Cristo na Cruz – II

Uma moça protestante leu o artigo sobre Cristo na Cruz, e enviou seus comentários (em negrito), a que respondo:

Vi que existem muitas coisas na ICAR que me deixaram pensativas e que gostei muito. Falei sobre isso com meu pastor..com pessoas da minha igreja..que me mostraram com base bíblica, que Lutero e os reformadores, baseados em estudos bíblicos, nao puderam permanecer nesta igreja, por Deus te-los mostrado verdades básicas, que nao coincidiam com os ensinamentos da igreja católica.

O problema é que “basear-se em estudos bíblicos” significa em última instância basear-se em sua própria opinião, seus próprios preconceitos e desejos. A fé de Lutero não tem praticamente nada a ver com a fé de um metodista, e a fé deste tampouco tem algo a ver com a fé de um pentecostal ou de um batista. Cada um usa a bíblia para justificar uma crença que já tinha antes de justificá-la usando o texto bíblico.

A Bíblia não é nem pode ser a única regra de fé e moral para um cristão; se Deus a tivesse feito para isso ela seria facilmente compreensível, traria a Fé explicada e detalhada. Ela, ao contrário, é uma “história de família”, uma narrativa de algo que subsiste em sua íntegra apenas na Igreja que Cristo fundou, a Igreja Católica.

O caso de Lutero é emblemático. Fundador do protestantismo, ele criou a tese chamada “Sola Scriptura”, ou seja, que apenas na Sagrada Escritura há Palavra de Deus, e que a Sagrada Escritura é a única regra de Fé e Moral para o cristão. Mesmo assim, ele nunca conseguiu substanciar esta afirmação com o texto bíblico, assim como também não conseguiu apoiar a sua tese chamada “Sola Fide”, a Salvação pela Fé apenas. Para substanciar a Sola Fide ele chegou ao ponto de falsificar o texto bíblico em sua tradução, colocando a palavra “apenas” na frase “sois salvos pela Fé” (Rm 5,1). Ironicamente a única vez que esta palavra aparece no novo Testamento é na Epístola de Tiago, a que ele chamava “Epístola de Palha” e que tentou tirar do seu cânone bíblico (como tirou, aliás, sete livros do AT) junto com as Epístolas de S. Pedro (que negam a Sola Scriptura em termos bastante fortes), a de São Judas (que afirma duramente em seu versículo 11 a diferença essencial entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum aos fiéis – ver artigo meu a respeito) e três outras mais. Lutero só voltou atrás por causa da oposição de seus correligionários.

Ainda em vida, ele encontrou fortíssima oposição a suas teorias, oposição essa sempre “baseada em estudos bíblicos”. Calvino negou a Consubstanciação (teoria luterana segundo a qual o pão não deixa de ser pão mas torna-se também Cristo), os anabatistas negaram a ação ex opere operato do batismo (ou seja, que o batismo tenha eficácia por si e não seja apenas um símbolo de inserção em uma comunidade de fiéis), etc.

Os “reformadores”, assim, não puderam entrar em acordo em praticamente nada, com a exceção de não aceitarem o Papado. Não se trata portanto de terem encontrado razões para sair da Igreja, sim de terem encontrado cada um uma maneira de justificar “biblicamente” suas próprias idéias.

Lutero era uma pessoa hiper-escrupulosa, que ao mesmo tempo encontrava enormes dificuldades interiores em cumprir os seus deveres (a oração do breviário, por exemplo, que ele acumulava ao ponto de ter que passar dias a fio rezando para repor as horas perdidas) e tinha horror ao Inferno. Ele nunca conseguia aceitar que estivesse em estado de graça. Por isso, ele criou a tese de que uma fé verdadeira é garantia de salvação, sem importar os pecados cometidos (“peca fortemente e crê fortemente, e serás salvo”, escreveu ele). Para ele o homem nunca seria purificado, mas apenas exteriormente declarado puro, “como um monte de estrume é coberto pela neve e se torna branco”.

