Francisco e a multiplicação dos pães

A página da Rádio Vaticano traz um discurso do Papa Francisco ao Comitê Executivo de Caritas Internationalis[1], em que o Santo Padre apresenta uma versão para a passagem da multiplicação dos pães e dos peixes (cf. Mateus 14,13-21; 15,32-39; Marcos 6,30-44; 8,1-10; Lucas 9,12-17; João 6,1-15), que causou estranhamento a alguns; eis o que ele diz:

– “Acerca dos pães e dos peixes, queria agregar um matiz: não se multiplicaram! Não, não é verdade. Simplesmente, os pães não se acabaram. Como não se acabou a farinha e o azeite da viúva. Não se acabaram. Quando alguém diz ‘multiplicar’ pode se confundir e crer que faz magia. Não! Não! Não! Simplesmente é tal a grandeza de Deus e do amor que pôs em nossos corações, que, se queremos, o que temos não se acaba. Muita confiança nisto”.

Três coisas chamam a atenção:

a) a afirmação de que os pães e os peixes não se multiplicaram, mas “não se acabaram”;

b) a associação da multiplicação à magia;

c) a afirmação de que nosso querer garante a permanência de nossos haveres.

Quanto a “a”, o primeiro a ser destacado é que o Santo Padre não nega que ocorreu um milagre, já que compara o acontecido ao socorro miraculoso que Elias presta à viúva de Sarepta (cf. 1Reis 17,10-16). Mas o milagre não estaria na multiplicação dos pães, isto é, Jesus não os multiplica antes da distribuição dos Apóstolos, senão que sua quantidade vai aumentando durante a mesma, é o que se depreende da fala do Papa. Os pedaços que alimentam a multidão são pedaços dos cinco (ou sete) pães iniciais. O Papa voltaria ao texto da “multiplicação dos pães” no Angelus do dia 02 de junho do presente ano:

– “Diante daqueles cinco pães, Jesus pensa: eis a providência! Deste pouco, Deus pode encontrar o necessário para todos. Jesus confia totalmente no Pai celeste, sabe que a Ele tudo é possível. Por isso, pede aos discípulos que mandem as pessoas sentar-se em grupos de cinquenta — e isto não é casual, porque significa que já não são uma multidão, mas tornam-se comunidades, alimentadas pelo pão de Deus. Em seguida, toma aqueles pães e peixes, eleva os olhos ao céu, recita a bênção — é clara a referência à Eucaristia — e depois parte-os e começa a dá-los aos discípulos para que eles os distribuam… e os pães e os peixes já não acabam, não acabam! Eis o milagre: mais do que uma multiplicação, trata-se de uma partilha, animada pela fé e pela oração. Todos comeram e sobejou: é o sinal de Jesus, pão de Deus para a humanidade” (negrito meu).

Perceba-se a semelhança com aquilo que Bento XVI, no Angelus de 31 de julho de 2011, havia dito, a respeito do mesmo tema:

– “O Evangelho deste domingo descreve o milagre da multiplicação dos pães, que Jesus realiza para uma multidão de pessoas que O seguiram com a intenção de O ouvir e ser curados de várias enfermidades (cf. Mateus 14,14). Ao cair da noite, os discípulos sugerem a Jesus que mande embora a multidão, para que possa ir alimentar-se. Mas o Senhor tem outra coisa em mente: «Dai-lhe vós mesmos de comer» (Mateus 14,16). Eles, no entanto, só têm «cinco pães e dois peixes». Então, Jesus realiza um gesto que faz pensar no sacramento da Eucaristia: «Elevando os olhos ao céu, abençoou-os. Partindo em seguida os pães, deu-os aos seus discípulos, que os distribuíram ao povo» (Mateus 14,19). O milagre consiste na partilha fraterna de poucos pães que, confiados ao poder de Deus, não só são suficientes para todos, mas chegam a sobejar, a ponto de encher doze cestos. O Senhor pede aos discípulos que distribuam o pão à multidão; deste modo, orienta-os e prepara-os para a futura missão apostólica: com efeito, deverão levar a todos a alimentação da Palavra de vida e do Sacramento” (negrito meu).

