Sobre o juízo artístico

Nossa atitude frente às obras de arte depende de nosso gosto natural e de nossa educação artística, mas depende também, e mais fundamentalmente, da própria concepção que temos da arte.  Se acreditamos que a arte é um simples exercício de habilidade destinado a agradar, ou a distrair-nos por alguns momentos, ou a apresentar-nos sob uma forma aprazível e fácil uma imagem das idéias que já carregamos em nós mesmos, exigiremos de uma pintura ou de uma sinfonia que nos confirmem nossa própria visão das coisas; é o assunto tratado que nos interessará nelas, e nós exigiremos que esse assunto seja abordado de acordo com o rol de conceitos previamente formados que nos pareçam exprimir a verdade a seu respeito.  Julgaremos a obra de arte como um objeto que nos é submisso, e nossa disposição de espírito será, portanto, a medida do juízo.  Em semelhante caso, a bem da verdade, não julgamos a obra de arte  nós é que somos julgados por ela.

Será completamente diferente se pensarmos que a arte é um esforço criador cuja fonte é espiritual, e que nos entrega a um só tempo o si mais íntimo do artista e as secretas correspondências por ele percebidas nas coisas, por uma visão ou intuição que lhe é própria e que é inexprimível em idéias ou em palavras  exprimível somente em uma obra.  Então essa obra se nos surgirá como carregada de um duplo mistério  o da personalidade do artista e o da realidade que tocou seu coração.  E o que nós lhe pediremos será que nos manifeste esse mistério na alegria sempre nova que é produzida pelo contato com a beleza.  Julgaremos a obra de arte como o veículo vivo de uma verdade oculta, à qual essa obra e nós mesmos estamos juntamente submetidos, e que é a um só tempo a medida da obra e de nosso espírito.  Em semelhante caso haverá um verdadeiro juízo, pois não erigiremos a nós mesmos como juízes, mas procuraremos tornarmo-nos dóceis àquilo que a obra, se ela é boa, nos ensina.

A primeira condição para um tal juízo é uma espécie de consentimento prévio às intenções gerais do artista, e às perspectivas criadoras nas quais ele se coloca, pois julgar uma obra de arte é, antes de tudo, ter a inteligência de uma outra inteligência.  E, antes de julgar uma obra, é necessário saber  e não somente saber, mas também aceitar  os caminhos que a inteligência do artista escolheu para penetrar nos segredos do real e para exprimi-los.  Somente então poderemos discernir se o artista realmente tinha alguma coisa a dizer, o que é a primeira e a mais indispensável etapa do juízo artístico.  Por mais hábil que seja um artista, e por mais perfeita que seja sua técnica, se por infelicidade ele nada tem a nos dizer, sua obra não oferece interesse nenhum.

A grande conquista da arte e da poesia modernas é terem elas se tornado, em um grau nunca antes atingido, conscientes de si mesmas e do mistério espiritual que contêm.  Compreenderam  pagando por vezes um preço terrível  que o primeiro dever do artista e do poeta é o de serem inabalavelmente fiéis à sua verdade, à verdade singular e incomunicável que lhes é obscuramente revelada por si mesmos e pelas coisas, e que deve adquirir uma forma na obra.  É preciso muita coragem ao artista e ao poeta  e é preciso um heroísmo ao grande artista e ao grande poeta  para serem absolutamente fiéis a esse inapreensível elemento espiritual que tem todas as exigências de um absoluto e que não perdoa a menor deserção.  Pois, quanto mais profunda e decisiva for essa verdade que lhes é pessoal, maiores suas chances de inicialmente parecer a seus contemporâneos como algo de desprezível ou de insensato.  É que o artista a vê, e eles ainda não a viram.  Mais tarde eles a verão, graças ao artista e aos seus sofrimentos.  Todos sabemos, hoje, de que heroísmo da virtude de pintor nasceu a obra de um Cézanne.

É claro que nesse caso o artista corre todos os riscos, e que, para que um grande e autêntico criador triunfe nessa estranha luta com o Anjo, muitos outros que não foram suficientemente grandes tiveram que sair derrotados.  Mas, primeiro, se estes tiverem sido verdadeiramente fiéis à sua intuição, ainda que de pequena envergadura, e a seu amor, ainda que frágil, algo de maior que eles mesmos, um pequeno pedaço do céu, foi atingido por eles.  Em seguida, mesmo que eles tenham fracassado e sido irremediavelmente vencidos, seus esforços e sua própria derrota merecem ser respeitados.  O respeito perante os esforços do artista, o sentido do mistério espiritual no qual está empenhado seu trabalhado criador de homem em luta com a beleza, são os pré-requisitos de qualquer juízo artístico digno de seu objeto.  O único artista que não merece respeito é aquele que trabalha para agradar o público, para o sucesso comercial ou para os sucessos acadêmicos.

Note-se que não defendo, aqui, a indulgência frente a qualquer obra de arte, ainda que sincera; menos ainda frente àqueles que exploram as verdades que procurei recordar acima com o intuito de exibir uma espécie de cabotinismo do moderno ou do gênio desconhecido.  Eu não peço que o juízo seja dócil.  Acho que quanto mais puro for o juízo artístico, mais será exigente, e mesmo implacável.  Mas o que deve-se também exigir é que tal juízo seja artístico, que não pretenda julgar a arte das alturas de uma incompetência segura de si mesma e ignorante das leis e da realidade interna da coisa julgada; que ele mesmo seja consciente da dignidade humana e espiritual deste universo à parte que é o universo da criação artística, e que apoie-se sobre um conhecimento autêntico da estrutura e dos princípios de tal universo.  Para isso é necessário, como para qualquer outra coisa, uma educação apropriada  fundamentada tanto sobre um estudo aprofundado do passado quanto sobre uma atenção vigilante às pesquisas do presente.

Essas observações valem para a arte sagrada e para a arte profana.  As artes litúrgicas estão, por essência, ligadas a uma tradição santa; mas esta não é a tradição de uma escola artística, qualquer que ela seja, por maior que possa ter sido no passado, é a tradição sagrada do dogma e da vida da Igreja, os quais transcendem qualquer forma da arte humana.  É por isso que a Igreja apropriou-se, para seus edifícios e para sua ornamentação, das grandes formas da arte que se sucederam ao longo dos séculos (arte bizantina, arte romana, arte gótica, arte renascentista, arte barroca…).  Entretanto, como pode-se facilmente compreender, é na evolução da arte profana que as pesquisas, as inquietudes e as conquistas do momento presente manifestam-se o mais livremente, e podem ser estudadas com maior clareza.

In Raison et Raisons, Jacques Maritain, Ed. Egloff, Fribourg et L.U.F., Paris, 1947, I parte, cap. II.

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