Por que a Igreja proíbe o divórcio se Jesus o permitiu em Mateus 5,32 e 19,9?

– “Por que a Igreja Católica proíbe o divórcio? O próprio Jesus o permitiu em caso de adultério (cf. Mateus 5,32; 19,9)” (Aloísio Moura – São João del Rei-MG).

As razoes pelas quais a Igreja proíbe o divórcio, já anteriormente expostas [nos artigos “É possível ao católico ser favorável ao divórcio?” e “Há casos em que a Igreja permite o divórcio?”], não são de modo nenhum desvirtuadas pelas palavras de Jesus acima referidas.

Para maior clareza de exposição, eis os textos mencionados, na tradução mais corrente que se lhes dá:

– Mateus 5,32: “Todo aquele que repudia sua esposa, ‘fora do caso de adultério’ (=”parektós lógou pornéias”), expõe-na a adultério; e todo aquele que esposa uma mulher repudiada, comete adultério”;

– Mateus 19,9: “Todo aquele que repudia sua esposa, ‘a não ser em caso de adultério’ (=”mé epi pornéiai”), e se casa com outra, comete adultério.

Estas duas passagens são interpretadas pelos cristãos cismáticos do Oriente e pelos protestantes como se autorizassem o divórcio em caso de adultério. Verifica-se, porém, que tal interpretação não condiz com os textos paralelos de Marcos 10,11-12 e Lucas 16,18, em que Jesus ensina irrestritamente a indissolubilidade do matrimônio (omitida a ‘cláusula de adultério’); supõe, além disto, haja São Paulo ordenado em nome do Senhor o contrário do que o Senhor mesmo preceituou:

– “Aos cônjuges ordeno, não eu, mas o Senhor: a esposa não se separe do marido e, se porventura se separar, não se case de novo” (1Coríntios 7,10-11).

Já estas considerações tornam a interpretação divorcista dos textos de Mateus assaz suspeita, se não impossível; o Evangelho tem que ser explicado primariamente pelo Evangelho e pela Escritura Sagrada em geral. Ora, no tocante aos textos de Mateus 5 e 19, não resta dúvida de que São Marcos, São Lucas e São Paulo nos transmitem a genuína mente do Senhor.

À vista disto, os exegetas conhecem duas principais explicações das referidas palavras do Mestre:

1) A sentença clássica, desde os tempos de São Jerônimo (+420), traduzindo a palavra grega pornéia por “adultério”, ensina que Jesus realmente admitiu o repúdio da esposa em caso de adultério, ou seja, a separação do casal, o desquite; mas, com isto, não autorizou novas núpcias, pois Ele acrescenta que todo varão que se case com uma mulher repudiada ou desquitada comete pecado (Mateus 5,32), assim como peca todo homem desquitado [=separado] que se case de novo antes da morte de sua esposa (Mateus 19,9).

Poder-se-ia perguntar: porque Jesus fez menção especial, do caso de adultério, ao formular as normas acima.

Os motivos se depreendem sem grande dificuldade: em Mateus 5,32, se Jesus não tivesse feito a exceção, haveria dito que o marido que repudia a esposa adúltera, a expõe a adultério — afirmação muito estranha! Além disto, a propósito tanto de Mateus 5 como de Mateus 19, note-se que o adultério era objeto de particular atenção na Lei mosaica; o marido que surpreendesse a mulher em adultério, tinha o direito – se não o dever – de a denunciar e de provocar o castigo da mesma, que era habitualmente a pena de morte (cf. Levítico 18,20; 20,10; Deuteronômio 22,20); ora, uma vez morta a esposa adúltera, está claro que o marido, casando-se de novo, não cometeria adultério. Dado, porém, que a esposa adúltera não fosse apedrejada ou não morresse logo, ficaria claro – conforme Jesus -, que novas núpcias não seriam permitidas a nenhum dos cônjuges desquitados.

2) Uma interpretação mais recente tem merecido a aprovação de abalizados exegetas. O Pe. J. Bonsirven, especialista em estudos rabínicos, analisou os textos de Mateus à luz da terminologia dos judeus contemporâneos de Cristo. Concluiu, baseado sobre erudito aparato de filologia bíblica e extrabíblica, assim como de jurisprudência rabínica, que o termo grego “pornéia” corresponde ao hebraico “senut”; ora, este designava não o adultério (como supõe a interpretação clássica), mas o concubinato, ou seja, a união ilícita, o matrimônio falso ou nulo (cf. Levítico 18,7-18; João 4,17s; 1Coríntios 5,1). Suposto isto, Jesus haveria condenado o divórcio em casos de matrimônio válido; tê-lo-ia, porém, permitido (se pode-se assim dizer) desde que se trate de casamento nulo ou de união incestuosa (não há dúvida, esta também pode ser saneada pela legalização do matrimônio ou pela celebração legítima do contraio nupcial); veja-se J. Bonsirven, “Le divorce dans le Nouveau Testament”, Tournai, 1949; Revista Eclesiástica Brasileira 12, 1952, p.609-610; Revista de Cultura Bíblica 1, 1950, pp.1-16.

Além destas duas sentenças, uma terceira goza de certa voga (cf. a nota explicativa a Mateus 19,9 na “Bíblia de Jerusalém”):

A lei de Moisés (Deuteronômio 24,1) concedia ao marido repudiar a esposa, caso nela notasse “algo de torpe” (=”erwat dabar”). Esta expressão, vaga como é, recebia duas interpretações por parte das escolas rabínicas contemporâneas a Cristo: a de Hillet, alargava ao máximo o sentido das palavras, compreendendo sob elas até uma falta de respeito ou leve ofensa; a do Shammai, ao contrário, entendia o “erwat dabar” no estrito sentido de adultério. Pois bem: perante as duas sentenças discutidas, Jesus se teria recusado a tomar posição; haveria dito, por conseguinte, em Mateus 19,9:

– “Todo aquele que repudia sua esposa – não falo do “erwat dabar”, das possibilidades de repúdio admitidas pelos casuístas judeus — e se casa com outra, comete adultério”.

Deixando, porém, de tomar partido entre Hillel e Shammai, Jesus não entendia permitir o divórcio (separação com novas núpcias), como se depreende das suas próprias palavras, assim como de todo o contexto do Evangelho e do Novo Testamento.

Parece merecer preferência a primeira ou a segunda interpretação acima propostas.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 7:1957 – nov/1957
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