Dúvidas sobre faculdade de levantar excomunhões, erro comum e dúvida provável

Um leitor nosso, cujo nome omitiremos por respeito à sua privacidade, e pela veracidade do caso narrado, escreveu-nos, com algumas dúvidas de ordem teológico-moral e jurídico-canônica. Para resolver a questão, daremos uma breve introdução de alguns conceitos sobre penas canônicas relativas a certos delitos, e, na medida em que iremos expor nosso raciocínio, contaremos com citações de vários juristas eclesiásticos, todos eles sacerdotes, religiosos professos em diferentes institutos religiosos, e da mais alta ciência.

 

Possam nossos outros leitores ter seus questionamentos atendidos com a publicação de nossa resposta.

 

Caríssimo Rafael,

 

Eu o conheço do site do Veritatis e do Presbíteros. Sou leitor de apologética desde o início do Agnus Dei! Deus o guarde!

 

Mas o motivo da minha missiva é uma série de questões que tenho a respeito da faculdade de absolver e a excomunhão.

 

Eu serei sistemático nas perguntas porque desejo respostas também detalhadas. Então, por favor, não julgue que lhe exponho tantas questões por capricho.

 

Bom, eu sei que para que os pecados possam ser perdoados na confissão o sacerdote deve ter a faculdade de absolver naquele local, e daqueles pecados. 

 

Caríssimo senhor, estimado em Cristo,

 

Agradecemos pela confiança depositada em nós. Passemos à análise e concomitante resposta de suas indagações.

 

1. Se alguém comete algum pecado reservado (ao bispo ou à S. Sé), ou seja, um pecado que acarrete excomunhão latae sententiae e vai se confessar. O padre, então, por negligência, falta de atenção ou

mesmo mal julgamento da situação creia que o caso não é de excomunhão e absolve o penitente. Suponhamos que o caso fosse mesmo de excomunhão, mas o sacerdote errou no julgamento, repito culpada ou inculpadamente. O penitente fica absolvido?   

 

Não confunda pecado que acarreta excomunhão reservada com excomunhão latae sententiae. Nem toda censura reservada é automática, e nem toda automática é reservada.

 

Por definição, excomunhão latae sententiae é a pena automática, i.e., aquela que, no momento da prática do delito – ou sua tentativa, quando prevista tal pena – já é posta em ação, independentemente de sentença judicial. Pode haver sentença, mas, neste caso da pena automática, não se trata de sentença condenatória e sim declaratória – pois a decisão do juiz não irá condenar, eis que a condenação é dada automaticamente, e sim declarar a imposição automática da excomunhão latae sententiae prevista. Na excomunhão que não seja latae sententiae – chamada ferendae sententiae – a pena é imposta somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória, e não automaticamente.

 

O caso da excomunhão reservada é de outra natureza. Chamamos reservada a pena cujo levantamento seja, pelo Direito, exclusivo do Papa ou do Ordinário.

 

Pelo teor da sua dúvida, parece-nos que o senhor está falando de um caso em que a excomunhão tenha sido imposta automaticamente E TAMBÉM seja reservada. De qualquer maneira, a resposta que daremos vale tanto para a pena latae sententiae reservada como para a latae sententiae comum.

 

Mais adiante, o senhor pergunta o que é erro comum e o que é dúvida positiva e provável de direito ou de fato. A leitura atenta das respostas a essas suas indagações aumentará seu conhecimento quanto a esse assunto.

 

Por ora, respondemos apenas que, no caso em tela, o penitente fica absolvido, pois a jurisdição que o referido sacerdote não tem é suprida pela Igreja, conforme lemos no Código de Direito Canônico:

 

“Cân. 144 – § 1. No erro comum de fato ou de direito, bem como na dúvida positiva e provável, seja de direito, seja de fato, a Igreja supre, para o foro tanto externo como interno, o poder executivo de regime.”

