Em caso de adultério, Cristo admitiu o divórcio?

– Cristo ensina que o divórcio é licito ao menos em certos casos excepcionais? Como devem ser interpretadas as palavras de Cristo em São Mateus: “…salvo em caso de adultério”?

O matrimônio é indissolúvel por natureza e por positiva instituição de Deus. Por natureza porque sem indissolubilidade não são alcançados os fins próprios do matrimônio. Ademais, por positiva instituição divina que remonta ao momento da própria Criação, como se pode ver expresso nas palavras de Gênese 2,24: “Por isto deixa o homem seu pai e sua mãe e se une a sua mulher, vindo a ser uma só carne”. Neste sentido as interpreta Cristo: “No princípio não foi assim… o que Deus uniu, o homem não separe” (Mateus 19,6).

Conseqüentemente, o divórcio, no caso de matrimônio válido, contradiz tanto aos preceitos positivos de Deus, quanto a Lei natural. Os teólogos explicitam esse assunto dizendo que contradiz ao direito natural secundário, isto é, o conjunto de preceitos cuja observância facilita a obtenção do fim primário; este poderá ser alcançado, porém com dificuldade e nem sempre. Os preceitos secundários se dão, a modo de conclusões, a partir dos primários.

Entretanto, historicamente sabemos que a lei de Moisés permitiu a prática da “carta de repúdio”, ou seja, permitia ao homem separar-se da sua mulher e tornar a casar, ao menos em alguns casos. Quando era permitida? A cláusula mosaica diz simplesmente (Deuteronômio 24,1): “se notares nela algo de infame (=erwat dabar)”. Duas escolas contendiam acirradamente quanto a este ponto. A escola do rabi Hillel era liberal e sustentava que o marido podia repudiar sua mulher por qualquer infâmia (inclusive se deixasse queimar a comida); a escola de Shammai era mais rigorosa e dizia que a afirmação de Moisés referia-se a uma infâmia moral grave, ou seja, apenas no caso de adultério da esposa.

Jesus Cristo, ao discutir com os fariseus que lhe apresentaram o caso, deixa bem claro que o motivo dessa permissão divina foi a dureza do coração. Supõe que Deus poderia dispensar do seu direito positivo e da lei natural neste caso. O faz como dispensa, para evitar males maiores: o fato de que Deus não aprova o costume mas se limita a regulamentar a carta de repúdio como mal menor é expresso por Malaquias (2,14-16): “Eu abomino o repúdio – diz Javé, Deus de Israel”.

Pois bem. Por que Deus pode dispensar da lei natural neste caso? A explicação dada por São Tomás [de Aquino] é que a indissolubilidade pertence ao direito natural secundário, como dissemos, pelo qual Deus – e somente Deus – pode dispensar da mesma por motivos graves. O motivo grave seria, aqui, evitar o crime de conjugicídio ou uxoricídio, que os corações duros dos judeus não duvidariam em praticar. Alguns Santos Padres (São João Crisóstomo, São Jerônimo, Santo Agostinho) e até mesmo São Tomás deduziram que esta é a dureza do coração a que se refere Cristo, baseando-se nas palavras do Deuteronômio (22,13): “se um homem, após se casar, adquirir ódio da mulher…”

 

Que atitude toma Cristo frente a isto?

Jesus Cristo legislou sobre o divórcio derrogando explicitamente a dispensa que regia no Antigo Testamento. Isto aparece em quatro lugares nos Evangelhos: Mateus 19,3-9; 5,31; Marcos 10,2-12 e Lucas 16,18. No entanto, ao mesmo tempo que Nosso Senhor restaura a indissolubilidade original, aparece em seus lábios (mas somente nos textos de Mateus) uma expressão que parece conceder certa exceção (ou seja, certa possibilidade de divórcio): salvo em caso de adultério, exceto em caso de fornicação. Perguntar-se-ia: trata-se afinal de uma indissolubilidade absoluta ou para a maioria dos casos? Para responder, devemos analisar os textos.

