Bento XVI e a mulher

“Por desgraça somos herdeiros de uma história de enormes condicionamentos que, em todos os tempos e em cada lugar, têm tornado difícil o caminho da mulher, desprezada em sua dignidade, esquecida em suas prerrogativas, marginalizada freqüentemente e inclusive reduzida à escravidão. Isto lhe tem impedido de ser profundamente ela mesma e tem empobrecido a humanidade inteira de autênticas riquezas espirituais. Certamente não seria fácil assinalar responsabilidades precisas, considerando a força das sedimentações culturais que, ao longo dos séculos, tem plasmado mentalidades e instituições. Porém, se nisto não têm faltado, especialmente em determinados contextos históricos, responsabilidades objetivas inclusive em não poucos filhos da Igreja, o sinto sinceramente”. Com esta sensibilidade, com esta afirmação se expressava João Paulo II na carta que em 1995 escreveu às mulheres.

É impossível e inútil o querer imaginar uma Igreja sem a contribuição feminina. Tão sem sentido que jamais um bom cristão poderá escondê-la e, muito menos, negá-la. Na homilia da Sexta-feira Santa passada ante a Cúria Romana e o Santo Padre, o pregador da casa pontifícia, Pe. Rainero Cantalamesa, recordou que as mulheres são a esperança de um mundo mais humano, que nossa civilização “tem necessidade de um coração para que o homem possa sobreviver nela sem de tudo desumanizar-se”; daí que se deva dar “mais espaço às razões do coração” para evitar outra “era glacial” pois hoje se constata a avidez de aumentar o conhecimento, porém muito pouca a de aumentar a capacidade de amar, e isso têm sua explicação: “o conhecimento se traduz automaticamente em poder, o amor em serviço”.

É um fado. De um tempo para cá, os papas têm sabido fundamentar as aptidões da mulher em vários dicastérios e organismos da vida da Igreja. Com João Paulo II, se acentuou um período, se cabe dizê-lo assim, fecundo de aproximação e exaltação dos dons, valores, virtudes e vocações próprias da mulher; uma valoração que tem ajudado a ver de outra perspectiva, tanto a homens como a mulheres, eclesiásticos ou não, a participação destas na vida da Igreja e no mundo.

Bento XVI tem seguido lucidamente nesta linha. Como cardeal esteve encarregado de apresentar, o 30 de setembro de 1988, a carta apostólica que João Paulo II dedicara às mulheres (Mulieribus dignatem – A dignidade da mulher). Como prefeito da congregação para a doutrina da fé, o 31 de julho de 2004, presenteou ao mundo aquele formoso documento, a “Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na Igreja e no mundo”, que veio revitalizar os documentos pontifícios anteriormente surgidos sobre o tema e a refrescar a importância da feminilidade dentro da Igreja, no mundo, e a necessidade de que a vocação natural, os dons e atitudes da mulher sejam valorizados pelo varão e os deste por ela.

Agora como Papa, as palavras de afeto e reconhecimento para com a mulher não têm sido menores, ainda que muitos se empenhem em tentar mostrar o contrário.

1. Gestos e manifestações

Em fevereiro passado, durante a audiência geral, o Papa centralizou laudatoriamente a atenção nas numerosas figuras femininas que “desempenharam um papel efetivo e valioso na difusão do Evangelho” sublinhando que “não se pode ignorar seu testemunho”. Com essa catequese se evidenciava ainda mais a trajetória de reconhecimento público que Bento XVI vem seguindo em comentários pontuais feitos através de entrevistas, homilias e discursos; uma trajetória que recolhe, expõe e valoriza o grande serviço e a contribuição peculiar que a mulher tem prestado à Igreja e ao mundo, reivindicando seu protagonismo ativo no âmbito das comunidades cristãs primitivas e ao largo da história do cristianismo. Nesses comentários, também recordou clara e amorosamente o papel valiosíssimo, ainda que não ministerial, que a mulher desenvolve nesta atualidade dentro da Igreja.

Um nobre gesto a considerar tem sido o recente reconhecimento que Bento XVI, através do presidente do Conselho Pontifício para os leigos, o arcebispo Stanislaw Rilko, concedeu à União Mundial de Organizações de Mulheres Católicas (UMOFC), fundada em 1910, ao outorgar-lhes o estatuto de associação pública internacional de fiéis; uma declaração que, em palavras da presidente geral, Karen Hurley, significa que se “honra os incansáveis esforços de milhões de fiéis mulheres católicas ativas em nossa união ao nível paroquial, diocesano, nacional e internacional”.

2. Maternidade como vocação de primeira ordem e máxima importância

Talvez um dos temas aos quais, no amplo campo da mulher, mais referência e ênfase têm sido feitas pelo Santo Padre, tem sido o da maternidade. As palavras pronunciadas a esse respeito não se têm limitado à denúncia atual ante a crescente escassez de candidatas a desempenhar sua natural vocação de mães e educadoras; antes de tudo, manifestou o apreço pessoal e o valor da maternidade em si mesma, porém nem tudo nisto se resumiu. O Papa se sabe filho e o que isso entranha, por isso agradeceu as mães o dom de si mesmas, o de estarem abertas à vida.