 

Ora, o poder executivo de regime é chamado, pelo mesmo Código de 1983, exatamente de poder de jurisdição, da qual faz parte a faculdade de absolver. Nisso, em vista do bem comum das almas – eis que o penitente nem sempre sabe as regras canônicas ou tem suficiente conhecimento de Direito ou de Teologia –, a jurisdição faltante em algum sacerdote é suprida pela Igreja, conforme o ensino do douto canonista italiano, da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos: “A jurisdição suprida é aquela em que a Igreja, em regra extraordinária e para o bem comum, confere todas às vezes que se execute um ato que por si seria inválido.” (DEL GRECO, Pe. Teodoro da Torre, OFMCap. Teologia Moral. Compêndio de Moral Católica para o Clero em Geral e Leigos. São Paulo: Edições Paulinas, 1959; p. 585) Aplica-se no caso, diz-se, a regra da supplet Ecclesia.

 

2. Se alguém pára de praticar a religião e começa uma vida de pecado, mas depois de um longo tempo volta à religião e vai se confessar. Porém, ele tem dúvidas se cometeu ou não algum pecado de heresia ou mesmo apostasia. Talvez ele tenha cometido alguma heresia, mas não se lembra com certeza. 

 

Essas questões devem ser matizadas caso a caso, dada a ignorância religiosa de nossos tempos.

 

Primeiro a letra da lei, para termos o conceito de heresia, cisma e apostasia. Ao contrário do Código de 1917, que trazia a definição de herege, cismático e apóstata, o texto de 1983, atualmente em vigor, define os atos práticos pelos mesmos, e nestes termos:

 

“Cân. 751 – Chama-se heresia a negação pertinaz, após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela; apostasia, o repúdio total da fé cristã; cisma, a recusa de sujeição ao Sumo Pontífice ou de comunhão com os mesmos da Igreja a ele sujeitos.”

 

Chama a atenção que é possível, dada a nova redação, ser alguém herege de fato, ainda que juridicamente não o seja, pois, como ensina o culto comentador jesuíta, Pe. Jesús Hortal, SJ, no conceito de heresia “é fundamental o elemento da pertinácia, ou seja, a consciência clara e continuada da culpabilidade na negação ou dúvida de uma verdade de fé.” (SÁNCHEZ, Pe. Jesús Hortal, SJ. nota explicativa ao cân. 751 in “Código de Direito Canônico. São Paulo: Edições Loyola, 2001”; p. 208)

 

Ainda, segundo o capuchinho, já citado, “heresia é um erro do intelecto pelo qual uma pessoa batizada nega pertinazmente uma verdade revelada por Deus e proposta pela Igreja à nossa fé para crermos, ou somente duvida dela.” (DEL GRECO, Pe. Teodoro da Torre, OFMCap. op.cit., p. 128) Continua o frade: “A heresia pode ser: formal ou material. A heresia formal é a que corresponde à definição de heresia (nota: a caracterizada pela pertinácia); enquanto a heresia material (nota: heresia de fato, como já alertamos) é a de uma pessoa que, depois de ter recebido o batismo, sem própria culpa admite ou afirma um erro objetivo contra a fé católica.” (idem, op.cit.) A heresia formal, juridicamente considerada, é pecado, mas a heresia de fato, material, não constitui, por si pecado – ainda que o afastamento do verdadeiro Deus e a procura do mesmo em falsas religiões possam ser delitos próprios, tipificados isoladamente, como o sejam a superstição, a idolatria etc. No momento em que o herege de fato comece a ter dúvida de sua opinião, “uma vez originada esta, será pecado, grave ou leve, segundo o grau de negligência em depor a dúvida.” (idem, op.cit.)

 

Realmente, segundo o cân. 1364, a pena para a heresia, o cisma e a apostasia, é a excomunhão latae sententiae, automática. Mas, retomando o que dissemos, essa pena, automática, NÃO É reservada, podendo ser remitida pelo Ordinário ou por confessor que tenha a faculdade de remir a censura – nem todos a tem. Como se trata, ao que parece, de alguém em boa-fé, aplica-se a regra do supplet Ecclesia. Além do que, como estamos demonstrando, talvez nem tenha sido caso de delito de heresia, cisma ou apostasia, dada a ausência da pertinácia, restando que o herege de fato apenas tenha se afastado da Igreja, não havendo, por isso, pena alguma de excomunhão, devendo, então, somente confessar-se. Ainda assim, se esquecer o pecado e, em face disso, não acusá-lo diante do confessor, está absolvido, conforme demonstraremos após.

