Deve a Igreja esquecer o que não está escrito?

É conhecido por todos a rejeição que estes nossos irmãos [protestantes] manifestam, em geral, por tudo aquilo que não se encontra explícita ou, ao menos, implicitamente nas Sagradas Escrituras. Coincidimos com estes irmãos no amor e na veneração às Sagradas Escrituras, porém diferimos quando eles dizem que somente aquilo que se encontra nas Escrituras é digno de ser tomado como mensagem certa de Deus para nossa salvação.

O católico afirma que a Palavra de Deus escrita está contida, sim, exclusivamente nas Escrituras, mas que a Palavra de Deus não é somente aquela que se pôs nas letras, sendo que a Palavra de Deus excede as Escrituras: a prova está em que Jesus, o grande revelador do Pai, “fez e disse muitas outras coisas que não se encontram escritas neste livro”, e que, obviamente, podemos considerar como Palavra de Deus, mesmo não escrita mas oral. Esta Palavra transmitida por Jesus e os Apóstolos, oral e literalmente, é chamada tecnicamente Tradição, escrita aqui de propósito com “T” maiúsculo, para diferenciar do que entendemos habitualmente por “tradições”, ou sejam, costumes de origem mais ou menos desconhecida que se vão repetindo de geração em geração, e cuja autoridade é “que assim se faça” e basta. Semelhantes “tradições”, quando são de caráter religioso, podem ser boas ou más, podem mudar ou permanecer, podem aumentar ou diminuir, podem desaparecer.

A Tradição (com “T” maiúsculo) da Igreja tem a sua origem em Jesus Cristo e nos Apóstolos e é entregue de geração em geração por meio da pregação e celebração dos mistérios da Salvação, guiado pelo Espírito Santo.

A palavra “tradição”, como se sabe, vem do latim “tradere”, que significa “entregar”. Neste sentido as Sagradas Escrituras são parte da Tradição que temos recebido de nossos antepassados na fé; dessa forma, a Bíblia é uma mensagem que tem sido “entregue” de geração em geração, sob a guia do Espírito Santo.

Porém, segundo temos dito, os cristãos assim chamados “evangélicos” negam que devamos prestar ouvidos a qualquer outra “Tradição” que não seja somente esta Tradição escrita, ou seja, a Bíblia. A Igreja Católica, ao contrário, sustenta que aquela Sagrada Tradição (ou “doutrina de salvação entregue”), que devemos manter e conservar, é mais ampla que a Sagrada Escritura, e – digamos desde já – não se opõe a ela nem a contradiz, já que se trata de uma mesma Tradição que se “transmite” sob duas formas distintas: escrita e oral.

Creio que não há melhor maneira de dizê-lo como o disse o próprio Apóstolo São Paulo: “Irmãos: permaneçam firmes e mantenham as tradições que receberam como ensinamento seja de palavra ou por nossas cartas” (2Tessalonicenses 2,15).

Algumas traduções desta passagem, diga-se de passagem, vertem a palavra do texto original “paradoseis” como “doutrina”, a qual é perfeitamente lícito no caso de não se tratar de uma tradução tendenciosa: não se deve esquecer que a palavra “paradoseis” significa inequivocamente “tradição” (à margem do significado de “traição”, “detenção” que não se aplica aqui), da raiz verbal “para-didomi”, e que é a mesma palavra usada por Jesus ao dizer aos fariseus: “Assim tens invalidado a Palavra de Deus por causa das vossas tradições (=paradosis)”.

Como se vê, a palavra “tradição” pode ser tomada como sinônimo de doutrina de Jesus e dos Apóstolos e também como sinônimo de doutrinas dos fariseus ou de seus antepassados. Em uma palavra, o termo “tradição” pode ser usado em um sentido positivo e também em um sentido mais pejorativo, de onde não tem lugar se escandalizar quando na Igreja se fala de Tradição, como falava São Paulo.

Em 2Tessalonicenses 3,6 também se emprega o termo grego “paradosin”, que, outra vez, em algumas versões espanholas se traduz como “doutrinas”: “conforme as doutrinas que recebeste da nossa parte”. Também vale aqui o que dissemos para 2,13: sim, podemos traduzir “paradosin” como “doutrina”, mas não percamos de vista que o que diz o texto original é: “conforme a tradição que receberam da nossa parte”.

Poderíamos acrescentar que o texto de Mateus 15,3-6, onde temos no original a mesma palavra que em 2Tessalonicenses 3,6, ou seja, “paradosin”, sendo traduzida da mesma forma por todas as versões espanholas – incluindo a Reina-Valera – como “tradições”, não perguntamos: “porquê não traduzir aqui “paradosin” como “doutrina”, como se traduz em 2Tessalonicenses 3,6, que faz referência a uma realidade similar – ensinamentos, tradições, doutrinas? Certamente, a suspeita de imparcialidade da tradução não é de todo infundada: parece que quando o termo “paradosin” surge para indicar o ensinamento de Jesus e dos Apóstolos se traduz como “doutrinas”, entretanto quando se trata de ensinamentos e preceitos humanos dos judeus se traduzem como “tradições”… Repetimos mais uma vez que, se bem que o tradutor possa eleger os sinônimos que creia conveniente, contudo neste caso me parece que se cumpre o dito “traduttore tradittore”, pois pode levar os leitores mais simples a pensar que “tradição” é uma espécie de “má palavra” que faz alusão às tradições humanas, ao contrário da doutrina de Jesus, quando de fato o texto original trata de uma mesma palavra, da qual se cobra seu valor positivo ou negativo segundo o contexto da mencionada tradição.