A um pároco romano que lhe pediu umas palavras de alento para as “mamães”, o Papa disse: “Diga-lhes simplesmente: o Papa as cumprimenta. A elas expressa sua gratidão porque haveis dado a vida, porque quereis ajudar a esta vida que cresce e assim quereis construir um mundo humano contribuindo com um futuro humano. E não o fazeis somente dando a vida biológica, senão também comunicando o centro da vida, dando a conhecer a Jesus, introduzindo a vossos filhos no conhecimento de Jesus, na amizade com Jesus. Este é o fundamento de toda catequice. Em conseqüência, é preciso cumprimentar as mães, sobretudo porque tem tido a valentia de dar a vida. E é necessário pedir às madres que completem esse dar a vida comunicando a amizade com Jesus”.

Tempo antes havia ponderado o papel da maternidade a propósito da festividade litúrgica de Santa Mônica exaltando como ela havia vivido “de maneira exemplar sua missão de esposa e mãe ajudando a seu marido Patrício a descobrir a beleza da fé em Cristo e a força do amor evangélico, capaz de vencer o mal com o bem”. Bento XVI não se deteve no recordar obrigações senão em fazer notar a beleza que há por atrás da vocação de mãe e, conseqüentemente, de educadora; ante a exposição reacionária de certos grupos que se opõem à realização da mulher no lar, a família, o matrimônio, a maternidade, o Papa fez ver com delicadeza e afeto de pai e pastor quão longe está a mulher que não corresponde a sua missão natural.

3. Sacerdócio e a contribuição da mulher na Igreja

Atualmente é mais visível a participação da mulher nos organismos vaticanos. É verdade que Bento XVI, até o momento, não realizou pronunciamentos a respeito, senão que sustentou melhor os já realizados por João Paulo II (entre outros, o da religiosa salesiana, Irmã Enrica Rosanna, subsecretária para a congregação dos institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica, e o da doutora Mary Ann Glendon, presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais). Porém nem tudo ficou nisto; para o sínodo sobre a Eucaristia de outubro de 2005, Bento XVI convocou a uma dúzia de auditoras para participar no mesmo: desde a ex-embaixadora das Filipinas ante a Santa Sede, Enrietta Tambunting de Villa, até uma fundadora, membros seculares de movimentos eclesiais e, por suposto, religiosas de distintas congregações.

Propriamente falando não se pode fazer referência a uma doutrina pontifícia sobre a mulher. Nem o atual nem o pontificado anterior a teve. E é que a feminilidade não é doutrina de um Papa senão riqueza da Igreja inteira. Com os documentos que manifestou João Paulo II, o pontífice não fez mais que evidenciar o que a Igreja tem crido e defendido sobre a mulher apoiada no princípio paulino segundo o qual para os batizados “já não há judeu nem grego; nem escravo nem livre; nem homem nem mulher”. O motivo é que “todos somos um em Cristo Jesus” (Gálatas 3, 28), “é dizer, todos temos a mesma dignidade íntima, ainda que cada um com funções específicas”.

É à luz dessas funções específicas que se deve captar a resposta expressada de forma negativa para o acesso da mulher às ordens Sagradas. E é que a Igreja não se pode entender ao modo democrático e meramente político. O que muitos esperam numa contribuição mais clara e visível da mulher em postos de maior responsabilidade parece inquietude justa entendida ao modo meramente humano de paridade de oportunidades, porém não é assim. “Como sabemos, o ministério sacerdotal, procedente do Senhor, está reservado aos varões, enquanto que o ministério sacerdotal é o governo no sentido profundo, pois, em definitivo, é o Sacramento o que governa a Igreja. Este é o ponto decisivo. Não é o homem quem faz algo, senão que é o sacerdote fiel a sua missão a que o governa, no sentido de que é o Sacramento, é dizer, Cristo mesmo mediante o Sacramento, quem governa, tanto através da Eucaristia como através dos demais Sacramentos, e assim sempre é Cristo quem preside”.

E é que o sacerdócio chegou a ser a interpretado como um direito, quando é um serviço próprio do varão com vocação a servir como presbítero. Interrogado sobre o tema da contribuição clara e visível da mulher na Igreja, o Santo Padre declarou aos periodistas da Rádio Vaticano e quatro cadeias alemãs (Bayerischer Rundfunk, ARD, ZDF y la Deutsche Welle): “… Não há que se pensar que na Igreja a única possibilidade de desempenhar um papel importante é a de ser sacerdote. Na história da Igreja há muitíssimas tarefas e funções. Basta recordar as irmãs dos Pais da Igreja, e a Idade Média, quando grandes mulheres desempenharam um papel muito decisivo, e também na época moderna. Pensemos em Hildegard de Bingen, que protestava energicamente ante os bispos e o Papa; em Catarina de Sena e em Brígida da Suécia. Também nos tempos modernos as mulheres devem buscar sempre de novo – e nós com elas – o lugar que lhes corresponde. Hoje estão muito presentes nos dicastérios da Santa Sede. Porém, existe um problema jurídico: o da jurisdição, é dizer, o fato de que, segundo o direito canônico, a faculdade de tomar decisões juridicamente vinculantes vai unida a Ordem Sagrada”.

