Igreja Anglicana: católica, “via média” ou protestante?

Hoje é muito comum encontrar o discurso do tal cristianismo primitivo na boca de protestantes, assim como o combate às tradições e à idéia de um cristianismo paganizado desde os primeiros séculos. Na verdade essas teorias não encontram fundamento nem mesmo entre as críticas da Reforma. Boa parte dos reformadores, quando pensava em “Igreja primitiva”, levava em conta os quatro primeiros Concílios, ou seja, não enxergava no primitivismo eclesiológico a visão puritana e pentecostal que hoje reina. A própria Igreja Anglicana não só reconhece os Concílios como  corrobora o trabalho dos Padres da Igreja, os reverenciando como santos e doutores. Só mais tarde, com a consolidação do setor evangélico dentro do anglicanismo – não por mesmo essa invasão se deu com a estruturação do liberalismo dentro da Igreja – que essas tradições foram deixadas de lado ou, no mínimo, passaram a ser subvalorizadas.

A Igreja Anglicana, em especial, não surgiu como essencialmente oposta ao papado enquanto doutrina, mas sim ao poder que o Santo Padre exercia nos seus domínios. Daí o famoso Ato de Supremacia – em 1534 o Parlamento inglês declarou Henrique VIII “Senhor da Igreja da Inglaterra”. Com isso houve um levante de soldados invadindo mosteiros, tomando paróquias e confiscando os bens da Igreja que, a partir de então, passaram a ser do Estado. São Tomás Moro – Chanceler do Reino – e São João Fisher – Cardeal e Bispo de Rochester – foram martirizados por se recusarem a obedecer ao decreto, persistindo na fidelidade à Igreja de Cristo. Posteriormente, esse Ato de Supremacia foi substituído por outro ratificado por Elisabete I, a principal responsável pela consolidação da reforma protestante na Inglaterra. Com isso a dita cuja dominava, através da força, a massa católica que ainda lutava fortemente no reino e, principalmente, revertia e destruía o que tinha sido feito pela verdadeira Rainha da Inglaterra, Maria I, que tentou resgatar a fé genuína no seu país. Ademais, instituiu um “Juramento de Supremacia” onde se declarava total fidelidade à monarquia, opondo-se a qualquer interferência externa, reverenciando a Rainha como “única governadora suprema deste reino e de todos os outros domínios e países de sua Alteza, assim como em todas as coisas ou causas espirituais, eclesiásticas ou temporais”. Com isso os católicos que lutavam em meio à aristocracia se viam obrigados ou a apostatar da fé, para manter seus títulos, ou renegar a glória do mundo, em defesa da Religião. Hillaire Belloc, no seu livro, Characters of the Reformation, disse:

A Igreja Anglicana foi imposta em definitivo na Inglaterra por razões econômicas, já que esta nova religião permitiu a nova nobreza ascender e ficar com a grande riqueza da Igreja Católica que Henrique VIII e seus sucessores lhes deram em recompensa aos seus serviços. Isso tornaria impossível restaurar a antiga religião, já que significaria a restituição das terras.

O diálogo Anglicano X Católico por muito tempo esteve fadado ao fracasso por conta do ranço anti-católico na Inglaterra que levava os seus clérigos a acreditarem que toda e qualquer doutrina e dogma oriundo de Roma era essencialmente anti-cristão, ou seja, não enxergavam a base fundamental da reforma anglicana, a política, e não percebiam que, mesmo sem saber, a Igreja da Inglaterra, ao menos antes de ser tomada pelos evangélicos (Baixa Igreja), tinha muitas crenças em perfeita sintonia com os ensinamentos romanos.

Os Trinta e Nove Artigos foram estabelecidos em 1563, por meio deles a doutrina anglicana se definiu, tomando uma visão própria frente a doutrina calvinista, luterana e católica. As duas primeiras gozavam de ampla defesa em setores anti-romanos, defendidas por religiosos que buscavam na adesão teológica aos princípios reformados a genuína oposição ao atolicismo, principalmente de cunho político. Os Trinta e Nova Artigos surgiram de uma revisão dos Quarenta e Dois Artigos publicados em 1553, mas revogados pela Rainha Maria, a Católica. De forma geral os Artigos adotam uma postura mais próxima ao luteranismo do que ao calvinismo, mas mantendo uma forma católica, zelando por certas tradições, preservando a estrutura hierárquica dos tempos romanos.