Já Calvino ambicionava as riquezas materiais e dava enorme valor ao trabalho, e criou a tese da dupla predestinação (há pessoas predestinadas ao Céu e pessoas predestinadas ao Inferno, e é pelas graças materiais concedidas por Deus que se pode saber quem é predestinado a quê – assim, a busca da riqueza nada mais seria que a busca de uma confirmação de ser predestinado à salvação)…

E, sempre “baseando-se em estudos bíblicos”, o protestantismo foi cada vez mais se esfacelando e impossibilitando, na verdade, qualquer estudo bíblico. Até mesmo questões como o dia a ser guardado (sábado ou domingo), a necessidade do Batismo, o que é necessário para a Salvação, etc., questões importantíssimas!, são para o protestantismo questões em aberto. Assim não pode haver nenhuma profundidade no estudo bíblico: é só ir um pouco além da leitura em voz alta da Bíblia que as divergências surgem e ocorre um cisma dentro de um cisma.

Hoje há 30.000 denominações protestantes reconhecidas pela ONU. Certamente haverá muito mais, pois muitas há que não têm existência legal alguma. E todas elas defendem pontos de fé e moral divergentes, unindo-se apenas na oposição ao Papado…

Estou um pouco confusa, pelas diferenciacoes que existem. As coisas centrais sao as mesmas..mas os ensinos nao básicos diferem..

Nem sequer, infelizmente, as coisas básicas são as mesmas. Basta ver a mais básica de todas em uma religião: sua finalidade. A finalidade da religião é salvar almas, e nisto os protestantes e católicos estão de acordo. Mas o que significa salvar almas?

Para o católico isso significa tornar as pessoas conformes à vontade divina e realmente purificadas e santificadas, o que é feito pelos Sacramentos, pela oração, penitência e caridade.

Para o luterano isso significa levar as pessoas a serem declaradas salvas devido a sua fé, sem contudo serem tornadas conformes à vontade divina, sem que sejam realmente purificadas ou santificadas, e isso é feito por uma aceitação pessoal de Jesus como seu Salvador, aceitação essa que não teria volta.

Para o calvinista isso significa ajudar a pessoa a dar um bom testemunho e procurar os sinais de ser predestinada ao Céu…

E ainda há pelo menos 29.998 outros significados no meio protestante para algo tão central quanto o que é ser salvo. 🙁

Pelo que eu entendi na Bíblia a salvacao na Cruz foi um ato que aconteceu na terra, numa certa hora, num certo lugar.. Do jeito como você explica, fica uma mistificacao, uma impressao de que a salvacao é um ato contínuo..sem comeco e sem fim..

Eu não diria uma mistificação, diria… um Mistério. Não mistério como em filmes de suspense, mas Mistério como em Mistério da Fé.

E é verdade, a Salvação é um ato contínuo, e isso em vários planos. Por um lado, Jesus é o mesmo ontem, hoje e sempre. Ele não muda. A Salvação, sabemo-lo todos, é n’Ele e por Ele. Assim o Sacrifício de Cristo na Cruz, que é o que nos salva (não Sua Ressurreição, que é “apenas” nossa esperança – se Cristo houvesse morrido de velhice e ressuscitado, não seríamos salvos), não é um acontecimento perdido no tempo, ocorrido em uma remota provícia do Império Romano há quase dois mil anos, mas um acontecimento central, que tanto ocorre em um momento determinado quanto continua atuando. Não fosse isso, como poderíamos ser salvos pelos méritos de Cristo Crucificado hoje, quando tanto tempo já passou?!

Este Sacrifício é tornado novamente presente a cada Missa. Estamos novamente no tempo do Novo Testamento a cada Missa (“este é o Novo Testamento em meu sangue” – 1Cor 11,25), pois o Novo Testamento está em nosso tempo também.

Uma maneira “moderna” de compreender isso é o conceito de dimensões. Imagine um ser que viva em duas dimensões, na superfície de uma mesa plana. Ele não sabe, sequer imagina, que haja uma terceira dimensão. Por ele, alguém que coloque a mão na mesa em um determinado ponto, eleve-a e coloque-a em outro ponto é visto como tendo surgido do nada em um ponto, desaparecido e surgido novamente em outro.