 

Para uma resposta prática, consultamos um nosso antigo diretor espiritual aqui em Pelotas/RS, atualmente desenvolvendo apostolado pelos Legionários de Cristo, sua congregação religiosa, no México, o Pe. Eduardo Robles-Gil, LC. Sua resposta, preservado o nome do senhor, caríssimo consulente, foi a que segue:

 

“Os pecados a que estamos obrigados a confessar são os pecados graves. Para ter pecado grave se precisa de matéria grave, conhecimento e consentimento. Por isto se não tem certeza o mais provável é que não tenha cometido pecado grave.  Quando alguém se afastou por muito tempo da prática da vida religiosa é freqüente que tenha também se afastado da verdadeira fé, mas não por isto caiu na apostasia ou heresia.

 

Há pessoas muito praticantes que se forem perguntadas sobre as suas convicções sobre a fé, com certeza manifestariam muitas heresias por desconhecimento da fé, mas isto não faz que sejam hereges. 

 

A heresia e apostasia são pecados manifestos, querer mesmo, positivamente afastar-se da comunhão da Igreja, preferindo as próprias opiniões à autoridade, sabendo que com isto está ficando fora da Igreja.

 

Hoje o que mais existe é ateísmo prático de quem se afasta. Afastado é absorvido no mundo com seus critérios. Caindo de fato, mas não de direito, na apostasia nem na heresia.”

 

Dito isto, e resolvido o problema, passemos à outra seção da mesma pergunta.

 

Mas, suponhamos, esse pecado tenha acontecido e ele tenha sido excomungado. Confessa-se e vai receber os sacramentos. Pelo fato de ele não ter sido “absolvido” da excomunhão, porque não se lembrava do pecado, ele continua excomungado?  

 

Os pecados ignorados ou dos quais o penitente tenha se esquecido também são perdoados, bem como suas penas anexas levantadas. Temos de ter em conta, além disso, que talvez nem tenha sido imposta pena alguma, pois se o penitente não caiu em heresia formal, cisma formal ou apostasia formal, conforme as definições que demos, não restou excomungado.

 

Em qualquer caso, havendo o delito de excomunhão, e acusando o delito que deu origem a tal pena, foi absolvido pela suplência da Igreja da faculdade ausente no confessor; no mesmo caso, mas sem acusação do delito, some-se à ignorância do penitente, ou seu esquecimento, à suplência da Igreja para o confessor sem a faculdade especial; havendo mero pecado sem excomunhão, não confessado sem culpa – “não se lembrava”, como o senhor diz –, foi absolvido porque são os ignorados e esquecidos perdoados junto com os acusados.

 

3. Se a dúvida por parte do sacerdote de que se cometeu um pecado com pena anexa de excomunhão e o sacerdote absolve. Mas o sacerdote errou no julgamento, pois realmente havia existido o pecado e a excomunhão.  O penitente fica excomungado, novamente, sem saber? (porque confiou no julgamento do sacerdote) 

 

Se o confessor tem dúvida, “está obrigado a tentar ter a maior certeza possível” (ROBLES-GIL, Pe. Eduardo, LC). Deve, portanto, no confessionário, investigar as circunstâncias, indagar de condições que possam lhe fornecer uma melhor elucidação do caso.

 

Pela dúvida do sacerdote, escusável, aplica-se o citado cân. 144: “dúvida positiva e provável”. No caso em que o confessor foi negligente e não tomou para si a tentativa de ter a maior certeza possível, a Igreja supre pelo erro comum do penitente, também com base no aludido cânon.

