Idéias de burguês

Em recente destempero esquerdista que me chegou às mãos, tive uma ocasião bastante interessante de ver no mesmo texto dois dados altamente conflitantes, que mostram alguns dos engodos e raciocínios recursivos da “langue de bois” marxista. Vejamo-los, pois eles podem nos ajudar a perceber algumas coisicas:

“[I]déias de burguês” (1) em contraposição a
“todos tenhamos dignidade de vida, porque para nós isto é ter vida plena”(2)

O primeiro faz parte da visão marxista do mundo, baseada na dialética hegeliana de tese, antítese e síntese. Para o pessoal que curte um PuroFidel® (Cuba-libre sem Coca-Cola. Que ressaca!), a tese seria o “pensamento burguês”, e sua antítese o pensamento revolucionário dos proletários (mais comumente conhecido nos meios pseudo-católicos como “libertador”). Assim, a oposição é automática. É “pensamento burguês” o que quer que não esteja perfeitamente de acordo com o pensamento revolucionário (ou, mais ainda, com a versão do pensamento revolucionário a que adere o pensador: O trotskista considera o estalinista vendido ao pensamento burguês, assim como este considera o “moderado” idem..). Não há terceira opção, não há saída que não ser burguês ou revolucionário (“contra burguês, vota 16” – isso tem um significado profundo, de escolha entre o Bem e o Mal, para os iniciados…). A própria “terceira via” do socialismo fabiano é vista pelos que a propõem como a perfeita antítese, plenamente inserida na dialética marxista e igualmente negadora de quaisquer opções outras.

O segundo é a visão altamente reducionista que foi dada pelo materialismo dialético à vida, à dignidade e – o que é mais entristecedor – às palavras de Nosso Senhor sobre a vida plena. “Dignidade de vida” passa a ser barriga cheia, casa sem goteiras, roupa limpa e seca, previsibilidade de um nível de conforto que é equiparado à dignidade. A “vida plena” (que, sabemos, é na verdade a vida dos Santos no Céu, imersos no Sumo Bem, participando da Vida da Santíssima Trindade) passa a ser nada mais que o jargão pseudo-cristão para se referir a estes valores de “dignidade”.

Ora, que valores são esses?! Quem primeiro pregou que o que mais vale – ou só o que vale – é ter casa, comida, previsibilidade de um nível de conforto, etc?

A resposta, ao alcance de qualquer um que tenha estudado um mínimo de História, é clara: estes são os valores da burguesia. Este estrato social surgiu quando a circulação monetária começou a fazer com que comerciantes tivessem lucros, lucros estes que os levavam a possuir casas confortáveis (nos burgos – daí vem a palavra -, posto que a terra não podia ser comprada com dinheiro). Os tradicionais valores cristãos da honra, do dever para com a sociedade, da busca da santidade nas condições de vida de cada um foram substituídos, neste novo estrato social, por uma perversão destes valores em que a dignidade não mais era o título que garante direitos e impõe deveres, ou a santidade arduamente buscada, ou ainda o pleno empenho no exercício de suas funções dentro de sua posição.

“Dignidade” passou a ser uma barriga farta, coberta não pelas rendas dos nobres (que aliás raramente tinham grandes barrigas…), mas pela versão sem rendas, com punhos e golas retas, do traje aristocrático: o terno. “Dignidade” passou a ser o codinome da complacência consigo mesmo e da busca da riqueza como um fim em si, do conforto como necessário e do lucro como (para uma das doutrinas feitas para agradar aos burgueses, a calvinista) sinal da predileção divina.

Perdeu-se a noção verdadeira de dignidade. Perdeu-se a noção católica de que há muito mais dignidade no nobre que morre em batalha ou no camponês que acorda antes do galo para cuidar de sua lavoura que no burguês que acorda às oito e procura maneiras de enriquecer mais e mais.

Esta falsa noção de “dignidade”, de “auto-suficiência”, foi então contaminada pelo platonismo que ressurgia como negação do aristotelismo da Escolástica. Temos então não mais a dignidade individual que motivava os burgueses calvinistas e huguenotes, mas a “dignidade” coletiva. Enquanto os huguenotes nada viam de mal em extorquir de seus empregados e clientes (pois isso os fazia ricos, mostrando assim serem predestinados ao Céu), os pregadores da “dignidade” coletiva nada vêem de mal em roubar as terras de seus donos legítimos, em avançar sobre a propriedade privada (logo individual), desde que isso assegure a “dignidade” (ou seja, a aplicação coletiva dos valores burgueses de “dignidade”: barrigão, cama macia e previsibilidade do conforto) das massas.

