De semente a árvore

“E dizia: O reino de Deus é como um homem que joga a semente na terra. Quer ele durma ou vigie, de dia ou de noite, a semente germina e cresce sem que ele saiba como. É por si mesma que a terra dá fruto, primeiro vêm as folhas, depois a espiga, em seguida o grão que enche a espiga.” (Mc 4, 26-29).

À primeira vista, quando se olha sem maiores cuidados o início da Era Cristã, e se compara com a Igreja atualmente, parece que nos encontramos diante de duas realidades completamente distintas. Apenas a título de exemplo, àqueles primeiros cristãos sequer tinham uma Bíblia para consultar quando bem desejassem (1), ao passo que hoje não só o Livro Sagrado é de fácil acesso, como também os variados documentos pontifícios, sem falar em inúmeros livros sobre a doutrina cristã. Frente a esta situação, muitos são os que caem no lugar-comum de dizer que a Igreja “complicou” o Cristianismo, que seria uma fé simples, e hoje não passaria de um amontoado de dogmas sem sentido ou mesmo heresias.

O problema é de solução relativamente fácil. Basta aos acusadores da Igreja se darem ao trabalho de examinar com mais esmero as crenças dos primeiros cristãos. Verão que os pontos basilares daquela fé são os mesmos de hoje, tendo havido apenas um maior aprofundamento no conhecer de tais pontos. Se alguém desejar ler um enorme tratado sobre a Santíssima Trindade, certamente o encontrará, mas não foi a Igreja que inventou a Trindade Santa ou a moldou a seu gosto. Os cristãos primitivos já acreditavam em tal dogma. De semelhante modo, quem visitar as catacumbas romanas, verá algumas imagens pintadas na época em que a Igreja ainda sofria perseguição por parte dos Césares. Quando a Igreja ganha a liberdade, esta arte cristã também ganha as ruas.

O fato é que há dois mil anos atrás a nossa fé parecia uma simples semente, enquanto que hoje se assemelha a uma grande árvore, com diversos galhos, mais ou menos retorcidos; com raízes profundas e outras que saem do solo; com folhas mais verdes e outras mais pálidas. No entanto, a essência permanece a mesma: o DNA daquela semente é o mesmo da árvore.

Ou seja: os traços genéticos determinantes da Igreja Primitiva são os mesmos da Igreja Católica atual. Basta que se faça o exame de DNA! Basta que se observe que o credo rezado hoje, e aceito, ainda é o mesmo de épocas tão remotas.

Nossos bons leitores já devem ter deduzido em que consiste este exame de DNA. Isto mesmo: estudar o Cristianismo Primitivo ou Período Patrístico, isto é, os primeiros anos da nossa fé.

Ora, não foi o próprio Cristo quem falou que “Passará o céu e a terra, minhas palavras não passarão.?(Mt 24, 35) ? Ou ainda: ?Eis que eu estou convosco, todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20).

Então aquelas verdades de outrora ainda devem estar em algum lugar nos dias de hoje. E este lugar é a Igreja Católica Apostólica Romana. Quem se dedicar com mais empenho, e menos preconceito, a estudar por qual fé foram martirizados tantos cristãos na Roma Antiga, verá que tal fé é a mesma da Igreja de hoje, e não dos inúmeros grupelhos heréticos que hoje se dizem cristãos e nem mesmo existiam naquela época. Quem for estudar qual fé Santo Agostinho de Hipona e Santo Ambrósio de Milão pregavam em seus sermões ou a defendiam contra hereges os mais diversos (maniqueus, arianos…), verá que esta fé era a da Igreja, de ontem, hoje e sempre.

Quem partiu com afinco para esta difícil, mas necessária, jornada reconheceu que os ensinamentos de Jesus Cristo permanecem, em sua totalidade, apenas na Igreja Católica. Um exemplo vem dos ex-protestantes Martin e Kristine Franklin: “Para nós, a grande questão era: ‘Que é a verdade? E como a podemos reconhecer? E sobre que base hão de repousar nossas crenças? Como havemos de decidir?’ Quando nos pusemos a comparar a face nítida da Igreja Católica com a face nítida do protestantismo, a Igreja Católica ganhou nos planos da lógica, da história, da filosofia e da Escritura. Todas as nossas respostas lá se encontravam”(2).

A semente deixada por Cristo, ao se desenvolver, mudou sua aparência, tornando-se árvore, mas sua essência, seu “DNA”, permaneceu o mesmo. Este crescimento, porém, nem sempre foi tranqüilo.

Muitos foram o que atacaram a árvore cristã, seja de boa-fé, seja com motivação fútil. Houve vezes, como no caso da heresia ariana, que o imenso tronco parecia que estava por desabar.

Porém, eis que Cristo garantiu: “Feliz és tu, Simão filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue quem te revelou isso, mas o Pai que está nos céus. E eu te digo: Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” (Mt 16,17-18).

Então a árvore não caiu. No máximo, perdeu alguns galhos e folhas, o que embora seja um duro golpe na Igreja, não implicou seu desmoronamento.

É possível destacar dois imensos galhos que foram cortados da Igreja. Um, no lado leste, no século XI; e outro, mais a oeste, no século XVI. Respectivamente: a divisão que gerou os cismáticos orientais, que se dizem ortodoxos; e a cisão que fez surgir os protestantes, com a chamada Reforma.

Se Miguel Cerulário e Martinho Lutero fizeram estrago na árvore, maior, porém, foi o dano que os galhos cortados sofreram ao cair. Despedaçaram-se! Os chamados patriarcados ortodoxos hoje já somam algumas dezenas, e não são concordes entre si. Já as denominações protestantes desfizeram-se em inúmeros pedacinhos, e seria um trabalho de Hércules mostrar aqui todas as divergências que há entre elas.

