Entrevista com o cardeal castrillón hoyos (maio de 2004), destinada à revista “the latin mass”

Pergunta: Eminência, um ano depois da celebração em Santa Maria Maior da Santa Missa no Rito de São Pio V, quais foram as reações que V. Ema. recebeu da parte do mundo dito « tradicionalista»?

Dom Dario Castrillón: Eu diria que elas foram positivas. Eu recebi até este dia centenas de cartas, provindo de todas as partes do mundo, exprimindo a gratidão e a esperança suscitadas por esta celebração, que, aliás, foi seguida por numerosos fiéis em Santa Maria Maior.

Eu creio que foi verdadeiramente providencial: que no ano do Rosário, no contexto 25º aniversário de Soberano Pontificado de João Paulo II, os fiéis ligados às formas litúrgicas e disciplinares precedentes da Tradição Latina tenham podido expressar sua proximidade espiritual ao Santo Padre pelo ato mais importante que há, o Sacrifício Eucarístico, precedido pela recitação do Terço; e tudo isto, na festa de Nossa Senhora Auxiliadora, na Basílica de Santa Maria Maior, Mãe de todas as Igrejas dedicadas à Virgem Maria e onde repousa o corpo de S. Pio V.

Entre tantas expressões de reconhecimento, numerosos fiéis insistiram sobre a emoção causada por este novo gesto de solicitude pastoral para com aqueles que, sem negar a validade da reforma litúrgica atual, se identificam, contudo na celebração do Santo Sacrifício segundo o Missal Romano da edição típica de 1962.

Por outra parte, esta celebração deu maior confiança sobre o fato de que o venerável Rito de São Pio V se beneficia, na Igreja católica de Rito Latino, de «um direito de cidadania », como eu disse na homilia. Este Rito não está extinto, não há dúvidas nesta matéria. O acontecimento de Santa Maria Maior contribuiu para dissipar esta dúvida, onde um tipo de desinformação a teria alimentado.

Eu devo precisar, contudo que o único motivo desta celebração vem de um pedido que me foi dirigido, enquanto Presidente da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, da parte de diferentes grupos de fiéis, que queriam expressar sua proximidade ao Santo Padre ; não nos esqueçamos que o Papa também autorizou a celebração privada da Missa de S. Pio V na capela Húngara da Basílica Vaticana, para os padres que o pedem e que estão munidos de uma permissão regular.

Pergunta: Em que rito V. Ema celebra a Missa habitualmente?

Dom Dario Castrillón: No Rito em que ela é celebrada em toda a Igreja católica latina, isto é, segundo o Novus Ordo. Celebrando a Missa segundo o Rito aprovado por Paulo VI, eu devo dizer que eu encontro uma riqueza de amor e devoção que, pessoalmente, me satisfazem também. Além do que, eu aprecio que os simples possam aproveitar em sua língua da profundidade sagrada do Rito.

Mas isto não me impede de conservar igualmente um grande amor pela Missa segundo o Rito de S. Pio V: é a Missa de minha ordenação sacerdotal e de meus primeiros anos de sacerdócio.

Pergunta: Vossa Eminência poderia nos dizer como o Santo Padre considera o movimento dos fiéis ligados à Tradição?

Dom Dario Castrillón: Eu gostaria de lembrar que Paulo VI mesmo já havia permitido que padres, em certas situações, pudessem continuar a celebrar como antes da reforma litúrgica; em seguida, em 1984, a Congregação para o Culto Divino, com a carta “Quattuor abhinc annos”, autorizou sob certas condições a celebração deste Rito e, finalmente o próprio Soberano Pontífice reinante, em 1988, com o Motu proprio “Ecclesia Dei”, recomendou o que segue: “será preciso respeitar em todos os lugares o desejo de todos aqueles que se sentem ligados à tradição litúrgica latina, por uma aplicação larga e generosa das diretrizes já publicadas desde longo tempo pela Sé Apostólica, concernentes ao uso do Missal Romano segundo a edição típica de 1962”, (MP “Ecclesia Dei”, 02/07/1988, n. 6). Não se pode esquecer também que o Rito dito de S. Pio V é o Rito ordinário concedido no dia 18 de janeiro de 2002 por decisão da Sua Santidade, à Administração Apostólica Pessoal S. João Maria Vianney de Campos (Brasil). Tudo isto faz ver claramente que este Rito, por concessão do Santo Padre, tem pleno direito de cidadania na Igreja, sem que isto queira diminuir a validade do Rito aprovado por Paulo VI e atualmente em vigor na Igreja latina.

