Homilia no 40º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II

8 de Dezembro de 2005

Amados Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio
Queridos Irmãos e Irmãs!

Há quarenta anos, no dia 8 de Dezembro de 1965, na Praça diante desta Basílica de São Pedro, o Papa Paulo VI concluiu solenemente o Concílio Vaticano II. Ele tinha sido inaugurado, segundo a vontade de João XXIII, no dia 11 de Outubro de 1962, então festa da Maternidade de Maria, e teve o seu encerramento no dia da Imaculada. Uma moldura mariana circunda o Concílio. Na realidade, é muito mais do que uma moldura: é uma orientação de todo o seu caminho. Remete-nos, como então remetia os Padres do Concílio, para a imagem da Virgem à escuta, que vive na Palavra de Deus, que conserva no seu coração as palavras que lhe vêm de Deus e, reunindo-as como num mosaico, aprende a compreendê-las (cf. Lc 2, 19.51); remete-nos para a grande Crente que, repleta de confiança, se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à sua vontade; remete-nos para a Mãe humilde que, quando a missão do Filho o exige, se põe de lado e, ao mesmo tempo, para a mulher corajosa que, enquanto os discípulos fogem, permanece aos pés da cruz. No seu discurso por ocasião da promulgação da Constituição conciliar sobre a Igreja, Paulo VI tinha qualificado Maria como “tutrix huius Concilii” “protectora deste Concílio” (cf. Oecumenicum Concilium Vaticanum II, Constitutiones Decreta Declarationes, Cidade do Vaticano 1966, pág. 983) e, com uma alusão inconfundível à narração do Pentecostes, transmitido por Lucas (cf. Act 1, 12-14), disse que os Padres se tinham reunido na sala do Concílio “cum Maria, Matre Iesu” e, também no seu nome, dele agora sairiam (Ibid., pág.985).

Permanece indelével na minha memória o momento em que, ouvindo as suas palavras: “Mariam Sanctissimam declaramus Matrem Ecclesiae” “declaramos Maria Santíssima Mãe da Igreja”, espontânea e repentinamente os Padres se levantaram das suas cadeiras e aplaudiram de pé, prestando homenagem à Mãe de Deus, à nossa Mãe, à Mãe da Igreja. Efectivamente, com este título o Papa resumia a doutrina mariana do Concílio e oferecia a chave para a sua compreensão.

Maria não se coloca somente numa relação singular com Cristo, o Filho de Deus que, como homem, quis tornar-se seu filho. Permanecendo totalmente unida a Cristo, Ela pertence também de modo integral a nós. Sim, podemos dizer que Maria está próxima de nós como nenhum outro ser humano, porque Cristo é homem para os homens e todo o seu ser é um “ser para nós”. Como Cabeça, dizem os Padres, Cristo é inseparável do seu Corpo que é a Igreja, formando juntamente com ela, por assim dizer, um único sujeito vivo. A Mãe da Cabeça é também a Mãe de toda a Igreja; ela é, por assim dizer, totalmente despojada de si mesma; entregou-se inteiramente a Cristo e, com Ele, é entregue como dom a todos nós. Com efeito, quanto mais a pessoa humana se entrega, tanto mais se encontra a si mesma.

O Concílio queria dizer-nos isto: Maria está tão entrelaçada no grande mistério da Igreja, que ela e a Igreja são inseparáveis, da mesma forma que ela e Cristo são inseparáveis. Maria reflecte a Igreja, antecipa-a na sua pessoa e, em todas as turbulências que afligem a Igreja sofredora e fatigante, permanece sempre a sua estrela da salvação. Ela é o seu verdadeiro centro em que confiamos, embora muitas vezes a sua periferia pesa na nossa alma. No contexto da promulgação da Constituição sobre a Igreja, o Papa Paulo VI esclareceu tudo isto mediante um novo título arraigado de modo profundo na Tradição, precisamente com a intenção de iluminar a estrutura interior do ensinamento sobre a Igreja, que se desenvolveu no Concílio. O Concílio Vaticano II devia expressar-se acerca dos componentes institucionais da Igreja: sobre os Bispos e sobre o Pontífice, sobre os sacerdotes, os leigos e os religiosos na sua comunhão e nos seus relacionamentos; devia descrever a Igreja a caminho que, “contendo pecadores no seu próprio seio, (é) simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação…” (Lumen gentium, 8). Mas este aspecto “petrino” da Igreja está incluído no “mariano”. Em Maria, a Imaculada, encontramos a essência da Igreja de modo não deformado. Dela devemos aprender a tornarmo-nos nós mesmos “almas eclesiais”, assim se expressavam os Padres, para podermos também nós, segundo a palavra de são Paulo, apresentar-nos “imaculados” diante do Senhor, assim como Ele quis que fôssemos desde o princípio (cf. Cl 1, 21; Ef 1, 4).

