Existe liberdade de arbítrio?

– “O homem possui realmente liberdade de arbítrio, de modo a ser responsável por seus atos?” (Tiago Natal – Rio de Janeiro-RJ).

Questão formulada a propósito de um texto de Alexandre Dumas:

– “Diz-se que Deus outorgou ao homem o livre arbítrio (…) Se o deu, só o deu ao primeiro homem que Ele criou (…) Tal pai, tal filho. Após o segundo homem, não somos mais as criaturas de Deus (…) O pai foi culpado, o filho é criminoso; a transmissão fisiológica tem início, a fatalidade hereditária se impõe”.

De certo modo já foi dada resposta a esta questão ao se abordar o tema do Destino no artigo “Por que a ideia de ‘destino’ ainda sobrevive?”. Voltemos ao assunto, procurando aprofundá-lo.

1. A liberdade de arbítrio de que entendemos tratar aqui é a propriedade arraigada na vontade do homem, de poder escolher entre o agir e o não agir, entre o agir deste modo e o agir daquele modo.

A existência desta propriedade se deriva das proposições seguintes:

– O homem possui duas faculdades que o caracterizam como ser espiritual: a inteligência e a vontade.

– A inteligência é capaz de formar o conceito de ser como tal, abstração feita de tal e tal modalidade do mesmo. Quanto à vontade, é a faculdade que ama o ser previamente conhecido pela inteligência.

– Ora todo ser, por natureza, é bom (o mal é uma carência; cf. artigo “A existência do mal no mundo não contradiz a existência de Deus?”). Disto se segue que a vontade em qualquer de seus atos quer o bem, e não pode querer senão o bem (o bem real ou, ao menos, o bem aparente).

Digamos agora que a inteligência apresente à vontade o Ser (que é também o Bem) real infinito (Deus) apreendido como infinito, sem mistura de não-ser ou de imperfeição; a vontade então não pode deixar de aderir a Ele e de se dar por plenamente satisfeita; no caso, não goza de liberdade, porque o não agir ou o agir de outro modo não lhe podem parecer um bem (o Bem infinito é o que esgota o conceito de Bem). Todavia, o encontro face a face com o Infinito não se dá na vida presente. Todo bem que a inteligência conheça na terra ou é finito ou é o Infinito (Deus) apreendido analogamente, à semelhança dos seres finitos; de onde se segue que, enquanto está unida ao corpo, a vontade humana nunca é necessariamente solicitada por determinado objeto. Qualquer ser que se lhe apresente, pode-lhe aparecer não somente como um bem, mas também como um não-bem ou como um bem deficiente (o próprio Deus lhe ocorre não apenas como Pai atraente, mas também como o Legislador coibitivo de tais e tais prazeres desregrados e, enquanto tal, pode ser repudiado).

É isto que nos leva à conclusão de que a vontade humana goza de liberdade de arbítrio neste mundo em relação a qualquer bem criado e em relação ao próprio Criador; enquanto a inteligência apresenta à vontade os aspectos de um objeto convenientes às disposições momentâneas do sujeito, a vontade se inclina para esse objeto; dado, porém, que o indivíduo se ponha a considerar os aspectos do mesmo objeto que contrariam às paixões do sujeito, a vontade já tem fundamento para o rejeitar.

Eis brevemente o argumento filosófico de onde se deduz a existência do livre arbítrio no homem. Tal raciocínio é comprovado pela experiência: todo indivíduo tem consciência de ser, por natureza, senhor de seus atos, responsável do que fez e deixou de fazer; pressuposto isto, as leis sempre estabeleceram sanções correlativas ao procedimento do homem.

2. Vejamos agora outro aspecto da questão.

A vontade humana, cuja natureza considerávamos acima, age dentro de um corpo e em dependência deste, pois é mediante os sentidos que ela é posta em presença dos diversos objetos que a podem solicitar (entre os órgãos da vida sensitiva toca especial importância ao diencéfalo, parte do cérebro que desempenha o papel de uma espécie de central telefônica ou de um radar em relação aos demais sentidos).

Em consequência desta união com o corpo, a vontade sofre as influências da constituição própria do mesmo, constituição que varia de indivíduo para indivíduo, de biótipo para biótipo, sendo em grande parte transmitida pelas leis da hereditariedade, em parte também influenciada por fatores sociais, geográficos, históricos etc. A moderna Psicologia científica adverte que não se pode dissociar no homem o plano intelectivo e volitivo do plano sentimental, nem este do plano vegetativo e instintivo; todo ato volitivo, por exemplo, é acompanhado, de maneira mais ou menos inconsciente, por movimentos emotivos que escapam ao pleno controle da vontade; a linguagem humana (que é a expressão mais típica do raciocínio ou da espiritualidade do homem) é acompanhada por movimentos mímicos, gestos automáticos do corpo, desencadeados pelo funcionamento da inteligência e da vontade. Assim, o espiritual e o corpóreo, o consciente e o inconsciente, colaboram intimamente no homem.