No artigo XXXV se diz:

O Segundo livro das Homilias (…) contém doutrina pia, saudável e necessária para estes tempos, como também o primeiro livro das Homilias, publicado ao tempo de Eduardo VI; e portanto julgamos que devem ser lidas pelos ministros, diligente e distintamente nas igrejas, para que sejam entendidas pelo povo.” [The second Book of Homilie (…) doth contain a godly and wholesome Doctrine, and necessary for these times, as doth the former Book of Homilies, which were set forth in the time of Edward the Sixth; and therefore we judge them to be read in Churches by the Ministers, diligently and distinctly, that they may be understanded of the people.]

As Homílias Anglicanas são dois livros com trinta e três sermões que aprofundam o conhecimento da doutrina anglicana, auxiliando no entendimento de pontos específicos da crença da Igreja da Inglaterra. Usadas pelo clero paroquial, são instruções metódicas que se aproximam em muito do método pedagógico do Catecismo Católico. Os discursos contidos nas Homilias estão baseados na Vulgata e na Septuaginta (versão rejeitada pelos protestantes que preferiram seguir o cânon do AT definido por fariseus anti-cristãos no Sínodo de Jâmnia, no ano 100 d.C). Nas Homilias se diz que a Igreja primitiva se manteve absolutamente pura durante 700 anos (ainda não havia aquele papo de Constantino criador do catolicismo e paganizador da Igreja), acatando os quatro primeiros Concílios, além disso aderem aos Padres da Igreja dos oito primeiros séculos, os reverenciando como santos e doutores, reconhecendo a inspiração divina dos seus escritos. Afirmam que o Corpo e o Sangue são recebidos sob a forma de pão e vinho, considerando a Carne do Santíssimo Sacramento como uma substância espiritual. Atestam o matrimônio e ordenação como sacramentos e louvam os jejuns, as esmolas, os atos de misericórdia. As Homilias, melhores comentários dos Artigos, não procuram aderir formalmente ao protestantismo como forma de consolidar sua posição anti-católica, ao contrário, buscam se livrar daquilo que eles consideravam os erros dominantes do catolicismo, ou seja, crenças medievais, costumes e devoções populares corroboradas por Roma. O que eles entendiam como os ensinamentos católicos dos primeiros séculos era aceito na construção daquilo que chamavam de Igreja primitiva e até mesmo a evolução doutrinal e dogmática católica, com o aprofundamento no saber religioso contido em Concílios e pronunciamentos Papais, não era, a priori, rechaçada por completo. Card. Newman, no seu grande livro Apologia Pro Vita Sua, relembrando a sua história de conversão, disse:

Eu (…) considerava Roma em repouso e Roma em atividade como duas coisas completamente distintas. Opunha seu credo à sua doutrina comum, ao seu tom de controvérsia, à sua influência política e social, às suas crenças e às suas práticas populares. Com essa distinção entre os decretos e as tradições de Roma, fazia, paralelamente, uma outra entre o Anglicanismo em repouso e o Anglicanismo em ação, No seu credo formal, o Anglicanismo não estava à grande distância de Roma. Mas, a coisa muda de figura quando se considera no Anglicanismo seu espírito insular, suas tradições de Igreja estabelecida, suas características histórica, seus rancores na controvérsia e seus juízos privados.

