O pai, que costumava ser tão paciente, deserda o filho, agora obediente. O patrão, outrora tão educado, manda embora o servo, agora fiel. Constitui grave ofensa alguém reformar sua vida por causa do nome detestado. Bondade é de menos valor do que o ódio aos Cristãos.

Bem, então, se tal é a aversão pelo nome, que censura podeis vós aplicar a nomes? Que acusação podeis levantar contra simples designações, a não ser que o nome indique algo bárbaro, algo desgraçado, algo vil, algo libidinoso. Mas Cristão, tanto quanto indica o nome, é derivado de “ungido”. Sim, e mesmo quando é pronunciado de forma errada por vós, “Chrestianus”, – por vós que não sabeis precisamente o nome que odiais – ele lembra doçura e benignidade.

Odiais, portanto, gratuitamente, um nome inocente.

Mas o especial motivo de desagrado com a seita é que lembra o nome de seu Fundador. Existe novidade numa seita religiosa que dá a seus seguidores o nome de seu Mestre? Não são os filósofos designados com o nome dos fundadores de seus sistemas: Platônicos, Epicuristas, Pitagóricos? Não são os Estóicos e Acadêmicos assim chamados também por causa dos lugares nos quais se reuniam e permaneciam? Não são os médicos chamados por nome derivado de Erasistrato, os gramáticos, de Aristarco, e também os cozinheiros, de Apício? E, contudo, a exibição do nome, derivado do fundador original, ou qualquer nome designado por ele, não ofende a ninguém. Não há dúvida de que se a seita se comprova maléfica, e, igualmente, mau seu fundador, isso nos leva a considerar maléfico o nome e nos merece aversão o caráter seja da seita, seja do autor. Antes, contudo, de assumir uma aversão ao nome, sois obrigados a julgar a seita pelo que é o autor, ou o autor pelo que é a seita.

Mas, no caso em questão, sem nenhum exame ou conhecimento de ambos, o simples nome se torna objeto de acusação; o simples nome é atacado, e somente uma palavra leva à condenação da seita e de seu autor, conquanto a ambos desconheceis, mas apenas porque eles têm tal e tal nome, não porque foram julgados por algo errado.

» CAPÍTULO IV

Assim, tendo feito essas observações como se fossem um prefácio, pelo qual mostro em verdadeiras cores a injustiça do nosso inimigo público, posso agora fundamentar o argumento da nossa inocência. E poderei não somente refutar as coisas de que nos acusam, como também replicar aos nossos acusadores, para que assim todos saibam que os Cristãos estão inocentes desses muitos crimes que os acusadores sabem existirem entre eles mesmos, mas que, em suas acusações contra nós, consideram vergonhosos.

São acusações – eu não saberia dizer – dos piores homens contra os melhores, pois eles mesmos praticam tais crimes; [acusam] contra aqueles que, no caso, apenas seriam seus companheiros de pecado!

Poderemos refutar a acusação dos variados crimes de que nos acusam cometer em segredo, já que os vemos cometendo-os à luz do dia. Como são culpados dos crimes de que somos acusados sem sentido, são merecedores de castigo, caindo no ridículo.

Mas, mesmo que nossa verdade vos refute com sucesso em todos os pontos, vem se interpor a autoridade da lei, como um último recurso, e alegais que suas determinações são absolutamente conclusivas, que devem ser obedecidas, embora de má vontade, e preferidas à verdade.

Assim, nesse assunto das leis, me entenderei primeiramente convosco como sendo elas vossos protetores escolhidos. Em primeiro lugar, quando rigidamente as aplicais em vossas declarações: “Não é legal a vossa existência”, e, com rigor sem hesitações, ordenais que assim continue, estais demonstrando a dominação violenta e injusta de uma simples tirania, afirmando que algo é ilegal simplesmente porque quereis que seja ilegal e não porque deva ser ilegal. Mas se quereis que seja ilegal porque tal coisa não merece ser legal, sem dúvida não deve ser dada permissão da lei para o que é prejudicial.

Deste modo, de fato, já está definido que o que é benéfico é legítimo. Bem, se eu verificar algo que em vossa lei proíba ser bom porque alguém concluiu assim por opinião prévia, não perdeu seu poder de me proibi-la, embora se tal coisa fosse má poderia me proibi-la?

Se vossa lei incidiu em erro, é de origem humana, julgo. Ela não caiu do céu. Não é admirável que um homem possa errar ao fazer uma lei ou cair em seus sentidos e rejeitá-la? Os Lacedemonios não emendaram as leis do próprio Licurgo, daí causando tal desgosto a seu autor que ele se calou, e se condenou a si próprio à morte por inanição? Não estais, a cada dia, fazendo esforços para iluminar a escuridão da antigüidade, eliminando e aparando com os novos machados das prescrições e editos todos os galhos obsoletos e emaranhados das vossas leis?

Severo, o mais resoluto dos governantes, não acabou somente ontem com as leis do ridículo Pápias, que compeliam as pessoas a terem filhos antes que as leis de Juliano as permitissem contrair matrimônio e isso embora tivessem a autoridade da idade a seu favor? Houve leis, também, antigamente, legislando que as partes contra as quais havia sido dada uma decisão, podiam ser cortadas aos pedaços por seus credores.