Penso que os sinais de proximidade que o Santo Padre deu aos fiéis ligados à Tradição testemunham amplamente o afeto de Sua Santidade por esta porção do Povo de Deus que não se pode absolutamente negligenciar nem menos ainda ignorar; estes fiéis, em plena comunhão com a Sé Apostólica, se esforçam, mesmo se isto é através de numerosas dificuldades, por manter vivos o fervor da fé católica e a devoção, através da expressão de um apego particular às formas litúrgicas e devocionais da antiga Tradição, com as quais eles melhor se identificam.

Parece-me, com efeito, que esta adesão destes fiéis ao antigo Rito vêm exprimir legitimamente um percepção religiosa, litúrgica e espiritual, particularmente ligada à Tradição antiga: quando isto é vivido em comunhão com a Igreja, é um enriquecimento.

Eu não gosto, com efeito, das concepções que querem reduzir o « fenômeno » tradicionalista somente à celebração do Rito antigo, como se se tratasse de um apego nostálgico e obstinado ao passado. Isto não corresponde à realidade que se vive no interior deste vasto grupo de fiéis. Na realidade, nós estamos aí freqüentemente na presença de uma visão cristã da vida de fé e de devoção – partilhada por muitas famílias, freqüentemente ricas de numerosos filhos – que possui suas próprias particularidades; esta visão comporta por exemplo um forte sentido de pertença ao Corpo Místico, um desejo de manter com solidez os laços com o passado – que se quer considerar não em oposição ao presente, mas na continuidade da Igreja – para conservar os fortes pontos de ancoragem do cristianismo, um desejo profundo de espiritualidade e sacralidade, etc. O amor pelo Senhor e pela Igreja encontra assim, sua mais alta expressão na adesão às antigas formas litúrgicas e devocionais que acompanharam a Igreja ao longo de toda a sua história.

É interessante em seguida ressaltar como se encontram no seio desta realidade numerosos padres, nascidos depois do Concílio Ecumênico Vaticano II. Eles manifestam, eu diria, como uma « simpatia de coração » por uma forma de celebração, e também de catequese, que segundo sua « percepção » deixa um grande lugar ao clima de sacralidade e de espiritualidade que justamente conquista também os jovens de hoje: não se pode certamente defini-los como « nostálgicos » ou um vestígio do passado. Eu gostaria também de lembrar, por outra parte, que este venerável Rito formou durante séculos numerosos santos, e modelou o rosto da Igreja que reconhece ainda hoje seus méritos, o indulto Ecclesia Dei de João Paulo II é a prova disto.

Na Igreja há uma tal variedade de dons postos à disposição das consciências e sensibilidades diferentes, com suas especificidades, que encontram seu lugar justamente nesta riqueza abundante da catolicidade. Não se pode recusar que no seio de uma tal variedade de dons e sensibilidades os ditos « tradicionalistas » estejam também presentes; e não se devem tratá-los como “fiéis de segunda categoria”, mas é preciso proteger seu direito de poder exprimir a fé e a piedade segundo uma sensibilidade particular, que o Santo Padre reconhece como totalmente legítima. Não se trata portanto de opor duas sensibilidades como se elas fossem antagonistas: uma que diríamos « tradicional » e outra que chamaríamos « moderna »; trata-se pelo contrário da liberdade de confessar a mesma fé católica, com insistências e expressões legitimamente diversas, um pleno respeito fraterno e recíproco.