As Igrejas da Comunhão Anglicana reclamam validade da sua Sucessão Apostólica. Quando a Igreja da Inglaterra rompeu com Roma, no séc. XVI,  manteve a estrutura episcopal por meio de sagrações válidas, mesmo que ilícitas. Até então a nascente Igreja Anglicana continuava aderindo as normas doutrinais e litúrgicas católicas. Não obstante, graças ao fortalecimento do espírito anti-romano, que abria espaço, propositalmente, a teologia protestante, a Igreja da Inglaterra entrou num processo de declínio e empobrecimento Tradicional. No reinado do Rei Eduardo VI mudanças radicais foram feitas na sagração episcopal. Com a estruturação do “Edwardian ordinal” – louvado por clérigos que eram simpáticos à compreensão protestante de ministério – a Igreja da Inglaterra perdeu a validade da sua sucessão apostólica, já que a houve a corrupção da forma e da intenção sacramental. O novo Ordinale pretendia conferir a graça sacramental por meio da expressão “receive the Holy Spirit” apenas. Não havia qualquer referência ao sacerdócio, sacrifício, ou a consagração das sagradas espécies. Ficava característica a ausência do sentido Sacerdotal da ordem – Sacerdos in æternum – e do sacerdócio sacrificante. Posteriormente, um século depois, lideranças conservadoras dentro do anglicanismo, preocupadas com a deficiência da forma, reformaram o Ordinale, acrescentando a expressão “for the office and work of a priest”. De todo o modo já era tarde, todos os Bispos válidos já tinham saído de cena, a partir desse momento o problema não era só de forma e intenção, mas também de ministro; só restavam Pastores, e também Sacerdotes, com sagrações, e ordenações, sem qualquer legítima validade.  Entretanto, vale frisar que, desde os anos 30, Bispos Vétero-Católicos – que têm a Sucessão Apostólica reconhecida por Roma – participaram ativamente das cerimônias de sagração episcopal anglicanas, as concelebrando. Os anglicanos e os Velhos Católicos rapidamente se viram como aliados naturais contra o que eles consideravam as invencionices da supremacia papal. Assim, em 1879, um Bispo católico que aderiu aos erros desse cisma, Herzog, celebrou a ordenação sacerdotal de alguns anglicanos, em Paris, para a diocese de Edimburgo.

Esse método, juntamente com o resgate de tradições perdidas com a entrada do pensamento protestante no anglicanismo, foi responsável pela tentativa da retomada da Sucessão Apostólica na Igreja da Inglaterra – a Igreja Católica ainda não reconhece a apostolicidade desse clero anglicano. A forma e a intenção dessas sagrações merecem ser examinadas, mas de todo o modo existem Bispos e Padres sagrados e ordenados a partir de uma linha legítima vinda dos Vétero-Católicos, desse modo reivindicam a validade da Sucessão.

Infelizmente a ativa “ordenação” sacerdotal e “sagração” episcopal de mulheres e homossexuais evidenciou, novamente, a total invalidade da hierarquia anglicana que, mais uma vez, rompeu com a Tradição Apostólica e, conseqüentemente, aumentou em grandes proporções as diferenças da Igreja da Inglaterra em relação a todas aquelas que vivem respaldadas na Tradição.

A preocupação da Igreja a respeito da validade da Sucessão Apostólica dentro do anglicanismo levou S.S Leão XIII, de eterna memória, a convocar um grupo de teólogos para estudar o problema inglês; o fruto dessa minuciosa e sincera análise resultou na Bula Apostolicae Curae. O Papa afirma categoricamente que as ordens anglicanas são “absolutamente nulas e completamente vazias” [“Absolutely Null and Utterly Void”]. Leão XIII afirmava que o novo Ordinale transparecia uma “nativa indoles ac spiritus”, ou seja, um caráter inato e um espírito natural que vinha com a proposital omissão a toda e qualquer referência aos sentidos da compreensão católica da natureza do sacerdócio cristão. Além do triunfo do Ordinale do Rei Eduardo VI que, como já foi dito, deformou a intenção – não havia referência ao sentido sacrificial e sacerdotal – e, posteriormente, a forma, outro ponto foi levado em grande consideração; como bem se sabe um Sacramento não pode ser ministrado duas vezes, já que, se houve validade, imprime uma caráter eterno na alma. Entretanto, desde o séc. XVI, a Igreja ordenava os Padres convertidos que vinham do anglicanismo. Devemos destacar, principalmente, as instruções dos Papas Júlio III e Paulo IV ao Cardeal Reginald Pole, no período da restauração católica com a Rainha Maria I, que afirmavam explicitamente a necessidade da (re)ordenação dos Sacerdotes e Bispos cismáticos. Ora, se havia validade sacramental não teria motivo para ordenar, novamente, o Padre. Ou seja, a própria Igreja, já nos períodos passados, não reconhecia a Sucessão Apostólica e a validade dos Sacramentos ministrados dentro do anglicanismo.  Assim se pronunciou o D. Basil Cardeal Hume, Arcebispo de Westminster:

