O “cem por um” do Evangelho

– “Como interpretar o ‘cem por um’ da Escritura, prometido aos que deixam tudo para seguir a Cristo? Significa bens materiais, casas inúmeras, assistência religiosa na hora da morte, maior número de graças ou dons referentes à vida futura?” (Juarez – Rio do Janeiro-RJ).

– “Todo aquele que deixar casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de Mim e do Evangelho, receberá ao cêntuplo, desde já, no mundo presente, casas, irmãos, irmãs, mães, filhos, campos — com perseguições — e, no mundo futuro, a vida eterna” (Marcos 10,29-30).

Estas palavras têm dado margem a interpretações variadas, que passamos a analisar brevemente:

a) Houve quem as entendesse em sentido material e grosseiro, como o Imperador Juliano o Apóstata (+363), que escarnecia os cristãos perguntando-lhes se esperavam ter cem esposas.

b) Outros preferiram interpretá-las como o anúncio de um reino milenário, visível, de Cristo sobre a terra, anterior ao juízo universal; nesse período, caracterizado por bonança, os discípulos do Senhor receberiam materialmente o cêntuplo prometido.

c) Outros comentadores tomaram as palavras de Jesus em sentido alegórico. Dizia, por exemplo, São Jerônimo (+420), ao qual fazem eco vários escritores antigos: «Qui carnalia pro Salvatore dimiserit, spiritualia recipit. — Quem, por amor do Salvador, abandona o que é carnal, recebe o que é espiritual» (ed. Migne lat., t.26, p.139). Por conseguinte, os justos, em troca da fraternidade com seus familiares, receberiam a fraternidade com Deus; em lugar de seus campos, receberiam o paraíso, etc.

Nos nossos tempos prevalece, a justo título, a interpretação espiritual; os exegetas modernos, porém, abrandam o extremo alegorismo de São Jerônimo, embora não concordem plenamente entre si sobre o significado positivo dos dizeres de Cristo.

d) O famoso Pe. Lagrange julga que o cêntuplo se deve entender não no plano da quantidade, mas no dos valores (São Marcos, p.277), a saber: o cristão, seguindo a Cristo, entra numa família nova, vinculada pelos laços da caridade sobrenatural; os fiéis podem, com efeito, chamar-se irmãos uns aos outros, pois, pela graça santificante, participam todos da natureza divina (cf. 2Pedro 1,4). São também filhos espirituais dos Apóstolos, que os geraram no Cristo Jesus (cf. Gálatas 4,19; 1Coríntios 15,58; 2Coríntios 6,11-13). Tenha-se em vista igualmente o caso de São Paulo, que saudava como mãe sua a mãe de Rufo (cf. Romanos 16,13), sem dúvida por causa da notável caridade dessa matrona. É de notar outrossim que, ao receber o batismo, os cristãos de Jerusalém passavam a viver em comunhão de bens, não só espirituais, mas também materiais (cf. Atos 2,44; 4,32); de então por diante, usufruiriam da liberalidade de seus irmãos pertencentes a comunidades mais abastadas do estrangeiro (cf. Atos 11,29-30; 16,16; Gálatas 2,10; 2Coríntios 8,1-9,15).

O Pe. Huby nota que o quadro de vida da Igreja nascente (com a sua comunhão de bens materiais) não se reproduz como tal nos tempos modernos; julga, porém, que algo de equivalente se dá até os nossos dias:

– “As circunstâncias mudaram, mas a palavra de Cristo continua a se verificar em sentido ainda mais grandioso. Aqueles que tudo abandonam para O seguir, estão seguros de receber, em troca dos bens naturais que se contam e se pesam, os valores incomensuráveis proporcionados pela caridade” (São Marcos, p.235).

A sentença de Huby, na verdade, combina a interpretação literal e a alegórica; em última análise, ela identifica a promessa do cêntuplo com a promessa, também feita por Jesus, de que a Providência do Pai não abandonaria aqueles que se Lhe entregassem (cf. Lucas 12,22-31); a solicitude da Providência, que abrange todos os homens, se exerceria de modo particular em favor dos que tudo deixam para seguir a Cristo.

e) Por muito sugestiva que seja esta interpretação, parece merecer preferência a seguinte, devida ao Pe. Lebreton:

Jesus pôde dizer que o justo recebe o cêntuplo neste mundo, porque, na verdade, a renúncia aos bens terrestres nos torna senhores dos mesmos; liberta-nos de qualquer apego escravizador e dá-nos a intuição do seu verdadeiro significado, fazendo-nos ver nessas criaturas materiais o seu valor autêntico: são sinais da presença e da ação de Deus. São Paulo, pobre de bens visíveis, deu enfática expressão a tal verdade, afirmando que ele “nada tinha, mas paradoxalmente tudo possuía” (cf. 2Coríntios 6,10). Com efeito, observa-se que os discípulos de Cristo, no decorrer dos séculos, quanto mais renunciaram, tanto mais ganharam ascendência e domínio sobre o mundo que os cercava; tal foi o caso de São Bento, de São Francisco de Assis, dos grandes ascetas do deserto, aos quais a natureza, os animais, as plantas, até mesmo as epidemias e calamidades, obedeciam; conseguiram, sem intenção preconcebida, poder tal sobre a natureza qual nunca obtiveram os que acumulam riquezas e prestigio terrestres.

É certamente e sempre neste sentido muito fino e profundo que se cumpre a promessa de Cristo consignada em Marcos 10,29-30 (“ao cêntuplo, desde já, no mundo presente”). Em certos casos, porém, não se negará que a Providência recompensa também num sentido um pouco mais material (como o propõe Lagrange ou Huby) aqueles que tudo abandonam por amor de Cristo.

Por fim, o cristão não deixará de levar em conta a promessa de perseguições que Jesus justapõe às demais, na frase de Marcos 10,30. Este traço dá a ver que o Senhor não entendia colocar diretamente ante os olhos de seus discípulos bem-estar e fartura; isto seria totalmente contrário ao espírito de Cristo, que ensina:

– “O servo não é maior do que o seu senhor; se perseguiram a Mim, também a vós perseguirão” (João 15,20).

Será, sem dúvida, com a cruz e por meio da cruz que o cristão receberá o cêntuplo.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 2 – fev/1958
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