Por que a Missa era celebrada somente em latim?

– “Por que [antigamente era] celebrada a Missa [somente] em latim?” (Isolina Rocha – Belo Horizonte-MG).

Como é evidente, não há preceito divino concernente ao idioma do culto cristão. Jesus na última ceia instituiu a Sagrada Eucaristia falando aramaico, a linguagem usual do seu povo. Do mesmo modo os Apóstolos e as gerações subsequentes de cristãos, propagando o Evangelho fora da Palestina, celebravam a Liturgia servindo-se do idioma local: grego, armênio, etíope, geórgio etc.

Com o decorrer dos tempos, porém, foram-se diversificando as circunstâncias da vida civil no Oriente e no Ocidente.

No Oriente, os bispos e missionários não hesitaram em celebrar o culto em novas línguas, desde que correspondessem aos costumes dos povos a quem pregavam. Assaz significativo é o caso dos Santos Cirilo e Metódio; estes, provindo de Constantinopla, no séc. IX puseram-se a evangelizar os eslavos da Morávia; seguindo o costume dos missionários bizantinos, traduziram a Sagrada Escritura e as preces da Santa Missa para o eslavônico, língua materna dos recém-convertidos. Alguns cristãos, porém, duvidaram da liceidade desta praxe; alegando que o título da cruz do Senhor fora redigido em hebraico, grego e latim apenas, concluíam que só estas três línguas eram dignas de louvar a Deus. Ao argumento respondeu em 880 o Papa João VIII:

– “Não é contrário à reta fé e doutrina cantar a Missa ou ler as Escrituras do Antigo e do Novo Testamento bem traduzidas e interpretadas, nem salmodiar as horas canônicas, em língua eslava, pois Aquele que fez as três línguas principais, criou também todas as outras para o Seu louvor e glória” (Bula “Industriae tuae”).

Conservando o costume tradicional até nossa época, os missionários bizantinos (separados de Roma ou cismáticos desde o séc. XI) adotam no culto a língua dos povos recém catequizados: nas regiões bálticas recorrem ao alemão, ao estônio, ao letônio; nas terras do Alasca e vizinhanças, ao esquimó e até a idiomas dos índios; na China e no Japão, às respectivas línguas. Também certos grupos de cristãos orientais e eslavos unidos a Roma guardam suas línguas litúrgicas próprias (grego, sírio, etíope, páleo-eslavo).

No Ocidente, a história tomou rumo diverso. No decorrer do séc. III, a língua grega comum no Império Romano, foi cedendo ao latim, de sorte que a liturgia cristã, a partir do séc. IV, já era exclusivamente celebrada em latim.

Nos séculos seguintes, o Império Romano sofreu as invasões dos germanos, vindo Roma a cair em 476. Sobre as ruínas da antiga civilização formou-se outra, a qual, aproveitando os valores da cultura romana, obedecia a uma inspiração fundamentalmente cristã. Assim o latim, idioma do antigo Império do Ocidente, ficou sendo a língua da nova civilização ou da civilização ocidental cristã e, por conseguinte, também o idioma da liturgia. Nas diversas regiões da Europa através da Idade Média iam-se formando línguas neo-romanas e germânicas, pobres, porém, e insuficientes para exprimir o sentido rico das fórmulas latinas. Por isto até o fim da Idade Média não se punha propriamente a questão do idioma a ser usado no culto; embora as línguas novas fossem enriquecendo o seu vocabulário e literatura, o latim continuava a ser na Europa a língua dos documentos governamentais, dos tribunais, dos estudos, em uma palavra: o idioma da vida séria, ao passo que as novas línguas serviam principalmente para a literatura popular (novelas, folclore).

No séc. XVI, porém, o latim já não era entendido senão pelos eruditos; principalmente os humanistas, à guisa de elite, o cultivavam. Isto levou o rei Francisco I da França a decretar em 1536 que para o futuro todos os documentos oficiais seriam redigidos em francês; o latim, porém, continuou em uso nas Universidades, nas casas dos eruditos e na Igreja.