Contudo, por consenso comum, aquela crueldade foi posteriormente retirada dos regimentos, e a pena capital se transformou numa marca de vergonha. Adotando o plano de confiscar os bens dos devedores, obteve-se mais tingindo de rubor suas faces do que fazendo jorrar seu sangue. Quantas leis permanecem escondidas fora das vistas que ainda necessitam ser reformadas! Para isso, nem o número de seus anos, nem a dignidade de seus legisladores é que as recomendam, mas simplesmente se são justas; e, portanto, quando sua injustiça é reconhecida, são merecidamente condenadas.

Até mesmo os governantes as condenam. Então, por que os chamamos injustos? Não apenas! Se eles punem simples nomes, podemos chamá-los de irracionais. Mas, eles punem atos! Por que, em nosso caso, castigam atos somente com fundamento num nome enquanto nos outros casos exigem que eles sejam provados não apenas por um nome, mas pelo mal feito?

Eu sou praticante de incesto (assim o dizem): por que não fazem uma investigação sobre isso? Eu sou um matador de crianças, por que não aplicam a tortura para obterem de mim a verdade? Eu sou culpado de crimes contra os deuses, contra os Césares. Por que? Ora, eu sou capaz de me defender, por que sou impedido de ser ouvido em minha própria crença?

Nenhuma lei proíbe examinar minuciosamente os crimes que condenam, porque um juiz nunca aplica um castigo adequado se não está bem seguro de que foi cometido um crime, nem obriga um cidadão às justas cominações da lei, se não sabe a natureza do ato pelo qual está sendo punido. Não é suficiente que a lei seja justa, nem que o juiz esteja convencido da sua justiça. Aqueles dos quais se espera obediência deverão estar convencidos disto também.

Não apenas! Uma lei fica sob forte suspeita se não se preocupam que ela mesma seja examinada e aprovada. É realmente uma má lei se, não homologada, tiranizar os homens.

» CAPÍTULO V

Para mencionar algumas palavras sobre a origem de tais leis das quais estamos agora falando, cito um antigo decreto que diz que nenhum deus deve ser instituído pelo imperador antes que primeiramente seja aprovado pelo Senado.

Marco Emílio passou por essa experiência com relação a seu deus Alburno. E assim, também, acontece em nosso caso, porque entre vós a divindade é deificada por julgamento dos seres humanos. A não ser que os deuses dêem satisfação aos homens, não lhe é reconhecida a divindade: Deus deve ser propício ao homem.

Tibério, em cujos dias surgiu o nome Cristão no mundo, tendo recebido informações da Palestina sobre os acontecimentos que demonstraram claramente a verdade da divindade de Cristo, levou, adequadamente, o assunto ante o Senado com sua própria decisão a favor de Cristo. O Senado rejeitou sua proposta porque não fora ele mesmo que dera sua aprovação. O imperador manteve sua posição ameaçando com sua ira todos os acusadores dos cristãos.

Consultai vossas histórias. Verificareis que Nero foi o primeiro que atacou com seu poder imperial a seita Cristã, fazendo isso, então, principalmente em Roma. Mas nós nos gloriamos de termos nossa condenação lavrada pela hostilidade de tal celerado porque quem quer que saiba quem ele foi, sabe que nada a não ser uma coisa de especial valor seria objeto da condenação de Nero.

Domiciano, igualmente, um homem do tipo de Nero em crueldade, tentou erguer sua mão em nossa perseguição, mas possuía algum sentimento humano; logo pôs um fim ao que havia começado, chegando a restituir os direitos daqueles que havia banido.

Assim, como foram sempre nossos perseguidores, homens injustos, ímpios, desprezíveis, dos quais vós mesmos nada tendes de bom a dizer, vós tendes por costume revalidar suas sentenças sobre nós, os perseguidos. Mas entre tantos príncipes daquele tempo até nossos dias, dotados de alguma sabedoria divina e humana, assinalem um único perseguidor do nome Cristão. Bem pelo contrário, nós trazemos ante vós um que foi seu protetor, como podereis ver examinando as cartas de Marco Aurélio, o mais sério dos imperadores, cartas nas quais ele dá seu testemunho daquela seca na Germânia que terminou com as chuvas obtidas pelas preces dos cristãos, as quais permitiu que os germânicos fossem atacados. Como não pôde suspender a ilegalidade dos cristãos por lei pública, contudo, a seu modo, ele a colocou abertamente de lado e até acrescentou uma sentença de condenação, esta da maior severidade, contra os seus acusadores.

Que qualidade de leis são essas que somente os ímpios e injustos, os vis, os sanguinários, os sem sentimentos, os insanos, executam contra nós? Que Trajano por muito tempo tornou nula proibindo procurar os cristãos? Que nem Adriano, embora dedicado no procurar tudo o que fosse estranho e novo, nem Vespasiano, embora fosse o subjugador dos Judeus, nem Pio, nem Vero, jamais as puseram em prática?

Certamente, seria considerado mais natural homens maus serem aniquilados por bons príncipes, na qualidade de seus naturais inimigos, do que o serem aqueles possuidores de espirito assemelhado com o desses últimos.

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