Porém, não é tanto sobre questões de exegese que eu queria atrair a atenção do leitor, mas sobre a história da doutrina cristã em seus primeiros passos, logo que se recebeu o Espírito Santo no Pentecostes.

Há um trecho óbvio, registrado nas Sagradas Escrituras, que diz que “há muitas outras coisas que Jesus fez que, se fossem escritas uma por uma, penso que não caberiam nem no mundo todo os livros que se precisariam escrever” (João 21,25). Jesus passou os anos de sua vida pública pregando e fazendo o bem, coisa que logo fizeram os Apóstolos do Senhor, que são considerados por todas as igrejas cristãs como fontes de revelação. Sendo assim, a revelação pública do mistério de Jesus Cristo culmina com a morte do último dos Apóstolos, que foi João.

Nada se pode dizer, baseado em nenhum texto bíblico, que os autores dos textos do Novo Testamento quiseram limitar o ensinamento de Jesus ou dos Apóstolos ao que eles estavam escrevendo. Ou, colocado de outra maneira: nem a Mateus, Marcos, Lucas, João, Pedro, Paulo, Tiago, Judas, nem a nenhum outro que tenha podido formar parte dos autores do Novo Testamento, jamais lhes ocorreu pôr por escrito tudo o que Jesus ensinou, pois seria algo que nunca acabaria, como afirma João (21,25). Jesus tampouco lhes havia mandado escrever nada. Nem sequer todos os Apóstolos escreveram algo, somente uns cinco, alguns dos quais escreveram apenas duas ou três páginas (Cartas de Judas, Tiago e duas de Pedro).

Jesus, entretanto, deu aos seus Apóstolos o mandamento de ir por todo o mundo anunciar o Evangelho a toda criatura, “ensinando-lhes a guardar tudo que os tenho mandado” (Mateus 28,20). Os Apóstolos e também os outros discípulos do Senhor, uma vez recebido o Espírito Consolador, cumpriram o que o Senhor os havia ordenado e, pregaram dia e noite, ainda que ao preço de sangue, o que eles tinham “visto e ouvido” acerca de Jesus. Pois bem: como fica claro que os Apóstolos fizeram isto pregando, entregando oralmente o mistério da Salvação, já que, como dissemos, somente alguns dos Apóstolos, passado muito tempo de pregação, e sem pretender resumir em seus escritos aquilo “tudo” que Jesus os havia mandado (ver acima a citação de Mt 28,20), escreveram coisas daquilo que pregavam (notemos que muitos dos escritos do Novo Testamento são cartas circunstanciais). Com isto queremos dizer que:

1. A nenhum dos apóstolos jamais ocorreu limitar os ensinamentos de Jesus ao que estavam escrevendo neste momento;

2. A comunidade cristã do início não se fundamentou nos escritos do Novo Testamento, mas nos ensinamentos orais dos Apóstolos e discípulos do Senhor;

3. Milhares de cristãos da Igreja primitiva nunca leram sequer um único texto do Novo Testamento.

Poderíamos concluir disto que a comunidade dos primeiros cristãos não conhecia a Palavra de Deus? Claro que não! Conhecia e muito bem! Porém, para eles (e muitas igrejas particulares durante séculos), a Palavra de Deus foi entregue de maneira oral, ao menos em sua quase-totalidade.

Qual o sentido de se dizer por aí que, chegado o tempo, Deus disse que se pusessem por escrito os ensinamentos evangélicos, para que não fossem mal interpretadas ao longo dos anos? Ou que hoje devemos nos contentar com o que está escrito (que sem dúvida não contém erros), já que tudo o mais é perigoso, pouco confiável?

Com respeito a isto, dizemos que tais afirmações ainda precisam ser demonstradas: não se baseiam em nenhum mandamento do Senhor – ao menos naqueles que conhecemos – nem em nenhuma decisão de algum Concílio da Igreja (como por exemplo o de Jerusalém, em Atos 15, onde a Igreja decide questões que surgiram e sobre as quais Jesus, aparentemente, não deixara uma norma clara de comportamento).