Foi no mesmo século que os protestantes tentaram remediar à separação que havia entre a língua vulgar e a do culto, propugnando a celebração da liturgia em vernáculo. Lutero, a princípio, hesitou bastante sobre o problema, dada a formação humanista de que estava imbuído; em 1523 publicou em latim a “Formula Missae et Communionis pro Ecclesia Wittembergensi”; em breve, porém, teve que ceder às tendências dos outros pseudo-reformadores da Alemanha e da Suíça (Zwínglio, Calvino), que desejavam total mudança do culto.

A adoção do vernáculo na oração oficial dos cristãos não constituía tese em si condenável (antes, correspondia à praxe antiga da Igreja). Contudo as circunstâncias em que os pseudo-reformadores a propunham só podiam provocar suspeita por parte do Magistério eclesiástico; com efeito, ao postulado da língua nacional na liturgia se prendiam falsas ideias dos Protestantes relativas ao culto cristão: entendiam a liturgia como simples instrumento de catequese e pedagogia para o povo, negando o valor transcendente da Missa e dos sacramentos; por isto, julgavam que se o culto não fosse celebrado em vernáculo careceria de todo valor e utilidade.

Esta maneira de pôr o problema fez que as autoridades da Igreja se manifestassem contrárias à tese protestante; o Concilio de Trento (1543-1565) recusou-se formalmente a mudar a língua da liturgia; esta, mesmo celebrada em latim e não sempre compreensível para o povo, não se tornaria inútil, pois os seus frutos não dependem tanto da compreensão humana ou do “opus operantis” como do poder santificador da graça e dos sacramentos (“opus operatum”).

De resto, a tese dos Protestantes fora precedida de dois movimentos análogos durante a Idade Média. Nos séculos XI/XII eram os Albigenses ou Cátaros, corrente herética fanática, que propugnavam a adoção da língua popular na liturgia; mas o ritual francês que apresentavam, estava longe de ser a tradução das fórmulas latinas; constava quase unicamente de leituras do Novo Testamento e da recitação do “Pai Nosso”, que os Albigenses julgavam ser a única prece válida. Como se entende, a inovação propugnada não logrou aceitação por parte da Igreja, No séc. XV, os Valdenses (discípulos de Pedro Valdes), tendo-se unido aos tchecos Hussitas (seguidores de John Huss), puseram-se também a apregoar a mudança da língua do culto sagrado; contudo esta tese era veiculada com um conjunto de heresias, que só serviam para a desacreditar aos olhos da autoridade eclesiástica.

Depois do solene pronunciamento do Concilio Tridentino, o vernáculo foi de novo reivindicado para a liturgia, sempre, porém, por correntes heréticas e como expressão capciosa de erros dogmáticos.

Tal foi, por exemplo, a atitude dos Jansenistas nos séc. XVII/XVII: desejavam a celebração do culto em francês a fim de propagar de maneira mais suave e penetrante ideias heréticas. A artimanha desses inovadores chegava ao ponto de só propugnarem explicitamente a recitação do Cânon (parte principal) da Missa em voz alta; caso isto fosse praticado (uso que parecia de todo inocente), esperavam que o povo em massa se pronunciasse em favor do vernáculo na liturgia. Aconteceu mesmo que em 1709 o Cônego Ledieu editou o “Missal Meldensem ou “de Meaux”, com a seguinte particularidade: no Cânon da Missa as palavras da Consagração eram seguidas do sinal R/ (resposta) e de “Amen”; o mesmo “R/ – Amen” se via no fim de todas as preces do Cânon que terminam em “Per Christum Dominum Nostrum”; dando lugar explícito às respostas dos fiéis, o novo Missal coagia o celebrante a recitar o Cânon em voz alta.

