Consciência: mero produto do ambiente?

– “A consciência moral é um produto artificial da educação; nada tem de perene. Basta lembrar o que se dá com crianças que crescem entre animais selvagens…” (Sílvio – Rio de Janeiro-RJ).

Primeiramente, vejamos o que se entende por consciência moral.

Esta expressão designa o ditame que espontaneamente se afirma ao homem, indicando-lhe normas para o consecução do seu Fim Supremo ou da perfeição de sua personalidade (personalidade que tem por característica a sede de conhecer a Verdade e amar o Bem); esse mesmo ditame que antecede os atos do indivíduo, faz ouvir o seu juízo, de aprovação ou condenação, após cada um destes.

1. Pergunta-se agora, diante das descobertas da medicina e da sociologia, se a consciência moral não é produto de preconceitos e convenções.

A Psicologia, tanto racional como empírica, responde que “não”. Em toda criatura humana existe um imperativo muito simples, anterior a qualquer deliberação: «Faze o bem, evita o mal»; a conduta dos homens de todas as épocas e regiões pressupõe a consciência dessa norma, que vem a ser a consciência da moralidade ou a consciência moral. Percebendo tal norma, o homem percebe que sua natureza tem um Autor, o qual a dotou de tal faculdade reguladora; Autor (=Deus) que, mediante esse mesmo ditame interno, o está continuamente a chamar para voltar ao Princípio do qual procedeu. O preceito básico «Faze o bem, evita o mal» em cada indivíduo se explicita em prescrições mais minuciosas, aplicadas à realidade cotidiana. Por exemplo, o homem perceberá que «fazer o bem» implica “cultuar devidamente a Deus, honrar pai e mãe, respeitar a [boa] fama e a dignidade do próximo etc”; «evitar o mal» quer dizer “não matar, não roubar, não abusar dos prazeres etc.”

A explicitação da norma fundamental admite graus diversos. Há, sim, uma consciência simples, primitiva, como a da criança, a dos selvagens, a dos justos do Antigo Testamento, que não veem (ou não viam) plenamente o alcance de seus atos e, por isto, não percebem (ou percebiam) o mal moral neles contido; tais indivíduos, embora dotados de boa fé subjetiva, nos podem parecer laxos na sua maneira de se trajar, de julgar a mentira, a poligamia etc.; Deus só os julga na medida em que têm consciência do dever, ou na medida em que o ditame interior lhes fala. Há também a consciência plenamente desenvolvida, que é a do cristão bem formado; este percebe que «praticar o bem» significa não apenas «pagar o bem com o bem», mas também «pagar o mal com o bem» e «fazer ao próximo tudo aquilo que quiséramos fosse feito a nós mesmos» (cf. Mateus 5,44-45; 7,12). Há, além disto, consciências cauterizadas, ou seja, consciências cuja voz não se faz ouvir (ao menos em tal ou tal ponto particular), porque inveterados hábitos maus do indivíduo ou da sociedade as sufocaram; veem-se, em tais casos, homens cometer graves aberrações com aparência tranquila, não porque não tenham noção de moralidade, mas porque se habituaram a resistir aos protestos da mesma.

Embora o desenvolvimento da consciência moral varie de individuo a indivíduo, ele se processa segundo a mesma direção em todos os homens e em todas as épocas. Em outros termos: a consciência é imutável, como imutável é a natureza humana; por conseguinte, matar, roubar, abusar dos prazeres e os demais atos vedados espontaneamente pela consciência, assim como nos «velhos tempos» eram abomináveis, são também na época moderna ações indignas do homem. As normas capitais da Ética, portanto, não estão sujeitas a mudanças «existencialistas», isto é, a derrogações ditadas pela situação contingente em que se ache o indivíduo. Vão é destarte o «existencialismo ético», que, negando valores perenes, adota como único critério da moralidade a consecução do bem-estar que o indivíduo julga dever alcançar na situação em que se encontre. A imutabilidade da consciência se deriva do fato de não ser ela senão um reflexo da santidade de Deus; é o Deus Santo que, por meio da consciência, chama o homem a ser santo ou a imitá-Lo. Ora, assim como Deus não sofre alteração (por ser a própria e infinita Perfeição), assim também sua voz espontânea em nós não conhece mudança (ao contrário, podem ser alteradas pelo próprio Deus as leis divinas positivas, isto é, as leis que o Criador não exprime diretamente pela natureza humana).

Na explicitação da consciência humana três fatores decisivamente combinam entre si a sua ação; tais são:

1) o desenvolvimento de certos órgãos do corpo, entre os quais tem importância máxima o cérebro (sede da fantasia, do senso comum);

2) os hormônios, que ativam o funcionamento de tais órgãos;

3) a educação, ou seja, a devida intervenção dos adultos no desabrochar das faculdades latentes da criança.

A influência dos elementos 1) e 2) se deve ao fato de que a personalidade humana não reside apenas na alma ou na parte espiritual do homem; ao contrário, este é essencialmente um composto de alma e corpo, de tal sorte que só pode atingir a sua perfeição mediante a colaboração harmoniosa dos dois componentes; por conseguinte, se o corpo não fornece a sua contribuição (em virtude de lesão cerebral, por exemplo, ou de deficiente metabolismo), a alma não pode expandir as perfeições que o Criador lhe deu. — A necessidade de educação se deriva também da natureza humana, que é social, incapaz de atingir isoladamente a sua consumação em qualquer setor que seja (econômico, cientifico, técnico e também moral).

