Boi na linha

Por Alessandro Lima *

Muita gente deve conhecer a expressão popular “boi na linha” que significa que uma determinada mensagem não chegou de forma adequada a seu destinatário, havendo aí um ruído. Infelizmente muitas pessoas abraçam a Fé Cristã através de um conjunto de doutrinas que na verdade são um verdadeiro “boi na linha”, pois tem pouco em comum com a doutrina pregada pelos Santos Apóstolos.

Lembro-me com muito carinho do tempo em que eu era Luterano, dos estudos bíblicos na escola dominical, da fraternidade entre os irmãos, toda comunidade procurava realmente viver uma vida correta e santa. Lembro-me das pregações do pastor, da convicção que ele possuía quanto à sua fé em Jesus Cristo e no Santo Evangelho. No entanto por que então depois de tantos anos confessando a fé protestante por que me tornei católico? Essa é a pergunta que até hoje muitos me fazem. E o motivo da minha conversão foi que descobri que havia um “boi na linha” na mensagem do Evangelho que eu havia recebido desde criança. Ora, como assim? Tudo que me foi ensinado não estava lá na Bíblia, e não é a Bíblia a Palavra de Deus?

Esta lógica aparentemente verdadeira enganou, engana e infelizmente ainda enganará muitas pessoas, sejam elas simples fiés, presbíteros ou pastores (cf. Mt 24,24).

Penso que quem melhor poderia explicar tal questão seja Santo Ireneu. Este incrível apologista cristão do séc II, Bispo da cidade de Lião na França, foi discípulo pessoal de São Policarpo que por sua vez foi Bispo de Esmirna e discípulo pessoal de São João Apóstolo e Evangelista. Em seu tempo muito fiéis estavam abandonando a Fé Apostólica para seguirem os cristãos gnósticos, que propunham um Cristianismo bem diferente daquele recebido pela Igreja da própria boca dos Apostótolos e seus discípulos. Sobre o embuste dos gnósticos ele escreve:

“(…) Descuidam a ordem e o texto das Escrituras e enquanto lhes é possível dissolvem os membros da verdade. Transferem, transformam e fazendo de uma coisa outra seduzem a muitos com as palavras do Senhor atribuídas indevidamente a fantasias inventadas. É como se a um autêntico retrato do rei, realizado cuidadosamente em rico mosaico por hábil artista, alguém desmanchas-se a figura de homem e fizesse com as pedras deslocadas e mal dispostas a figura de cão ou de raposa e depois dissesse e confirmasse que aquela era a autêntica imagem do rei feita pelo hábil artista. Mostrando aquelas mesmas pedras que, bem dispostas pelo primeiro artista apresentavam a imagem do rei e mal dispostas pelo segundo artista transformavam-na em figura de cão, pelo brilho das pedras enganam os simples que não conhecem o aspecto do rei e os convencem que a ridícula imagem da raposa é o autêntico retrato do rei. Assim, costurando fábulas de velhinhas e tomando daqui e dali palavras, sentenças e parábolas, procuram adaptar as palavras de Deus às suas fábulas.” (Santo Ireneu, Contra as Heresias, Livro I – Parte I (B-III) Cap 8.1. Séc II).

Vamos procurar entender esta brilhante exposição de Santo Ireneu. Ele compara a Fé Apostólica “a um autêntico retrato do rei, realizado cuidadosamente em rico mosaico por hábil artista”. E compara a doutrina da mentira como se “alguém desmanchas-se a figura de homem e fizesse com as pedras deslocadas e mal dispostas a figura de cão ou de raposa e depois dissesse e confirmasse que aquela era a autêntica imagem do rei feita pelo hábil artista”. Aqui as pedras do mosaico são as Sagradas Escrituras, que fora de seu berço, fora do contexto em que surgiu, apresentará não a doutrina Apostólica (chamada por Santo Ireneu de “figura do rei”), mas uma doutrina divergente, herética (que Santo Ireneu chama de “figura da raposa”).

Por isso que desde os tempos apostólicos alguns cristãos acabam crendo na “figura da raposa”, pois ela convence que é verdadeira porque utiliza a profunda sabedoria que residem nas Sagradas Escrituras, que Santo Ireneu refere-se como “brilho das pedras”.