1. Os problemas que apresentam os textos de São Mateus

O texto do capítulo 19 de São Mateus deve ser interpretado considerando-se o contexto histórico em que se desenvolve a discussão. Cristo está polemizando com os fariseus e são eles que levantam a questão do divórcio; a pergunta visa saber em qual das opiniões mais importantes daquele tempo (escola de Hillel ou escola de Shammai) se enquadria Jesus.

Jesus responde apelando para a intenção original de Deus no Gênese: “Não lestes que no princípio o Criador os fez homem e mulher? E disse: ?Por isso deixará o homem o pai e a mãe e se unirá à sua mulher, e serão dois em uma só carne?” (Mateus 19,4-5); e conclui seu raciocínio dizendo: “Assim, pois, o que Deus uniu, o homem não separe” (versículo 6).

Os fariseus entendem claramente que Jesus Cristo não concede nenhuma possibilidade de divórcio (nem sequer no caso restrito da escola de Shammai), por isso objetam com a atitude permissiva de Moisés. Jesus, portanto, passa a explicar como se interpreta a intenção original do Criador (“ao princípio não foi assim” – Mat. 19,8) e explica então o porquê da atitude mosaica (devia-se à dureza do coração dos judeus; já apontamos acima sob qual sentido se entende).

Pois bem. Jesus, após recordar a permissão mosaica, passa a legislar restaurando o matrimônio em sua força original. Ele tem consciência de estar ab-rogando uma lei transitória do Antigo Testamento; por isso, introduz a nova legislação (no mínimo, no texto de Mateus 5) com as palavras: “Mas eu vos digo“, locução com a qual, no Sermão da Montanha, opõe precisamente ao ensino dos antigos a sua própria superioridade. E qual é o ensinamento que ele opõe ao que foi dito aos antigos? Quem repudia a sua mulher (salvo em caso de adultério) e se casa com outra, comete adultério (Mateus 19,9; cfr. 5,32).

Aqui está o problema… Mateus 19,9: “…salvo em caso de adultério (mé epì porneía)”; Mateus 5,32: “…exceto em caso de fornicação (parectós logou porneías)”. O núcleo do problema consiste, na verdade, na correta interpretação das duas expressões gregas.

Antes de apresentar as várias opiniões a respeito, há uma coisa que é clara e não pode se discutir: a lógica que deve guardar o pensamento de Cristo. Com efeito, não se pode dar uma interpretação que “frature” psicologicamente o raciocínio de Jesus. Pois bem; Cristo, a esta altura da sua discussão, já tinha indicado: (1) que “no princípio” (isto é, na Criação), a situação do matrimônio não foi a que se dava nos tempos de Moisés; (2) que Moisés concedeu o repúdio não como um progresso espiritual, mas como um retrocesso devido à dureza do coração de seu povo; (3) que Ele (Jesus) pretende voltar à situação do Gênese (tudo isto em Mateus 19); (4) que a sua legislação se opõe ao que foi ensinado aos antigos (isto em Mateus 5).

Contudo, se a controvertida expressão pudesse ser entendida literalmente como “salvo em caso de adultério”, Cristo não teria saído do marco mosaico; estaria, todavia, nele, filiando-se à posição da escola de Shammai. Logo, após anunciar uma derrogação da dispensa, não teríamos mais a consagração de uma das interpretações da dispensa. Caso contrário, teríamos encontrado uma fratura lógica no raciocínio de Cristo ou um recuo diante da objeção dos seus adversários. Esta dificuldade foi percebida há muito tempo, razão pela qual alguns neoprotestantes e modernistas quiseram explicar as exceções de Cristo como uma interpolação redacional: alguém acrescentou essa expressão ao texto original (assim defende Loisy, por exemplo). Esta explicação não faz outra coisa senão contornar o problema.

A Tradição tem buscado, ao contrário, explicitar o pensamento de Cristo por duas vias: seja interpretando de outro modo as partículas e parectós, ou estudando mais profundamente o conceito de porneía. As principais conclusões são as seguintes:

1) Para alguns, a expressão deve ser entendida como se traduz geralmente (salvo em caso de adultério ou fornicação), porém o que Cristo permite aqui é tão somente o “divórcio incompleto”, ou seja, a separação de corpos (deixarem de co-habitar) por motivos graves, e não equivale a uma permissão para voltar a casar (assim o entendia São Jerônimo, por exemplo). Esta interpretação é induvidavelmente ortodoxa, porém, não soluciona o problema, simplesmente o evita.