Pergunta: Eminência, a ereção da Administração Apostólica S. João Maria Vianney de Campos, no Brasil, parece ser uma tentativa bem sucedida de conjugar estas diferentes sensibilidades no interior da Igreja.

Dom Dario Castrillón: Certamente! E nós devemos reconhecer antes de tudo a obra da Providência: quem poderia imaginar, que apenas dois anos depois do Grande Jubileu, que uma situação irregular como a que se encontrava em Campos viesse a ser um sinal de esperança para todo mundo tradicionalista, e uma prova concreta, entre outras, de que dentro da única Igreja de Cristo sensibilidades diferentes podem coexistir?

Com efeito, a situação era bastante complicada: depois da renúncia de Sua Exa. Dom Castro Mayer ao governo da Diocese de Campos, a união “São João Maria Vianney” se formou progressivamente – com padres, comunidades religiosas e comunidades de fiéis – e era uma estrutura paralela à Diocese. Era evidentemente uma situação grave, mais ainda por causa da ordenação episcopal recebida por Dom Rangel que estava à frente deles; ordenado pelos Bispos excomungados da Fraternidade São Pio X, ele incorreu por sua vez em excomunhão automática (“latæ sententiæ”). Mas, graças a Deus o grupo de Campos saiu de uma situação que poderia levar a um estado de cisma formal.

Lá, portanto, onde havia um bispo, com os padres, religiosas e fiéis autônomos, por um ato de humildade e de arrependimento, o mesmo Dom Rangel e seus padres, respondendo ao convite do Santo Padre, consideraram em consciência que era seu dever entrar de novo em plena comunhão com a Igreja, ao constatarem que as condições que eles julgavam ser um «estado de necessidade » não mais existiam. Nasceu assim, pois uma situação completamente diferente. Seria preciso realmente lembrar a esplêndida Palavra do Senhor: «Eis que Eu faço novas todas as coisas ».

Mas devo ao sublinhar que isso foi possível graças a «um ato de humildade e de arrependimento» da parte da União Sacerdotal « São João Maria Vianney », que reconheceu que não se podia conduzir uma batalha ao serviço da Tradição sem o vinculo, afetivo e efetivo, com o Vigário de Cristo e a Sé Apostólica.

A história, com efeito, talvez mais do que qualquer outro mestre, ensina que ninguém jamais pode conseguir algum fruto na Igreja sem a benção do Santo Padre.

É preciso andar com Pedro para não perder o reto caminho. Dom Licínio Rangel, com toda a comunidade de Campos, obteve depois da reconciliação um acordo histórico com a Sé Apostólica, que está agora em plena luz; enquanto que antes, eu diria que eles estavam como na sombra de uma situação irregular que os fazia sofrer, a eles como a nós.

Agora não há mais « eles » de um lado e « nós » de outro : existe a plena unidade! Pois o clima de colaboração instaurado entre a Administração Apostólica São João Maria Vianney e a Diocese local, e isto não somente em Campos, mas nas outras Dioceses do Brasil, é verdadeiramente positivo. Há Bispos que pedem ao Administrador Apostólico que envie padres para assistir nas suas Dioceses aos fiéis da antiga Tradição. Em uma Diocese, pediu-se também a estes de garantir um tempo fixo de confissões na Catedral do lugar.

O atual Administrador Apostólico, Dom Fernando Rifan é um infatigável lançador de «pontes». Seu testemunho pessoal mostra que esta colaboração com os episcopados locais é verdadeiramente possível. Sem nada sacrificar desta identidade que o Santo Padre reconheceu legitima para os católicos ligados às formas litúrgicas e diciplinares precedentes da Tradição latina. E o fato de o Santo Padre ter concedido a esta Administração Apostólica o Rito de São Pio V como Rito ordinário mostra uma vez mais que Sua Santidade e a Sé Apostólica responderam generosamente aos pedidos legítimos destes padres e dos fiéis de Campos.

