Culto dos Santos e paganismo

– “O culto dos Santos não será paganismo que corrompe o Evangelho? Em particular, a devoção a Maria parece derrocar a excelência de Cristo, o único Mediador entre Deus e os homens (cf. 1Timóteo 2,5)” Carmen (São João de Meriti-RJ).

1. Embora o culto dos Santos seja por vezes exagerado por parte de devotos pouco esclarecidos, ele possui um sentido profundamente cristão; dir-se-á mesmo: um sentido essencialmente teocêntrico e cristocêntrico.

Com efeito, quem são os Santos, que a piedade cristã tem em vista?

São membros do Corpo Místico de Cristo nos quais a Redenção deu a plenitude de seus frutos; terminaram a sua peregrinação terrestre totalmente penetrados pelo amor de Cristo, fielmente configurados a Ele, e gozam atualmente da visão de Deus face a face.

Conscientes disto, os cristãos, desde os primeiros séculos, voltaram sua atenção para os Santos (em primeiro lugar, para os Mártires, que são os mais belos frutos da obra do Redentor) a fim de os envolver na sua piedade. Anualmente, no dia aniversário da morte (chamado com muito acerto «o dia natalício») de tal mártir ou tal justo famoso, os fiéis se reuniam – e se reúnem – para celebrar a Liturgia votiva do Santo.

E qual o sentido preciso dessa celebração? Não desvia ela a atenção dos orantes, que deve estar toda voltada para Deus?

Não! A genuína piedade para com os Santos é — repitamo-lo — teocêntrica; nem querem eles ser cultuados em detrimento da nossa união com Deus; muito ao contrário, só desejam que esta se intensifique.

Na verdade, os Santos, em primeiro lugar, constituem motivo especial para que os cristãos adorem, louvem e agradeçam a Deus. Com efeito, todo Santo é do seu modo um artefato esmerado do Criador e do Redentor (cf. Salmo 4,4); é uma expressão enfática da sabedoria de Cristo e da sua vitória, que nele se desdobra com matizes particulares e traços minuciosos muito vivos. E é essa magnificência divina que, antes do mais, os fiéis reconhecem e agradecem ao considerar os Santos. O culto prestado a estes, portanto, é sempre relativo; é o culto indireto do Criador, do Redentor e de sua Bondade (está claro que o cristão não pensa em adorar os Santos, muito menos ainda adorar uma estátua de Santo).

Após evocar à nossa memória Deus e suas obras, a figura do Santo cultuado não pode deixar de despertar nos fiéis que ainda peregrinam nesta terra, o desejo de chegarem também eles ao termo consumado ou à Jerusalém celeste em que se encontram os bem-aventurados. Por isto, o culto dos Santos implica, em segundo lugar, uma prece, geralmente dirigida a Deus Pai, a fim de que, por intercessão de tal ou tal membro da corte celeste, nos queira outorgar «o pão nosso de cada dia», as graças, tanto espirituais como sensíveis, de que necessitamos para conseguir a plenitude da Redenção, para ser imagem perfeita do Cristo Jesus (cf. Romanos 8,29). O Santo, em tal caso, é considerado como o amigo que, em virtude de sua caridade, não pode deixar de orar pelo amigo que dele precisa; as preces dos justos consumados são, sem dúvida, particularmente agradáveis ao Pai do céu (cf. Gênesis 18,22-32). Mais ainda: quando oramos a Deus apresentando-lhe a obra grandiosa que Ele realizou em seus Santos, valemo-nos deles como que de penhores da nossa consumação; é-nos lícito apoiar-nos sobre o que Deus já fez em seus justos para pedir faça algo de semelhante em nós.

A Sagrada Escritura mesma dá-nos a saber que o Senhor do céu manifesta aos seus justos o que nos concerne na terra, mormente as nossas necessidades; mostra-nos também como, em consequência, oram por nós (aliás, como se poderia admitir o contrário, desde que constituímos uma grande família, um Corpo Místico, a Comunhão dos Santos?). Tenha-se em vista, por exemplo, o texto de 2Macabeu 15,11-14, segundo o qual Judas Macabeu contemplou no céu Onias, o antigo Sumo Sacerdote, de «aspecto modesto e costumes brandos… entregue desde a infância a todas as práticas da virtude, o qual estendia as mãos e orava por toda a nação dos judeus». Viu também Jeremias, «notável por sua dignidade, revestido de prodigiosa e soberana majestade», a respeito do qual lhe foi dito: «Este é o amigo de seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo e por toda a Cidade Santa: Jeremias, o profeta de Deus».

Pode-se lembrar, outrossim, que no Apocalipse o vidente descreve um anjo a fazer subir até o trono de Deus as preces proferidas pelos justos na terra (8,3-4).