2) Para outros, os termos “exceto” e “salvo” querem indicar, na boca de Cristo, que ele não deseja tocar, no momento, nesse caso particular (o de adultério ou fornicação); portanto, não soluciona a questão. O texto deveria, portanto, entender-se: “…salvo o caso de adultério, do qual não quero falar agora…” (assim propunha, por exemplo, Santo Agostinho). Pois bem; era precisamente sobre este caso – o adultério – que os adversários de Cristo queriam tratar (porque era a interpretação da escola de Shammai); não haveria, assim, nenhum sentido evitar esta questão.

3) Outros têm explicado o problema analisando mais detidamente o verdadeiro sentido ou os possíveis significados das preposições e parectós. A uma primeira vista, parece indicar exceção, porém, gramaticalmente, admite tanto o sentido de exceção quanto o de negação proibitiva (igualmente como a preposição praeter com a qual foi traduzido este versículo no latim). Deveria, portanto, entender-se assim: “nem sequer em caso de adultério”. O mesmo valeria para parectós que, além do significado de exceção ou fora de também admite (embora raramente) o significado de além de, ainda em caso de. É uma interpretação admissível porém discutível. É a explicação que dá a Bíblia de Nacar-Colunga, nas notas destas passagens, apesar de traduzí-las com o outro sentido.

4) Finalmente, outros autores apontam mais corretamente a interpretação da palavra porneía. Esta não seria a simples fornicação nem o adultério, mas propriamente o estado de concubinato. O termo rabínico empregado por Cristo teria sido zenut, que designa a união ilegítima de concubinato; o grego carece, ao contrário, de um vocábulo específico para designar a “esposa”, razão pela qual se teria recorrido ao termo porneía. Em tal caso, é evidente que não apenas é lícita a separação, como também obrigatória, já que não há matrimônio, mas união ilegal. Esta explicação é reforçada quando se considera que São Paulo, em sua carta aos Coríntios, qualifica a união estável incestuosa daquele que se casou com sua madrasta como porneía. A ela também teria se referido o Concílio de Jerusalém, ao exigir que os fiéis se abstivessem da porneía, ou seja, das uniões ilegais ainda que estáveis. Esta última é, talvez, a mais plausível das interpretações e é sustentada por autores como Cornely, Prat, Borsiven, Danieli, McKenzie, como também algumas versões da Bíblia.

2. Os textos de São Lucas e São Marcos

Compreendidas as dificuldades que acabamos de expor, entende-se que [as passagens de Mateus] sejam totalmente equivalentes às de São Lucas e São Marcos, as quais mencionam a sentença de Cristo sem as cláusulas problemáticas.

1) São Lucas 16,18: “Todo aquele que repudia sua mulher é adúltero; e o que se casa com a que foi repudiada por seu marido, é adúltero” – Aqui fica claro que o vínculo permanece tanto para quem foi repudiada como para o repudiador; portanto, não existe dissolubilidade e não aparece a aparente exceção.

2) São Marcos 10,11: “O que repudia a sua mulher e se casa com outra, adultera contra aquela; e se a mulher repudia ao marido e se casa com outro, comete adultério” – Por mais repúdio mosaico que se pratique, o novo matrimônio da repudiada ou do repudiador constitui adultério.

É evidente que se houvesse uma diferença moral tão radical entre o caso de repúdio por motivos de adultério (sendo lícito como queria a escola de Shammai) e os demais casos de repúdio (que seriam ilícitos), tanto Cristo como os seus evangelistas deveriam ter indicado em todos os lugares em que se faz referência ao divórcio. Pelo contrário, nesses lugares, Cristo não dá crédito nem mesmo para a única exceção proposta pelo rabi Shammai.

Fonte: El Teólogo Responde. Tradução: Carlos Martins Nabeto.

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