Pergunta: Eminência, permita-me uma questão uma pouco indiscreta. Depois da ereção da Administração Apostólica de Campos, em numerosos meios tradicionalistas nasceu a confiança que o que tinha sido concedido aos fieis brasileiros seria, de um modo ou de outro, concedido também aos fieis tradicionalistas do mundo inteiro. Que pode nos dizer sobre isso?

Dom Dario Castrillón: Aqui é preciso distinguir a situação de Campos, que é delimitada por um território específico, e a situação dos outros fiéis que gozam do indulto Ecclesia Dei repartidos no mundo inteiro. A solução encontrada para Campos é uma conseqüência de sua situação local específica.

Eu posso dizer que o Santo Padre, já com o indulto Ecclesia Dei e a criação da Comissão Pontifícia de mesmo nome, quis defender as aspirações legítimas dos fiéis ligados à Liturgia antiga ; é nesta linha que a Comissão continua a Trabalhar. Mais de quinze anos depois deste Motu proprio – considerando as numerosas dificuldades que apareceram entre estes fiéis e diferentes Bispos que permanecem perplexos ou que são muito hesitantes em conceder as permissões necessárias –, uma idéia toma sempre mais corpo, conforme a qual tornou-se necessário tornar efetiva a concessão do indulto numa escala mais vasta e que correspondam melhor à realidade; ou seja, consideramos que os tempos estão maduros para uma nova forma de garantia jurídica, clara , deste direito já reconhecida pelo Santo Padre pelo indulto de 1988. Os Cardeais e os Bispos membros da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei estudaram mais atentamente esta situação, em busca de melhores sugestões a submeter a quem de direito.

Tudo isso será evidentemente avaliado à luz desta prudência e desta sabedoria que deve sempre caracterizar a ação da mais alta Autoridade da Igreja.

Posso dizer que de minha parte não perco jamais a esperança; eu não gosto jamais de me considerar vencido, porque eu sei que a paciência, como dizia Santa Teresa d’Ávila, tudo alcança.

Pergunta: Sem querer abusar de vosso tempo e de vossa paciência, perdoe-me uma última questão: há esperança de reconciliação com a Fraternidade São Pio X ?

Esta esperança igualmente, eu a tenho fortemente no coração; é partilhar a esperança do Vigário de Cristo, que mantém os braços abertos esperando a Fraternidade São Pio X. Mas eu não nego uma certa perplexidade diante das hesitações em retornar à plena comunhão por parte dos Superiores da Fraternidade São Pio X, ainda recentemente expressos no contexto da conferência de imprensa em Roma de Dom Bernard Fellay.

Apesar de todos estes sinais de hesitação, eu creio, contudo nas palavras, que o mesmo D. Fellay repetiu nesta conferência de imprensa de 2 de fevereiro passado, a saber, que ele não quer romper o diálogo com Roma.

Eu desejo pois que este diálogo termine na etapa tão desejada de uma plena regularização da Fraternidade São Pio X, e que possamos construir juntos dentro da Igreja a unidade de coração querida por Cristo, respeitando sempre as diversidades legítimas que devemos considerar não como oposição mas como complementaridade.

Em consciência devo dizer, com efeito, que o Santo Padre e seus colaboradores mais próximos fizeram e fazem ainda tudo o que lhes é possível, para fazer compreender as Autoridades da « Fraternidade de S. Pio X » esta convicção profunda que agora chegou o tempo favorável para o retorno desejado, um autêntico « Kairós » de Deus.

Se a Igreja não tivesse sido fundada sobre a Rocha do Primado de Pedro, então as diversidades não poderiam achar a garantia de sua unidade e de seu centro de gravidade no Vigário de Cristo, elas se tornariam inevitavelmente oposições que separaram ; mas graças à Vontade de Cristo, a Igreja, mesmo no meio da tempestade, é sempre sustentada pelo Espírito Santo, e seu leme é confiado a Pedro para que as forças do inferno não prevaleçam contra ela.

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