Entre a “figura do rei” e a “figura da raposa” existe um verdadeiro “boi na linha”, que neste caso é causado pela total ou parcial ignorância da memória Cristã. Quando eu era Luterano me deixava enganar pelas doutrinas que recebia, por que eu não conhecia a “figura do rei”. Quando tive meu primeiro contato com a literatura Patrística, onde tive a oportunidade de conhecer a Fé Cristã de um tempo em que os Cristãos não estavam divididos, mas professavam uma Única Fé (cf. Ef. 4,5), tomei um verdadeiro tombo, pois tudo aquilo que eu acreditava (sola scriptura, livre exame, condenação das imagens sacras, etc) quando não era encontrada na fé dos primeiros cristãos, aparecia na confissão de fé de algumas das heresias cristológicas (iconoclastas negavam a permissão do uso de imagens na Igreja, donatistas negavam o poder da Igreja de perdoar pecados, os arianos negavam a maternidade divina da Mãe do Senhor, os gnósticos negavam a presença de Cristo no vinho e sangue da comunhão, etc) . Isso foi terrível para mim… Mas o pior ainda estava por vir… O pior foi quando constatei que a fé católica que eu repudiava, que eu cria ter sido inventada ao logo dos séculos através dos diversos Concílios, se encontrava muito bem estabelecida na confissão cristã dos primeiros séculos; e que na verdade os Concílios Ecumênicos estavam confirmando a Antiga Fé recebida dos apóstolos em combate às heresias que surgiam.

Percebi então que meus mestres embora sinceros na sua intenção de pregar a Verdade, haviam me oferecido a “figura da raposa” e não a “figura do rei” (cf. Lc 6,39).

Ainda hoje me lembro bem como o “brilho das pedras” me deixava certo de que eu estava no caminho verdadeiro. É assustador como uma pessoa sincera pode ser inimiga da Verdade querendo ser sua amiga. Lembrem do exemplo do Apóstolo Paulo que antes de se tornar cristão combatia Deus crendo que estava sendo amigo de Deus.

Por isso depois de minha difícil e dura conversão ao Catolicismo, eu outros amigos (também ex-protestantes que encontraram o caminho da Igreja Católica) resolvemos fundar este apostolado e colocar o site Veritatis Splendor no ar. Queremos que outros como nós tirem o “boi na linha” e que vençam o preconceito em relação ao Catolicismo e tenham a oportunidade de conhecer a “figura do rei”, a Memória Cristã presente na literatura dos Santos Padres da Igreja.

O encontro com a Memória Cristã não é só um encontro com a teologia dos primeiros séculos, mas um encontro com a História do Cristianismo. História esta que muitas vezes se transforma em Estória, tal é o grau de distorção e acréscimo de mentiras encontrados em sites e livros que deixariam até Dan Brown (autor do Código da Vinci) enrubescido.

Infelizmente o desconhecimento da “figura do rei” não é uma desvantagem só de protestantes. Muitos católicos abandonam a Igreja de Cristo por que ignorantes da Memória Cristã se deixam convencer pelo discurso inflamado de falsos mestres que “pelo brilho das pedras enganam os simples que não conhecem o aspecto do rei e os convencem que a ridícula imagem da raposa é o autêntico retrato do rei.”

Estude, investigue, assuma um compromisso com a Verdade, sendo um multiplicador dela, identifique o “boi na linha” que existe no catecismo cristão que você recebeu.

Fiquemos mais uma vez com as palavras de Santo Ireneu que foi muito próximo dos apóstolos:

“O erro, com efeito, não se mostra tal como ele é para não ficar evidente quando se descobre. Adornando-se fraudulentamente de plausibilidade, apresenta-se diante dos mais ignorantes, justamente por esta aparência exterior, -é até ridículo dizê-lo -como mais verdadeiro do que a própria verdade. Como foi dito, acerca disso, por alguém superior a nós: uma pedra preciosa, a esmeralda, que tem grande valor aos olhos de muitos, perde o seu valor diante (de artística falsificação de vidro até não se achar alguém conhecedor que a examine e desmascare a fraude. Quem poderá facilmente detectar a mistura de cobre e prata a não ser o experto? Ora, nós não queremos que por nossa culpa alguns sejam raptados como ovelhas pelos lobos, enganados pelas peles de ovelhas com que se camuflam. Esses, de quem o Senhor nos ordenou nos guardar, esses, que falam como nós, mas pensam diferentemente de nós.” (Santo Ireneu, Contra as Heresias, Livro I, Introdução. Séc II).

 

Autor: Alessandro Lima *.
* O autor é arquiteto de software, professor, escritor, articulista e fundador do Apostolado Veritatis Splendor.

* O autor é arquiteto de software, professor, escritor, articulista e fundador do Apostolado Veritatis Splendor.

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