As falhas de um ou mais dos elementos acima produzem as taras e os indivíduos tarados.

2. É à luz destas verdades que se deve considerar o caso das chamadas «crianças selvagens».

O Professor Zingg, da Universidade de Denver (Estados Unidos), em 1940 publicou a descrição de vinte e cinco casos de crianças que, adotadas por animais, cresceram nas selvas, levando vida inteiramente selvagem. Gesell consagrou depois um estudo às gêmeas de Midnapor — Amala e Kamala — as quais viveram entre lobos durante vários anos, sendo, a seguir, recolhidas por um pastor hindu, que as observou minuciosamente. Essas crianças, quando descobertas, caminhavam sobre as mãos e os joelhos («a quatro patas») e com tanta rapidez que um homem adulto dificilmente as podia acompanhar; iam à caça com os lobos, participando das peripécias destes e dilacerando com os dentes os animais captados, sem se servir das mãos. Quando os homens mataram os lobos nos antros dos quais viviam as crianças, estas se defenderam com garras e dentes, à semelhança das feras. Não falavam, mas apenas emitiam os gritos habituais dos lobos, imitados à perfeição. Até o fim da vida, as meninas preferiram a companhia das feras à dos homens; os lobos capturados não se espantavam quando se lhes aproximava Kamala como se espantavam quando um ser humano normal se lhes chegava perto. Amala, a mais jovem, morreu em breve. Com dificuldades as duas crianças aprenderam a caminhar sobre os pés apenas e a pronunciar algumas frases simples da linguagem humana.

O que dizer de tal fenômeno?

Zingg rejeitou perempoòriamente a hipótese segundo a qual as crianças selvagens seriam idiotas; Kamala, na educação que recebeu posteriormente, compreendia sem demora o que dela se desejava, e deu provas de uma inteligência prática ou técnica assaz aguda. Embora o semblante das meninas fosse destituído das expressões ou dos sinais habituais da mímica humana, Kamala derramou uma lágrima quando morreu Amala, sua companheira. Tais manifestações, embora sóbrias, dão a ver que as mencionadas crianças possuíam em gérmen as faculdades características do ser humano (eram autênticas criaturas humanas); essas faculdades, porém, nunca haviam saído do seu estado latente ou virtual, por falta de educação; tendo vivido num ambiente de feras, às quais falta totalmente a consciência moral (ou seja, a apreciação do bem e do mal moral, assim como de um Legislador Supremo), as duas meninas nunca tiveram ocasião de despertar e exercer a sua consciência moral; esta, porém, existia nelas e transpareceu quando colocadas em ambiente propriamente humano. Desse fenômeno, portanto, concluir-se-á o seguinte: assim como não é normal ao homem engatinhar, assim também não lhe é normal carecer de vida moral; contudo, assim como por carência de educação ou por defeito do ambiente ele pode viver à semelhança de uma fera (sem deixar de ter verdadeira natureza humana), assim também pode viver sem mostrar consciência moral (embora a possua sempre latente). Tais casos, porém, são anômalos (como os dos indivíduos tarados), e não podem servir de padrão para se julgar o autêntico psiquismo humano.

Para corroborar a afirmação de que a consciência moral não é mero artifício incutido ao homem pelo ambiente, deve-se notar o fenômeno inverso ao das crianças selvagens: o progresso moral da humanidade se deve, em grande parte, a indivíduos que experimentaram em seu íntimo o desejo imperioso de reagir contra os costumes da sociedade que os cercava e tendia ao conservativismo e à degenerescência. A vida moral assim mostra ser não o efeito de pressão sobre o homem, mas uma exigência do ser humano como tal, exigência que se manifesta periodicamente nos surtos de indivíduos e grupos que procuram ultrapassar moralmente a si mesmos.

Convém notar, outrossim, que a consciência moral não é, em última análise, senão uma manifestação do sentimento religioso; sim, pela consciência o homem apreende a existência de uma lei e de um Legislador (Deus) aos quais ele está sujeito independentemente da sua vontade (é absurdo falar de uma Moral leiga; a Moral só se pode basear em Deus). Ora, o sentimento religioso, longe de ser um artifício de educação, é, antes, um característico da natureza humana; como o comprovam pesquisas etnológicas posteriores entre os índios da Terra do Fogo, os pigmeus, os esquimós etc.: não há povo que não o possua, ao passo que nenhum animal irracional manifesta (nem mesmo em esboço) o mínimo sentimento religioso. Isto é tanto mais significativo quanto se sabe que certas formas inferiores de religiosidade, como a superstição, a magia, muito conviriam ao animal desejoso de conjurar a sorte e conciliar-se as boas graças desse «semideus» que é o homem. Vercors, no seu livro recente «Les animaux dénaturés», ao mesmo tempo que faz afirmações tendenciosas, insinua ser o fetichismo (infelizmente, forma de religião aberrante) o critério mais nítido que diferencia a natureza do homem da do irracional.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 2 – fev/1958
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