Mas agora devemos perguntar-nos: o que significa “Maria, a Imaculada”? Este título tem algo a dizer-nos? A liturgia hodierna esclarece-nos o conteúdo desta palavra com duas imagens grandiosas. Em primeiro lugar, há a maravilhosa narração do anúncio a Maria, a Virgem de Nazaré, da vinda do Messias. A saudação do Anjo é tecida com fios do Antigo Testamento, especialmente do profeta Sofonias. Ele faz ver que Maria, humilde mulher de província que vem de uma estirpe sacerdotal e traz em si o grande património sacerdotal de Israel, é “o santo resto” de Israel ao qual os profetas, em todos os períodos de dificuldade e de trevas, fizeram referência. Nela está presente o verdadeiro Sião, a morada pura e viva de Deus. O Senhor habita nela, e nela encontra o lugar do seu repouso. Ela é a casa viva de Deus, que não habita em edifícios de pedra, mas no coração do homem vivo. Ela é o rebento que, na obscura noite invernal da história, brota do tronco abatido de David. É nela que se cumpre a palavra do Salmo: “A terra produziu o seu fruto” (67, 7). Ela é o botão do qual deriva a árvore da redenção e dos redimidos. Deus não fracassou, como podia parecer já no início da história com Adão e Eva, ou durante o período do exílio babilónico, e como novamente parecia no tempo de Maria, quando Israel se tornou definitivamente um povo sem importância, numa região ocupada, com poucos sinais reconhecíveis da sua santidade. Deus não fracassou. Na humildade da casa de Nazaré vive o Israel santo, o resto puro. Deus salvou e salva o seu povo. Do tronco abatido resplandece de novo a sua história, tornando-se uma nova força que orienta e impregna o mundo. Maria é o Israel santo; ela diz “sim” ao Senhor, coloca-se plenamente à sua disposição e assim torna-se o templo vivo de Deus.

A segunda imagem é muito mais difícil e obscura. Esta metáfora tirada do Livro do Génesis fala-nos de uma grande distância histórica, e somente com dificuldade pode ser esclarecida; somente durante a história foi possível desenvolver uma compreensão mais profunda daquilo que ali é mencionado. Prediz-se que durante toda a história continuará a luta entre o homem e a serpente, ou seja, entre o homem e os poderes do mal e da morte. Porém, é também prenunciado que “a estirpe” da mulher um dia vencerá e esmagará a cabeça da serpente, da morte; prenuncia-se que a linhagem da mulher e nela a mulher e a própria mãe vencerá e que assim, mediante o homem, Deus vencerá. Se, juntamente com a Igreja crente e orante, nos colocarmos à escuta diante deste texto, então poderemos começar a compreender o que é o pecado original, o pecado hereditário, e também o que é a tutela contra este pecado hereditário, o que é a redenção.

Qual é o quadro que nesta página nos é apresentado? O homem não confia em Deus. Ele tentado pelas palavras da serpente, alimenta a suspeita de que Deus, em última análise, tira algo da sua vida, que Deus é um concorrente que limita a nossa liberdade e que nós só seremos plenamente seres humanos, quando O tivermos posto de lado; em síntese, somente deste modo podemos realizar na plenitude a nossa liberdade. O homem vive na suspeita de que o amor de Deus cria uma dependência e que é necessário libertar-se desta dependência para ser plenamente ele mesmo. O homem não deseja receber de Deus a sua existência e a plenitude da sua vida. Quer haurir ele mesmo, da árvore da ciência, o poder de plasmar o mundo, de se fazer deus elevando-se ao nível d’Ele e de vencer com as próprias forças a morte e as trevas. Não quer contar com o amor, que não lhe parece confiável; ele conta unicamente com a ciência, dado que ela lhe confere o poder.

Em vez de visar o amor, tem como objectivo o poder com que deseja ter nas suas mãos, de modo autónomo, a própria vida. E ao fazê-lo, confia na mentira e não na verdade, e assim mergulha com a sua vida no vazio, na morte. Amor não é dependência, mas dom que nos faz viver. A liberdade de um ser humano é a liberdade de um ser limitado e, portanto, ela mesma é limitada. Só a podemos possuir como liberdade compartilhada, na comunhão das liberdades: a liberdade pode desenvolver-se unicamente se vivermos do modo justo uns com os outros, e uns para os outros.

Nós vivemos do modo justo, se vivermos segundo a verdade do nosso ser, ou seja, segundo a vontade de Deus. Porque a vontade de Deus não é para o homem uma lei imposta a partir de fora, que o obriga, mas a medida intrínseca da sua natureza, uma medida que está inscrita nele e que o torna imagem de Deus e, assim, criatura livre. Se nós vivermos contra o amor e contra a verdade contra Deus então destruir-nos-emos uns aos outros e aniquilaremos o mundo. Então, não encontraremos a vida, mas defenderemos o interesse da morte. Tudo isto é narrado com imagens imortais na história do pecado original e da expulsão do homem do Paraíso terrestre.