Ambos os Papas acentuam que o milagre está na partilha. Não se trata, portanto, de uma “inovação” de Francisco. O que ambos parecem acentuar é o papel da cooperação humana para a intervenção miraculosa de Deus (nada mais católico, não?): o pão “crescia” nas mãos dos Apóstolos, não nas de Cristo, chamando a atenção para o seu papel de instrumentos. O pão estava sempre “acabando”, na percepção deles, o que exigia continuamente a sua fé em continuar dando pedaços generosos para cada um. Nada nos textos da “multiplicação” nos determina a pensar que o fato miraculoso foi diferente da interpretação dada pelos Papas reinante e emérito, a qual, portanto, não fere a literalidade da Escritura. Aliás, o que S. João Evangelista diz praticamente nos obriga à interpretação de Bento XVI e Francisco:

– “Eles os recolheram e encheram doze cestos com os pedaços dos cinco pães de cevada deixados de sobra pelos que se alimentaram” (João 6,13; grifos meus).

Mas a tradição da Igreja já não havia ratificado uma interpretação diferente? Na Catena Aurea, Santo Tomás recolhe os seguintes comentários de S. Hilário:

– “Não foram multiplicados os cinco pães numa multidão de pães, senão que se sucederam os pedaços aos pedaços. Foi a matéria do pão a que aumentou, mas ignoro se o foi no lugar que servia de mesa ou nas próprias mãos dos convidados”[2].

– “São oferecidos, pois, cinco pães à multidão e são distribuídos. Mas se observa que aumentam os pedaços nas mãos dos que os distribuem. Não se faziam menores à medida que os partiam, senão que sempre os pedaços enchiam as mãos dos que estavam distribuindo. Nem os sentidos, nem a vista podiam seguir o andamento daquilo que acontecia. É o que não era, se vê o que não se compreende e só resta crer que Deus pode fazer todas as coisas”[3].

Hilário representa uma antiga tradição que, precisamente, serve de base à interpretação de Bento XVI e Francisco.

O que dizer da relação que Francisco estabelece entre a multiplicação e a magia? Estaria o Papa dizendo que o poder sobre supostos segredos ocultos da natureza seria capaz de produzir um verdadeiro prodígio? Ou que uma tal multiplicação não poderia ser autêntico milagre? Penso que não se trata disso; creio que quando o Santo Padre associa a palavra “magia” à multiplicação, está pensando mais no efeito fascinante, espetacular, que um milagre assim produziria, e está afirmando que o feito por Jesus foi um milagre mais “conatural”, explicitando ainda mais o valor da cooperação humana para a ação divina.

Quanto à ideia de que nosso querer pode assegurar a permanência de nossos bens, é preciso dizer que ela segue à afirmação da grandeza de Deus e do amor que Ele deposita em nossos corações. Deste modo, nossa vontade tem como fundamento esse amor e, se é assim, deve ser conforme a ele. Não faz sentido pensar que ela possa querer algo que contrarie esse amor. “Se queremos, o que temos não se acaba” equivale a “se o Amor assim quiser, quereremos que o que temos não se acabe”. Aliás, não faz o menor sentido pensar que um Papa que a todo momento nos pede que rezemos por ele, e que recentemente, no Discurso aos Bispos do CELAM no Rio de Janeiro, condenou certo pelagianismo presente na Igreja, estivesse afirmando algo como um poder para solucionar nossos problemas à parte de Deus.

Podemos estar tranquilos, o Papa Francisco é o defensor da Tradição, é o garante da Fé católica. Estejamos seguros na Barca de Pedro, e “multipliquemos” os nossos esforços para, com o auxílio da graça, saciar a fome de Deus e de pão que padecem os homens e mulheres de nosso tempo.

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NOTAS

[1] Hoy día está en peligro el hombre, la persona humana, la carne de Cristo – dice el Papa.
[2] http://hjg.com.ar/catena/c167.html .
[3] http://hjg.com.ar/catena/c698.html .

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