Einstein provou que o tempo é uma dimensão, e sabemos que Deus está além de nossas restrições temporais ou dimensionais. Para Ele, nós somos como que os habitantes bidimensionais desta mesa; a diferença é que ao invés de elevar-Se e abaixar-Se, Ele está além de nós no tempo. Para Ele, toda a “mesa” do tempo está visível de uma vez só, e é por Ele estar além do tempo, abrangendo todo o Tempo, que Seu Sacrifício não pode ser restrito a um momento.

Quando o “São João” dos habitantes bidimensionais desta mesa hipotética dissesse que quem põe a mão na mesa “é o mesmo ontem hoje e sempre”, ele diria “é o mesmo em uma ponta ou em outra da mesa, ou ainda no meio”. Ele estaria significando que a mão que pousa em um ponto da mesa é a mesma mão que pousa em outro, e que ela não deixou de existir por não estar visível ou perceptível aos bidimensionais habitantes desta mesa.

Além disso, há outro lado em que a salvação é um ato contínuo: a salvação de cada um de nós.

Nós não somos “salvos” em um determinado momento, para sempre. Nós somos justificados em um determinado momento, mas cabe a nós santificarmo-nos cada vez mais e manter-nos assim na graça de Deus. O soldado nazista que matou milhares não teria abdicado da graça de Deus? O pastor belga que foi preso na rede que filmava estupros de crianças para vender filmes pornográficos para maníacos não teria abdicado da graça de Deus?

Deus nos dá um presente, mas nós podemos jogá-lo fora, e infelizmente muitas vezes o fazemos. A graça de Deus não é merecida, mas dada. Ela deve, porém, ser correspondida, e correspondida ao longo de toda a vida. Uma pessoa que abandone a Deus para seguir ao diabo ou até a si mesma, seja como nazista, como estuprador de crianças, como bandido de rua… Esta pessoa não está aceitando a graça que Deus dá. A graça que um dia ela recebeu foi jogada fora, descartada como uma criança mimada joga fora um brinquedo que se tornou desinteressante.

Deus continua de mão estendida para esta pessoa, que afinal é, pelo Batismo, Seu filho. Mas e se essa pessoa se negar a aceitar esta mão estendida? E se o Filho Pródigo preferir ficar em sua vida de orgias, ou até cuidando dos porcos? Deus, como o Pai da parábola, espera que ele volte, e o receberá com festa. Mas Deus não mandará para ele uma mesada para que continue em sua vida de orgias após ter gasto a sua parte da herança. Cabe ao Filho Pródigo voltar, e ele sempre terá um lugar na mesa do Pai.

Assim a salvação é algo que, como dizia São Paulo, “operamos no temor e no tremor”, um dom gratuito continuamente aceito e acolhido, ou sucessivamente rejeitado e buscado. Neste sentido a salvação é um ato contínuo, ou pelo menos deveria sê-lo. 🙂

E que a ressurreicao só pode ser entendida vendo-se o Cristo na Cruz.

O que também é verdade. Você entendeu mais do que achava. 🙂

Cristo nos salvou pelo Seu Sacrifício na Cruz, não pela Sua Ressurreição. Por Sua Ressurreição Ele nos mostra o que podemos esperar, Ele nos mostra o prêmio aos que, como dizia São Paulo, “chegam ao fim da corrida”. Mas não é pela Ressurreição que somos salvos, sim pela Cruz.

Daí ser tão blasfemo o filme “A Última Tentação de Cristo”, que O mostra caindo na tentação de sair da Cruz, casar-se, ter filhos e morrer de velhice. Mesmo que Ele ressuscitasse depois, não seria neste caso o Salvador.