No século passado (e no retrasado, e no finalzinho do que veio antes…) foram inúmeras as vítimas destas formas de busca de uma “dignidade” burguesa aplicada a um coletivo. Poderíamos mesmo dizer que a grande luta nestes tempos foi não mais entre a visão cristã e a pagã, mas entre a visão burguesa individualista (Aristóteles aplicado à barriga cheia) e a visão burguesa coletivista que a contestava. Os anglo-saxões em geral escolheram a primeira, dando origem ao liberalismo, ao capitalismo, etc. Os latinos (especialmente os franceses, ai) a segunda, dando origem ao comunismo, ao fascismo, ao socialismo…

Neste momento temos então uma situação sui generis no Brasil: enquanto, no mundo inteiro, as idéias burguesas coletivistas (marxismo, etc.) estão em retração, cedendo à mais crassa anomia (duas notícias de hoje mostram bem esta situação: na França, acabaram de aprovar uma lei punindo com prisão e multa os alunos que ofenderem professores – o simples fato desta lei ser vista como necessária mostra o grau de anomia da sociedade – e na Inglaterra milhares de crianças estão sem aula porque não houve tempo para que os professores fossem verificados em busca de acusações passadas de ataques sexuais a crianças. Neste mesmo país, causou comoção o bárbaro assassinato de duas menininhas de dez anos por uma professora e um zelador de colégio, que haviam sido aprovados nesta verificação…), no Brasil elas estão em plena força. Os quatro candidatos à Presidência da República têm o mesmo programa de valores burgueses coletivizados, a imprensa só fala disso, etc.

A anomia surge aqui também, mas em outros campos que não o da política. Vem-me à mente especialmente a predileção dos jovens da elite pelo “funk”, que mostra que rejeitam os valores sociais de que a elite supostamente deveria ser a portadora. As letras dos “funks” são também reveladoras de uma situação de caos. Há alguns dias passei – para indignação de minha esposa – pela tortura de ouvir de cabo a rabo com fones de ouvido um sucesso “funk” (“Tu Vai Tomar de G3” – “G3” é um modelo de fuzil) para poder analisar sua letra. Ei-la:

Agora, quero ouvir! Vamulá! Quero ouvir! Vamulá!
Tu vai tomar de G3 – tu vai tomar de G3 – a “farmá” tá no complexo e eu já disse pra vocês:
Tu vai tomar de G3 – vai tomar de G3 – pq a “farmá” é de Vigário e o Justo é nosso rei.
Ó Deus de Abraão que domina o mundo inteiro,
Não é brincadeira não, tenho orgulho em ser funkeiro.
E se Deus é por mim, quem será contra mim?
É, eu falo do nosso eterno rei, que é Davi.
Se liga meus amigo, no Complexo a bala come;
Pára de olho grande, os caranguejo estão com fome.
Mas se liga meus amigo, no Complexo a bala come;
Pára de olho grande, os caranguejo estão com fome.
É!
Tu vai tomar de G3 – mas vai tomar de G3 – pq a “farmá” é de Vigário e o Justo é nosso rei.
É!
Tu vai tomar de G3 – tu vai tomar de G3 -; a “farmá” tá no complexo!
Eu sou o Comando, e não sou comandado
Se vier de gracinha, você vai voltar furado.
Se tu vacilar – não entra nessa, meu irmão!
O “vulcão” é surdo e eu te levo pro caixão.
Tu vai tomar de G3 – mas vai tomar de G3 – pq a “farmá” é de Vigário e o Justo é nosso rei.
Tu vai tomar de G3 – vai tomar de G3 – a “farmá”! – e o Justo é nosso rei.

Não sei se entendi bem o que escrevi como “a farmá” (talvez seja “as armas”?; a dicção não é o forte deste “crooner”), mas o meu ponto é claro no que consegui entender: a mistura entre o discurso “crente” (representativo de uma vertente atual de uma forma inicial do individualismo burguês, a calvinista) e a mais bárbara recusa da regras sociais do coletivismo burguês (além, é claro, das inegáveis ressonâncias do “non serviam” satânico no verso “eu sou o Comando, e não sou comandado”) mostram que não há sentido algum, não há lei, não há honra, não há, em suma, ordem ou busca de adeqüação do fim último ao princípio primeiro. Temos, senhores, a anomia.

Neste ambiente, cresce como reação (diria o materialista dialético: como reação conservador dos defensores da tese diante de sua antítese) a força das instâncias de coletivismo burguês: plebiscitos daquilo que se faz passar pela CNBB, “cidadania” pregada como valor em si, Tribunal Penal Internacional, etc.

Paradoxalmente, portanto, temos uma situação que é o oposto do que crêem ver os marxistas. Não temos valores burgueses como tese, contra os quais se levantaria o proletarismo coletivista. Temos, sim, uma situação em que agoniza este coletivismo, que se levanta como reação de defesa dos valores burgueses (o que há de menos burguês que a imprevisibilidade da vida do traficante, muito mais assemelhada à moral guerreira pagã dos nórdicos pré-cristãos?) contra uma anomia extrema que os ameaça e que eles não são capazes de entender.

Os marxistas são a tese, não a antítese. São eles os defensores dos valores burgueses, são eles os reacionários.

A resposta, porém, não é nem pode ser delimitada pelos estreitos leitos de Procusto da dialética hegeliana. A resposta não é uma síntese de repolho com lagosta, de anomia e coletivismo. A resposta é a que a Igreja sempre pregou e sempre pregará: nem anomia, nem coletivismo, nem burguesia nem guerreiro viking de G3 com as ceroulas aparecendo. Temos que procurar, sim, fazer com que a sociedade se reorganize de baixo para cima, fazer com que renasçam em força as instituições intermediárias entre o Estado e o indivíduo; proteger a família, fazer crescer a organização local e a solidariedade.

A Argentina atualmente está em um situação de que esta é a única saída. É provável que em breve também estejamos.

Que Deus nos ajude a passar por este difícil momento histórico, sempre com os pés firmes no chão e os olhos fitos no Céu.

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