Admita-se, pois, que algum órgão ou a estrutura geral do organismo se ressinta de defeito ou desequilíbrio, transmitido por hereditariedade ou contraído pelo próprio sujeito… O psiquismo humano padecerá naturalmente os efeitos daí decorrentes: tornar-se-á mais ou menos incapaz de reconhecer as normas objetivas do seu procedimento ou de conceber exatamente, «aqui e agora», o que é seu dever; manifestará também inclinações aberrantes, obsessões… Alguns defeitos fisiológicos podem estar tão arraigados que impeçam em grau maior ou menor o devido funcionamento da inteligência e da vontade. Em tais casos, a liberdade do agente é diminuída ou de todo tolhida; o pecador é então por Deus isentado de culpa, não lhe sendo imputado o que ele realiza sem a participação de sua livre vontade. Sabe-se que a Moral não obriga a incriminar de antemão todo indivíduo do qual procede materialmente (ou no foro externo) uma ação criminosa.

Na base da experiência, principalmente dos tempos modernos (enervados por guerras e convulsões diversas), pode-se crer que defeitos fisiológicos, hereditários ou adquiridos, afetem grande número de indivíduos, impedindo-lhes em grau parcial ou total o exercício da liberdade.

Não se poderá dizer, porém, que toda e qualquer pessoa acusada de culpa em nossos dias é inocente; a multiplicação de casos patológicos não mudou a natureza humana como tal. A prova disto é que se têm empreendido com pleno êxito operações que, corrigindo o mau funcionamento de certos órgãos (cérebro, glândulas etc.), têm permitido ao indivíduo fazer uso normal de sua liberdade ou da faculdade de dominar os seus atos: o delinquente inveterado se pode, às vezes, tornar indivíduo sadio, dotado de plena responsabilidade. Destas operações, já mencionamos no artigo “Por que a ideia de ‘destino’ ainda sobrevive?” as que foram realizadas em cérebros humanos por Orage Nielson e Puech. Tais intervenções cirúrgicas não significam produção ou restauração da inteligência ou da vontade no indivíduo (isto suporia não haver diferença entre espírito e corpo, tese de que trata o artigo “Distinção entre ‘espírito’ e ‘matéria'”); significam apenas que os médicos podem restltuir à inteligência e à vontade de uma pessoa os instrumentos corpóreos (as «minas» de matéria-prima) de que estas faculdades precisam para exercer sua atividade espiritual.

3. Pergunta-se agora: será que os indivíduos predispostos ao mal (e todos o são até certo ponto, porque a natureza humana se ressente do desequilíbrio original ou da desordem que nela introduziu o primeiro pecado) ainda podem ser tidos como criaturas de Deus? Não serão simples produtos da cega fatalidade hereditária, como afirma Dumas?

Na verdade, Deus nunca deixa de reger a natureza que Ele criou. Criou-a, porém, dotada de suas leis biológicas, de suas normas de hereditariedade, e permite em geral que estas se atuem. O corpo humano, por conseguinte, é formado com as características típicas da família de que descende; e a tal corpo o Criador infunde tal alma a ele adaptada, e a ele só. O Senhor não quis criar todos os indivíduos iguais, pois entende manifestar pelas criaturas a variada riqueza de suas perfeições. O fato é que todo ser humano nasce normalmente com um cabedal de qualidades e, ao mesmo tempo, com certo lastro de tendências ao erro (devidas à natural falibilidade da criatura acentuada pelo pecado dos primeiros pais; a respeito disto, veja-se o artigo “Como se explica que a culpa original passe para todo homem?”).

Em consequência, todos têm que lutar contra a concupiscência inata, uns de maneira mais visível, outro de modo mais oculto, mas não menos real. Tenha-se por certo que a cada um o Criador comunica os meios para sair vitorioso deste combate; a ninguém Ele denega o auxilio adequado ao respectivo caso. A quem mais tem que lutar, competirá também mais intima participação na felicidade de Deus, pois terá tido ocasião de mais exercer o amor a Deus.

Quanto aos indivíduos totalmente incapazes ou irresponsáveis, permanecem abaixo da ordem moral, e salvam-se como as criancinhas que morrem antes de chegar ao uso da razão; Deus só julga o homem na medida em que a este é dado agir com liberdade. E saibamos que esta medida escapa facilmente à nossa capacidade de observação; por conseguinte, não queiramos julgar… nem aos homens nem a Deus.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 5 – mai/1958
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