Estimados irmãos e irmãs! Se reflectirmos sinceramente sobre nós mesmos e sobre a nossa história, devemos dizer que com esta narração se descreve não só a história do princípio, mas a história de todos os tempos, e que todos trazemos dentro de nós próprios uma gota do veneno daquele modo de pensar explicado nas imagens do Livro da Génesis. A esta gota de veneno, chamamos pecado original. Precisamente na festa da Imaculada Conceição manifesta-se em nós a suspeita de que uma pessoa que não peque de modo algum, no fundo, seja tediosa; que falte algo na sua vida: a dimensão dramática do ser autónomo; que faça parte do verdadeiro ser homem, a liberdade de dizer não, o descer às trevas do pecado e o desejar realizar sozinho; que somente então seja possível desfrutar até ao fim toda a vastidão e a profundidade do nosso ser homens, do ser verdadeiramente nós mesmos; que devemos pôr à prova esta liberdade também contra Deus, para nos tornarmos realmente nós próprios. Em síntese, pensamos que o mal no fundo seja bem, que dele temos necessidade, pelo menos um pouco, para experimentar a plenitude do ser. Julgamos que Mefistófeles o tentador tem razão, quando diz que é a força “que deseja sempre o mal e realiza sempre o bem” (J.W. v. Goethe, Fausto I, 3). Pensamos que pactuar com o mal, reservando para nós mesmos um pouco de liberdade contra Deus, em última análise, seja um bem, talvez até necessário.

Contudo, quando olhamos para o mundo à nossa volta, podemos ver que não é assim, ou seja, que o mal envenena sempre, que não eleva o homem mas o rebaixa e humilha, que não o enobrece, não o torna mais puro nem mais rico, mas o prejudica e faz com que se torne menor. É sobretudo isto que devemos aprender no dia da Imaculada: o homem que se abandona totalmente nas mãos de Deus não se torna um fantoche de Deus, uma maçadora pessoa consencientemente; ele não perde a sua liberdade. Somente o homem que confia totalmente em Deus encontra a verdadeira liberdade, a grande e criativa vastidão da liberdade do bem. O homem que recorre a Deus não se torna menor, mas maior, porque graças a Deus e juntamente com Ele se torna grande, divino, verdadeiramente ele mesmo. O homem que se coloca nas mãos de Deus não se afasta dos outros, retirando-se na sua salvação particular; pelo contrário, só então o seu coração desperta verdadeiramente e ele torna-se uma pessoa sensível e por isso benévola e aberta.

Quanto mais próximo de Deus o homem está, tanto mais próximo está dos homens. Vemo-lo em Maria. O facto de Ela estar totalmente junto de Deus é a razão pela qual se encontra também próxima dos homens. Por isso, pode ser a Mãe de toda a consolação e de toda a ajuda, uma Mãe à qual, em qualquer necessidade, todos podem dirigir-se na própria debilidade e no próprio pecado, porque Ela tudo compreende e para todos constitui a força aberta da bondade criativa. É nela que Deus imprime a sua própria imagem, a imagem daquela que vai à procura da ovelha perdida, até às montanhas e até ao meio dos espinhos e das sarças dos pecados deste mundo, deixando-se ferir pela coroa de espinhos destes pecados, para salvar a ovelha e para a reconduzir a casa. Como Mãe que se compadece, Maria é a figura antecipada e o retrato permanente do Filho. E assim vemos que também a imagem da Virgem das Dores, da Mãe que compartilha o sofrimento e o amor, é uma verdadeira imagem da Imaculada. Mediante o ser e o sentir juntamente com Deus, o seu coração alargou-se. Nela a bondade de Deus aproximou-se e aproxima-se muito de nós. Assim, Maria está diante de nós como sinal de consolação, de encorajamento e de esperança. Ela dirige-se a nós, dizendo: “Tem a coragem de ousar com Deus! Tenta! Não tenhas medo d’Ele! Tem a coragem de arriscar com a fé! Tem a coragem de arriscar com a bondade!

Tem a coragem de arriscar com o coração puro! Compromete-te com Deus, e então verás que precisamente assim a tua vida se há-de tornar ampla e iluminada, não tediosa, mas repleta de surpresas infinitas, porque a bondade infinita de Deus jamais se esgota!”.

Neste dia de festa, queremos agradecer ao Senhor o grande sinal da sua bondade, que nos concedeu em Maria, sua Mãe e Mãe da Igreja. Queremos pedir-lhe que ponha Maria no nosso caminho, como luz que nos ajuda a tornar-nos também nós luz e a levar esta luz pelas noites da história. Amém!

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