Desta forma, a afirmação de que “Deus, vendo que algumas doutrinas corriam o risco de irem se desviando, nos dá os escritos do Novo Testamento” pode soar muito bem para alguns, mas – a menos que conheçamos os pensamentos de Deus diretamente – não podemos defender com nenhum dado histórico nem bíblico, sendo ela uma mera hipótese. Mas eu também poderia dizer como hipótese: “Não! Esse não foi o pensamento de Deus! Esse não foi o motivo pelo qual apareceram os escritos do Novo Testamento!” E quem poderia me demonstrar o contrário? Sobre este ponto poderíamos aduzir outros aspectos, porém não interessam agora…

Desejamos situar, pois, que Jesus e os Apóstolos disseram e fizeram muitíssimo mais do que está escrito; e que na vida dos Apóstolos ocorreram atos importantes que não se encontram escritos (ou alguém, por acaso, pode pensar que o trabalho de Deus se limita ao pouco que o livro dos Atos dos Apóstolos relata, quase exclusivamente, sobre Pedro e Paulo?). E desejamos colocar também que se alguém pensa que o único ponto importante para nós é o que está escrito, esse pensamento não é nem bíblico (pois não está em nenhuma parte da bíblia, nem sequer é insinuado), mas muito pelo contrário; nem tampouco é histórico (e jamais alguém pensou assim até os últimos séculos da nossa era).

Pois bem: suponhamos que na comunidade cristã do início ocorreu um ato que não ficou registrado por escrito – e apontemos já um exemplo, para tornar a questão mais prática e compreensível: digamos que a Mãe do Senhor, conhecida e querida por todos os Apóstolos, que havia estado junto a Jesus durante toda a sua vida, chegando o dia determinado por Deus,… morreu; e que, quando foi visitada em sua tumba por algumas pessoas (digamos para os ritos próprios dos funerais judeus), observaram que o seu corpo não estava mais lá. Este fato (que os católicos tomam por doutrina, a “Tradição” da Assunção da Virgem), tomado aqui pura e exclusivamente como suposição, já que, segundo vimos, certamente ocorreram coisas que não ficaram registradas por escrito [na Bíblia] e em todos os demais casos que certamente ocorreram nos milhares de atos praticados durante a vida de Jesus e dos Apóstolos, e na extensa doutrina de Jesus e dos Apóstolos que não foi escrita (porque não “caberiam no mundo os livros que se escrevessem”, cf. João 21,25), o que deveria fazer a Igreja (ou seja, a comunidade dos crentes)? Esquecer? Mas por que deveria esquecer, se a sua missão era precisamente transmitir tudo o que “viu e ouviu”? Em qual momento da História da Igreja se tomou a decisão de “esquecer” os eventos que os autores sagrados não haviam deixado por escrito?

– O que deve fazer um crente do século XXI ao ler 2Tessalonicenses 2,13-15?

“Assim pois, irmãos, mantenham-se firmes e conservem as tradições que haveis aprendido de nós, de viva voz ou por carta”.

– Baseado em qual princípio devo dizer agora que aquilo que se ensinou “de viva voz” deve ser duvidado e que só se deve manter o que foi transmitido por carta?

– Não se deu conta São Paulo do “perigo” que era dizer que se devia obedecer às tradições orais?

Os católicos, por sua parte, seguem entendendo que se deve conservar ambas as doutrinas: a que foi entregue por carta e a que foi entregue oralmente pelos pastores da Igreja; “ambas” as doutrinas que são “a mesma doutrina” [no singular] comunicada por distintos canais, porém que se complementam, aperfeiçoam-se, explicam-se mutuamente. Assim era no começo e os católicos não vêem porque agora devam limitar a doutrina somente ao que está escrito. Se Deus assim ensinasse, por exemplo, através de algum dos Apóstolos, então haveria que se aceitar isso com todo gosto. Porém – como dizemos – não existe nenhum motivo que nos permita pensar racionalmente que agora devemos deixar de prestar atenção à Tradição oral.

Em quê consiste esta Tradição? Em toda mensagem evangélica da salvação que pregou a Igreja (começando pelos Apóstolos) ao longo dos séculos através dos seus Pastores, que devem pregar a toda a Criação, “ensinando-lhes a guardar tudo o que [Jesus] havia mandado; e desde aqui eu estou com vocês todos os dias até o fim do mundo”, ainda que desaparecidos todos os Apóstolos do Senhor, como por exemplo no século XXI… Também hoje Jesus está com aqueles em quem os Apóstolos impunham as mãos: os bispos, presbíteros e diáconos (cf. 1Timóteo 5,22; Tito 1,7; Filipenses 1,1), que têm a obrigação de pregar em nome de Jesus, de tal modo que “quem vos ouve a Mim ouve, e quem vos rejeita a Mim rejeita, e rejeita Aquele que Me enviou” (Lucas 10,16).

Querido irmão evangélico que leu até este ponto: agradeço o seu interesse e paciência, que falam bem do seu empenho pela Verdade, que nos libertará a você e a mim. Peço para você reflitir sobre estas coisas, porque são assuntos importantes… de Vida Eterna. Eu te agradeço enormemente, pois tenho grande interesse em fazer-te o bem.

Um abraço a todos em Cristo Jesus
Ponzano Romano, Itália, 2000.

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