2. As orações clássicas que a Liturgia formula no culto dos Santos geralmente se dirigem a Deus Pai, para O louvar e suplicar mencionando os méritos de tal ou tal justo. Contudo, após o que foi dito, vê-se não ser errôneo interpelar diretamente os santos; é mesmo este o modo mais comum como o povo cristão os cultua. Isto não quer dizer que sejam considerados fontes de graças e doadores da Redenção. Ao contrário, todo fiel sabe perfeitamente que os Santos são grandes unicamente por causa do Sumo Sacerdote, cujos méritos frutificaram neles; sabe que o Cristo é o único Dispensador da salvação. A esta verdade, porém, não inflige derrogação nenhuma quando pede aos Santos unam suas preces às nossas no intuito de nos obter os benefícios do Redentor; se se tornam intercessores nossos, a sua mediação não se coloca ao lado da de Cristo, encobrindo o papel do Salvador, mas, ao contrário, fica toda sujeita a Jesus; é mesmo uma afirmação nova, por vezes esplendorosa, da mediação do Redentor.

É neste sentido que a Igreja entende a piedade para com os Santos.

3. Tais ideias se aplicam de maneira especial à devoção a Maria Santíssima. Além de ser, dentre as criaturas, a que mais agradou a Deus, Cristo quis torná-la Mãe dos homens (cf. João 19,26-27); o que quer dizer: associou-a particularmente a nós por caridade, e confiou-nos de modo especial à sua proteção. Conscientes disto, é que os cristãos recorrem com ternura filial às preces da Mãe do céu; sabem que é esta a criatura na qual Cristo com mas abundância quis derramar os benefícios da Redenção, unindo-a muito intimamente a Si em toda a sua obra salvadora; foi por Maria que Cristo veio ao mundo; a carne de Maria e a carne de Jesus eram «uma só carne» (como se diz classicamente). O próprio Senhor se dignou mostrar quanto lhe agradava a intercessão de Maria: por ocasião das bodas de Caná, rogado por sua Mãe Santíssima, insinuou-lhe primeiramente que ela desejava algo de muito grande (quase a “antecipação da sua hora”), mas não deixou de fazer o seu primeiro milagre justamente a pedido de Maria (cf. João 2,1-11). Este episódio tem certamente profundo significado para se avaliar a devoção a Maria Santíssima.

Note-se ainda que esta, em absoluto, não derroga à mediação de Cristo; foi mesmo por causa de Jesus, para mais O pôr em realce, que a atenção dos fiéis pela primeira vez se voltou para Maria de modo solene: no séc. V, a fim de defender o genuíno conceito da Encarnação do Filho de Deus, os bispos e teólogos reunidos no Concílio de Éfeso (431) definiram convir a Maria verdadeiramente o título de «Mãe de Deus» (Theotókos); dizendo isto, queriam proclamar, contra o Nestorianismo, haver em Cristo uma só Pessoa — a Divina (cf. artigo “Como pode Maria, uma criatura, ser ‘Mãe de Deus’?”). Assim, a primeira afirmação mariana da teologia católica foi, em última análise, uma afirmação cristológica; e foi sempre em função de Cristo, subordinadamente a Jesus, que a genuína piedade cristã cultuou a Santa Mãe de Deus.

4. Aliás, entre os protestantes contemporâneos nota-se uma renovação da estima a Maria: apareceu recentemente um folheto protestante na Suíça, onde se lamenta que a Reforma tenha ido tão longe nas suas derrogações ao culto de Maria e se afirma que o Protestantismo terá de reparar as injustiças cometidas para com a Mãe do Salvador, que é também a Mãe da Cristandade toda, visto que, sendo pela fé irmãos de Jesus, havemos também de ser filhos de Maria. Em Taizé-Cluny (França) existe uma comunidade de religiosos reformados (como que monges protestantes) que, dedicando-se à Liturgia, editaram para seu uso um livro de Oficio Divino para cada dia do ano (espécie de Breviário); nesta obra estão assinaladas as festas da Anunciação e da Purificação de Nossa Senhora, assim como uma festa mariana para 15 de agosto. Max Thurian, o pastor dirigente dessa comunidade, observou que, se a invocação dos santos não é disciplinarmente legítima na Reforma, ela parece ao menos lícita. Semelhante afirmação foi proferida pelo pastor Vidal, secretário da Federação Reformada da França.

É muito interessante também o testemunho de Karl Barth, o mais importante teólogo protestante de nossos dias:

– “No séc. XVI importava dizer que os Santos da Igreja, os defuntos, não têm a possibilidade de nos ajudar. Contudo, talvez fosse lícito acrescentar um ponto de interrogação a afirmação tão categórica. Não estou tão certo de que os Santos da Igreja não nos podem ajudar; os Reformadores, por exemplo, e os Santos que estão sobre a terra. Vivemos em comunhão com a Igreja do passado e dela recebemos um auxílio. Um fato, porém, é certo: nem os homens vivos, nem os que já morreram, podem-se tornar para nós o que Deus é para nós — um socorro na grande opressão que é a nossa diante do Evangelho e da Lei” (“La prière d’après les catéchismes de la Réformation”, Paris: Neuchâtel, 1949, p.13).

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 3 – mar/1958
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