Encontrar o lugar que lhes corresponda significa para o Papa que têm um lugar; partindo disto, agora há que reencontrá-lo ou topar-se com ele pela primeira vez. Não se trata de buscar novos lugares, senão de retomar aos que já existem. O dizer “nós com elas”, está significando que para determinar se realmente o lugar reencontrado é efetivamente tal, deve contar com a confirmação da autoridade respectiva.

Em março de 2006, um jovem sacerdote perguntou ao Papa: “Por que não fazer que a mulher colabore no governo da Igreja? Seria conveniente promover o papel da mulher também no âmbito institucional e ver que seu ponto de vista é diverso do masculino”. A imprensa mundial fez grande alarde da pergunta e pouco caso e publicidade da resposta…

O Papa respondeu com ternura e profundidade: “Sempre me causa grande impressão, no primeiro Cânon, o Cânon Romano, a oração especial pelos sacerdotes. Nesta humildade realista dos sacerdotes, nós, precisamente como pecadores, pedimos ao Senhor que nos ajude a sermos seus servos. Nesta oração pelo sacerdote, e somente nesta, aparecem sete mulheres rodeando ao sacerdote. Apresentam-se precisamente como as mulheres crentes que nos ajudam em nosso caminho. Certamente, cada um já o há experimentado. Assim, a Igreja tem uma grande dívida de gratidão com respeito às mulheres […] As mulheres fazem muito pelo governo da Igreja, começando pelas religiosas, pelas irmãs dos grandes Pais da Igreja, como Santo Ambrósio, até as grandes mulheres da Idade Média: Santa Hildegard, Santa Catarina de Sena, Santa Teresa de Ávila; e recentemente Madre Teresa […] Como sabemos, o ministério sacerdotal, procedente do Senhor, está reservado aos varões, enquanto que o ministério sacerdotal é o governo no sentido profundo, pois, em definitivo, é o Sacramento o que governa a Igreja. Este é o ponto decisivo. Não é o homem quem faz algo, senão que é o sacerdote fiel a sua missão o que governa, no sentido de que é o Sacramento, é dizer, Cristo mesmo mediante o Sacramento, quem governa, tanto através da Eucaristia como através dos demais Sacramentos, e assim sempre é Cristo quem preside”. [1]

Não é o homem quem governa, é o Sacramento! Portanto, não cabe falar de discriminação: é Cristo em definitivo quem governa. O atual Pontífice se tem mostrado sábio e delicado na hora de aclamar a figura da mulher assim como nos momentos nos quais tem recordado qual não é sua função e os motivos disso. Bem pode se pensar que leva na mente aquele sentido agradecimento que com motivo da IV Conferencia Mundial sobre a mulher em Pequim redigiu João Paulo II em forma de carta.

4. Agradecimento às mulheres

Bento XVI não cessará de reivindicar a riqueza do gênio feminino. Já o fez e, que não cabem dúvidas, o seguirá fazendo. O reflexo dessas manifestações começa a se deixar sentir em muitos outros âmbitos da Igreja. Como não levar em conta àquelas palavras de gratidão pensadas, escritas e pronunciadas por aquele grande poeta e Papa, João Paulo II, que façam eco em seu predecessor:

“Te dou graças, mulher-mãe, que te convertes em seio do ser humano com a alegria e as dores de parto de uma experiência única, a qual te faz sorriso de Deus para o pequenino que vem à luz e te fazes guia de seus primeiros passos, apoio de seu crescimento, ponto de referência no posterior caminho da vida.

Te dou graças, mulher-esposa, que unes irrevogavelmente teu destino ao de um homem, mediante uma relação de recíproca entrega, ao serviço da comunhão e da vida.

Te dou graças, mulher-filha e mulher-irmã, que contribui no núcleo familiar e também no conjunto da vida social, as riquezas de tua sensibilidade, intuição, generosidade e constância.

Te dou graças, mulher-trabalhadora, que participas em todos os âmbitos da vida social, econômica, cultural, artística e política, mediante a indispensável contribuição que dás a elaboração de uma cultura capaz de conciliar razão e sentimento, a uma concepção da vida sempre aberta ao sentido do “mistério”, a edificação de estruturas econômicas e políticas mais ricas de humanidade.

Te dou graças, mulher-consagrada, que a exemplo da maior das mulheres, a Mãe do Cristo, Verbo Encarnado, te abres com docilidade e fidelidade ao amor de Deus, ajudando a Igreja e a toda a humanidade a viver para Deus uma resposta “esponsal”, que expressa maravilhosamente a comunhão que Ele quer estabelecer com sua criatura.

Te dou graças, mulher, pelo fato mesmo de ser mulher! Com a intuição própria de tua feminilidade enriqueces a compreensão do mundo e contribuis à plena verdade das relações humanas”.
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