As astutas cavilações foram decididamente rejeitadas pelos Sumos Pontífices; o Papa Alexandre VII, aos 12 de janeiro de 1661, chegou a condenar uma tradução francesa do Missal e proibiu fossem feitas outras, mesmo para o uso particular dos fiéis; ainda no século XIX, Pio IX por duas vezes rejeitou traduções vernáculas do Ordinário e do Cânon da Missa (não, porém, de outras partes do Missal). A atitude da Santa Sé se enrijeceu quando no fim do séc. XVIII o movimento de Pistóia (Itália), também imbuído de heresias, reafirmou o postulado de vernáculo na liturgia; Pio VI o rejeitou em 1794.

Eis, porém, que, passada a onda jansenista-galicana, a partir de fins do século passado têm sido levantadas algumas das proibições antigas: em 1877, por exemplo, a Sagrada Congregação dos Ritos permitiu de novo o uso de traduções vernáculas do Missal devidamente aprovadas pelos bispos. Em nossos dias de maneira geral as traduções dos livros da sagrada liturgia não somente não são proibidas, mas têm sido mais e mais incentivadas pela autoridade da Igreja e multiplicadas por teólogos e filólogos eminentes. [Manteve-se] o latim como língua oficial da Liturgia Romana [até o Concílio Vaticano II].

Este breve esboço histórico dá a ver que a adesão fiel da Santa Sé ao latim não [foi devido] a motivos dogmáticos, mas unicamente à intenção de preservar incontaminado o dogma católico, do qual a Sagrada Liturgia é expressivo porta-voz. A história atesta um fato (contingente, não há dúvida, mas real): os inovadores da língua do santuário no Ocidente foram geralmente corruptores da fé que se queriam servir da liturgia para propagar o erro. Temendo este perigo, a Santa Sé, do século XVI para cá, renunciou ao costume de fazer coincidir o idioma do culto com o idioma contemporaneamente falado pelo povo. O latim, principalmente nos séc. XVI a XVIII, tornou-se a pedra de toque da ortodoxia. Contudo, pode muito bem dar-se que, uma vez cessado o risco de heresia, as autoridades eclesiásticas adotem os idiomas nacionais na liturgia. É, de resto, o que [aconteceu em todos] os países, inclusive o Brasil: [ainda na década de 1950] algumas seções do ritual do batismo, do matrimônio e dos sacramentais [passaram a ser] ditas na língua local. Em 1920, por exemplo, foi concedida aos católicos da Tchecoslováquia a celebração da Santa Missa de certas festas em língua páleo-eslávica; quanto ao idioma vernáculo, [foi no início] usado oficialmente na Tchecoslováquia e na França por ocasião das Missões solenes, para se cantar a Epístola e o Evangelho depois que [os mesmos já tinham] sido cantados em latim.

Contudo, ao encerrar o Congresso Internacional de Liturgia celebrado em Assis no mês de Setembro de 1956, o Santo Padre Pio XII declarava [favoralmente à manutenção do latim]:

– “Seria supérfluo lembrar ainda uma vez que a Igreja tem graves motivos para manter firmemente no rito latino a obrigação incondicional, para o sacerdote celebrante, de usar a língua latina, e de desejar igualmente, quando o canto gregoriano acompanha o santo Sacrifício, que isto se faça na língua da Igreja” (o texto completo se pode encontrar na “Revista Eclesiástica Brasileira” nº 16, 1956, pp.1004-1014).

É certamente a solicitude pela unidade do rebanho que [levou] o Santo Padre a se manifestar em tais termos. (…) Saibam os fiéis que a mudança de língua está longe de ser condição essencial para usufruírem os benefícios da Sagrada Eucaristia; esta é por excelência o “mistério da fé”. A fé, portanto, será sempre o instrumento primordial para se perceber o conteúdo da Santa Missa e beneficiar do imenso dom de Deus. De onde se vê a imperiosa conveniência que há em renovar, juntamente com o idioma da Liturgia, a fé, a formação cristã da sociedade contemporânea. Aquele empreendimento sem este nada resolveria.

 

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 5:1957 – set/1957.

 

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