Do mesmo modo como é completamente diferente ver o pagamento depois de trabalhar duro e ver uma quantidade de dinheiro sem que se saiba de onde vem, para onde vai e qual é o seu significado, há uma diferença enorme entre a Ressurreição depois da Cruz, em que vemos o caminho, e que sofrido caminho!, que leva à Ressurreição, e uma ressurreição sem Cruz, que na melhor das hipóteses é uma sorte, um bilhete de loteria premiado, e na pior das hipóteses é o dinheiro de outrem exposto, causa próxima de tentação…

E..que nós estamos incluidos neste plano da Salvacao..quase como cosalvadores.. eu nao vejo isto assim.. Vejo que quando Jesus falou na Cruz: “Está consumado!!” estava consumada..uma vez por todas..para todos..

Não para todos, mas para muitos (Cf. Mt 26,28). Infelizmente muitos há que não aceitam a graça de Deus, que não aceitam Seu plano de Salvação.

E é, por um lado, ao aceitar que somos incluídos neste plano e podemos nos salvar.

Por outro, somos não co-salvadores, como que salvadores iguais a Cristo – Isto seria blasfêmia – mas sim co-salvadores em um plano subordinado. Pela nossa aceitação da graça que Deus nos dá e por nossa colaboração com Ele nós nos salvamos, e pelos nossos sofrimentos e por nossos méritos nós podemos ajudar os irmãos a se conformarem com Cristo, a ajustarem a sua vontade à vontade d’Ele. Sao Paulo já dizia (1 Cor 12,26): “se um membro [do Corpo de Cristo, que é a Igreja] sofre, todos os membros sofrem com ele, ou se um membro recebe glória, todos os membros se regozijam com ele.” Veja a respeito disso tambem 2Cor 1,5-6; 4,9-12, etc.

E é por isso que nao preciso ver Jesus na Cruz..Ele para mim merece toda Glória, todo louvor, por ter ido a Cruz no meu lugar, mas eu sei que Ele agora está ao lado do Pai, na Glória..e nao mais na Cruz.

Ele está ao lado do Pai, na Glória, por ter estado na Cruz. E estaremos um dia nós também, queira Deus, na Glória, face-a-face com Ele, por nós também aceitarmos nossas cruzes, a exemplo de Cristo que nos disse para tomarmos nossas cruzes e segui-l’O.

Ver a Cristo Ressurecto sem ver a Cristo na Cruz é ver o prêmio sem ver a corrida, ver o pagamento sem ver o trabalho, ver em suma o efeito sem ver como a ele se chega.

Nao existe a igreja 100% certa..Jesus e Deus sao perfeitos, mas os homens que compoe a igreja DELE, sao falhos.E..o que acho tao maravilhoso, que Deus, apesar das nossas falhas, constrói SEU REINO através de nós nesta terra!!

Pois é, o joio e o trigo serão separados apenas quando da colheita, no fim dos tempos. Mas por outro lado, Nosso Senhor é a Verdade, o Caminho e a Vida. Isso significa, só pode significar, que há uma só Verdade, um só Caminho e uma só Vida que importa, e esta Verdade única, este Caminho Único, esta Vida verdadeira é o Cristo.

Não podem existir “verdades” mutuamente contraditórias. E no caso trata-se do que de mais importante pode haver: a nossa Salvação.

Se os luteranos estão certos, a Igreja que Cristo fundou desapareceu, foi corrompida e cessou de existir, ao menos visivelmente, por centenas de anos, e ainda hoje não existe visivelmente, “como uma cidade erguida sobre uma montanha” ou como uma vela posta em lugar que ilumine, mas sim apenas como uma união invisível de pessoas que crêem.

Se a Igreja Católica está certa, a Igreja que Cristo fundou, “Coluna e Fundamento da Verdade” (1Tim 3,15) permanece a mesma, perfeita em sua Doutrina e em seus meios de Santificação (os Sacramentos), visível e recognoscível, Santa por sua Doutrina e seus Sacramentos e pecadora em seus membros, que só serão separados em joio e trigo, carneiros e bodes, no fim dos tempos.

Eu acredito na Igreja, e, como Santo Agostinho, acredito nos Evangelhos porque a Igreja (que os selecionou, listou e colocou em uma mesma capa, com tal autoridade que nem mesmo Lutero conseguiu modificar) me diz para acreditar.

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!

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