Não é à toa. Também está escrito: “Jesus lhes disse: Todo reino dividido contra si mesmo acaba em ruína. Nenhuma cidade ou casa dividida contra si mesma poderá manter-se. Se Satanás expulsa Satanás, está dividido contra si mesmo, como então se manterá o seu reino?” (Mt 12, 25-26).

A situação do protestantismo bem exibe esta realidade. São milhares de grupos, cada um afirmando possuir a verdade e contradizendo as denominações concorrentes. São tantos que se torna inviável enumerá-los, assim como contar as estrelas do céu, com a diferença de que não devem surgir tantas estrelas em tão curtos espaços de tempo.

Resulta claro que os galhos caídos da árvore não são mais a árvore. Não se alimentam da mesma seiva que ali corre há dois mil anos. Os galhos caídos, além disso, fizeram-se em migalhas que, embora guardem certas seqüências do DNA original, não mais possuem tal estrutura em sua íntegra. Houve perdas, houve mutações e mesmo contaminação.

Quem comparar certas “verdades” do protestantismo (Ex.: Sola Scriptura) com aquilo em que acreditavam os primeiros cristãos, notará que não são poucas as divergências. As perdas e mutações são comprometedoras. O próprio bom senso, algo que todos dizem ter, dá ao menos um indício de que não era desejo do Cristo que houvesse inúmeros grupelhos afirmando possuírem a verdade e contradizendo os concorrentes. Com efeito, Ele mesmo disse: “Que todos sejam um” (João 17, 21).

Também houve contaminação. Basta ver a revolução sexual que soprou nos anos 60, a qual não demorou muito para poluir várias denominações protestantes com a liberação do aborto e, mais recentemente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Outro caso em que basta estudar o Cristianismo Primitivo para ver que não era bem assim…

Por mais fortes que sejam os ventos, por maiores que sejam as tormentas, a árvore católica continua lá. Já os galhos caídos são atingidos com impacto muito maior, esfacelando-se e perdendo suas poucas verdes folhas.

Converso ao Catolicismo, o grande escritor e pensador Gilbert Keith Chesterton também retratou esta realidade, em que a Ortodoxia (Fé reta, certa) se mantém firme na Igreja, apesar das tempestades do mundo:

“Este é o impressionante romance da ortodoxia. Os homens habituaram-se, loucamente, a falar da ortodoxia como de alguma coisa pesada, estúpida, e segura. Nunca houve coisa tão perigosa ou tão excitante como a ortodoxia. Era a sanidade: e ser são é mais dramático do que ser louco. Era o equilíbrio de um homem lançado atrás de cavalos lançados em louca correria, parecendo cair daqui e levantar-se acolá, mas conservando em todas as suas atitudes a graça da escultura e a precisão da aritmética. A Igreja, nos seus remotos dias, avançou feroz e firme como um cavalo de guerra; no entanto, é absolutamente anti-histórico dizer-se que ela avançava como louca em direção a uma idéia, como acontece com o fanatismo vulgar. Ela sempre soube desviar-se para a direita ou para a esquerda, com o fim único de evitar enormes obstáculos. Por um lado, deixou a enorme massa do arianismo, escorada por todos os poderes do Mundo, para tornar o Cristianismo demasiadamente mundano. No instante seguinte, teve de se desviar novamente para fugir a um orientalismo que teria tornado o Cristianismo deveras dissociado deste mundo. A Igreja ortodoxa (3) nunca seguiu um caminho já aplainado, nem aceitou as convenções; a Igreja ortodoxa nunca foi respeitável. Teria sido mais fácil ter aceito o poder terreno dos Arianos. Teria sido fácil, no calvinista século XVII, ter caído no poço sem fundo da predestinação. É fácil ser louco; é fácil ser herege. É sempre fácil acompanhar os tempos; o difícil é conservar a própria personalidade. É fácil ser modernista, assim como é fácil ser esnobe. Ter caído numa destas armadilhas criadas pelo erro e pelo exagero que, moda após moda e seita após seita, estabeleceram-se ao longo do histórico caminho do Cristianismo – seria coisa indubitavelmente simples. É sempre fácil cair: há uma infinidade de ângulos que nos podem provocar a queda, mas há apenas um onde podemos nos firmar. Ser arrastado por qualquer dessas teorias novas, desde o Gnosticismo até a Ciência Cristã, teria, sem dúvida, sido óbvio e fácil. Mas ter evitado todas essas coisas foi uma alucinante aventura; e, na minha visão, o carro celestial segue trovejando através das eras, as negras heresias debatem-se por terra, mas a verdade intrépida e bravia, embora vacile, conserva-se ereta” (4).

O convite está feito. Procure conhecer melhor a Árvore Cristã. Viaje pela intrépida e fascinante história da Ortodoxia. Sua salvação pode depender disso.

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NOTAS:

(1) O Cânon Bíblico só viria a ser definido no século IV. Ademais, os custos de reprodução, antes da invenção da imprensa, eram proibitivos em larga escala.
(2) Pastores protestantes se tornam católicos, in Revista Pergunte & Responderemos, n. 419, abril de 1997, pp. 158/159.
(3) A menção que se faz aqui é à ortodoxia da Igreja Católica e não as ditas Igrejas Ortodoxas, cuja separação da Igreja Católica se deu com o cisma de Miguel Cerulário em 1054.
(4) Ortodoxia, pp. 134/135. Editora LTr, ano 2001.

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