 

À guisa de melhor compreensão, poderia me explicar o que significa, em termos leigos, o cânon 144. Ele se aplica a esses casos de excomunhão, no erro do julgamento, no esquecimento por parte do penitente, etc etc e tal? O que é “erro comum”, e “dúvida positiva e provável”?  

 

Comentando o antigo cân. 209, do Código de 1917, revogado pelo Código de 1983, que agora disciplina a matéria no já referido cân. 144, o capuchinho italiano, doutor em Direito Canônico, fartamente citado neste trabalho, ensina, com a propriedade e a didática que lhe são peculiares:

 

“A Igreja supre a jurisdição: a) no erro comum; b) na dúvida positiva ou provável de direito ou de fato (cân. 209 – nota: do antigo Código, revogado).

 

1. O erro comum se dá quando, no lugar e no tempo em que se exerce a jurisdição (nota: nos termos do Código vigente, faculdade de absolver ou de ouvir confissões; ou ainda faculdade de levantar penas canônicas, com a excomunhão), se realiza um ato público que por sua natureza pode induzir ao erro não só uma ou duas pessoas, mas a todos os fiéis, que seriam levados a crer na jurisdição que alguém não possua.

 

Um sacerdote, por exemplo, de manhã, durante a Missa, para não ser incomodado, vai rezar o breviário no confessionário; os fiéis, que o sabem sacerdote e vendo-o ali, podem facilmente julgar que tenha a jurisdição para confessar: eis o erro comum. (…)

 

2. A dúvida positiva e provável de direito ou de fato (…) existe quando alguém tem boas razões para crer possuir a jurisdição da qual duvida. O confessor, na duvida de direito, pode certamente servir-se desta determinação da Igreja e sem mais absolver; na dúvida de fato, se houver razão provável para julgar que tem a jurisdição, pode válida e licitamente absolver.” (DEL GRECO, Pe. Teodoro da Torre. op.cit; p.585)

 

O erro, vemos, é um falso juízo do intelecto, sendo comum quando afeta um conjunto de pessoas que partilham do mesmo falso juízo. Tanto no erro comum quanto na dúvida positiva e provável aplica-se o supplet Ecclesia.

 

O sacerdote legionário consultado ainda é mais explícito em sua resposta, definindo erro comum como um “erro que tem a maioria das pessoas sobre alguma questão de teologia ou pratica religiosa. Por exemplo: Quantas pessoas sabem que um sacerdote precisa de faculdade para confessar? Se vão a confessar e o sacerdote confessa por qualquer razão que achou válida, por exemplo, perigo de morte, o penitente pensa que está perdoado e realmente está.” O penitente não está em perigo de morte e, portanto, não pode o confessor absolver sem as faculdades ordinárias; mas pensa que há tal perigo; por outro lado, o penitente pensa que qualquer confessor pode absolver, ignorando a necessidade das devidas faculdades: eis um erro por parte do penitente, que, na ignorância religiosa de hoje, pode ser comumente aplicado, havendo assim supplet Ecclesia. Mesmo que o confessor absolvesse sem pensar nada sobre o perigo de morte, incorrendo o sacerdote, então, em pecado por absolver sem faculdade nem suplência por razão extraordinária, ainda assim o penitente, por erro de que o sacerdote pode absolver, se tal erro for comum, i.e., geral a um grande número de pessoas, estará absolvido pela suplência dada pela Igreja, nos termos do Código.

 

É o caso.

 

Muito obrigado desde já, essas questões me angustiam porque conheço um caso desses, se puder responder brevemente eu lhe seria mais grato ainda. 

 

O Pe. Eduardo Robles-Gil, LC, consultado, respondeu, e damos com sua frase, o encerramento da questão, esperando ter sido a mesma dirimida:

 

“Fica tranqüilo: se algum sacerdote perdoou no caso que conhece, ele está plenamente e validamente perdoado.”

 

Com os comentários de três sacerdotes, um dos Legionários de Cristo, outro da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, e um terceiro da Companhia de Jesus, todos versados em Teologia Moral e Direito Canônico, finalizamos esta consulta, rogando a Deus que abençoe o consulente.

 

Em Cristo,

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