Embora reafirmando o julgamento da Apostolicae Curae de que as ordens anglicanas são inválidas, a Igreja Católica tem em conta o envolvimento, em sagrações episcopais da Igreja da Inglaterra, de bispos da Velha Igreja Católica da União de Utrecht que são validamente ordenados. Em particular, e provavelmente em raros casos, as autoridades em Roma admitiram existir uma “prudente dúvida” sobre a nulidade da ordenação sacerdotal de ministros anglicanos vindos dessa linha de sucessão. (…) Existem muitos complexos fatores  que precisam ser verificados em cada caso. [1]

Ainda é pertinente frisar que, o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Card. Ratzinger, na Nota Doutrinal sobre a Professio Fidei, que comenta a carta apostólica Ad Tuendam Fidem de S.S João Paulo II, que normatiza o Código de Direito Canônico e Código dos Cânones das Igrejas Orientais, listou a Bula Apostolicae Curae como um dos ensinamentos definitivos que pedem firme assentimento de fé por se encontrar intimamente ligado a própria doutrina revelada. O Bispo anglicano de Huron, no Canadá, George Luxton, em carta ao Papa Paulo VI, pediu a revisão das ordens anglicanas, a revogação da excomunhão a Rainha Elisabete, decretada por São Pio V e, por final, um projeto de união entre anglicanos e outros cristãos. Sua Santidade respondeu, simplesmente, que a Bula de Leão XIII foi uma “declaração definitiva”, ou seja, de essencial seguimento para toda a Igreja. É de grande relevância as palavras do Papa na canonização dos quarenta mártires católicos mortos pelos reformadores na Inglaterra e no País de Gales:

Não haverá nenhum desejo de diminuir o legítimo prestígio e o valoroso patrimônio de piedade e costumes próprios da Igreja Anglicana, quando a Igreja Romana – esta humilde serva dos servos de Deus – puder abraçar sua bem-amada irmã na única comunhão autêntica da família de Cristo, uma comunhão de origem e de fé, uma comunhão de sacerdócio e de preceito, uma comunhão de santos na liberdade de amor do Espírito de Jesus. Talvez tenhamos que esperar vigilantes na oração, a fim de merecer esse dia abençoado. Mas somos desde já fortalecidos nesta esperaçanda pela amizade celestial dos 40 mártires da Inglaterra e País de Gales que são canonizados hoje.

Em resposta ao documento de Leão XIII os Arcebispos de Cantuária e Iorque escreveram uma carta, endereçada ao “nosso venerável irmão”, o Papa, em nome da Comunhão Anglicana e de todos os bispos da cristandade – haja hipérbole – chamada Saepius Officio, O Dever da Defesa. No texto, os dois religiosos anglicanos, num irônico esforço – afinal renegam o papado mas pretendem se justificar frente ao Santo Padre – defendem que a intenção da Ordem na Igreja da Inglaterra tem sim um caráter sacerdotal oriundo do único sacerdócio de Cristo. Vão além ao afirmar que o anglicanismo ensina e propaga a doutrina do sacrifício eucarístico e da realidade mística da Missa – “Estamos acostumados a chamar toda a Ação de Sacrifício Eucarístico”. E, ainda, na tentativa de validar o Ordinale anglicano, partem da argumentação de que nos ritos romanos mais antigos não havia menção a todos os sentidos do sacerdócio.

A resposta da Santa Sé veio com a confirmação da Apostolicae Curae, chamando a Igreja Anglicana para um sadio estudo doutrinal. Assim ocorreu nas conversações de Malinas, na Bélgica, entre 1921 e 1925, uma conferência mista entre anglicanos e católicos dirigida pelo Cardeal Mercier. O mais impressionante desse encontro foi a concordância anglicana, mesmo que informal, a Primazia de Honra do Papa, a presença real de Cristo na Eucaristia, a crença de que o Sacrifício Eucarístico é um verdadeiro Sacrifício, não um mero simbolismo e, por fim, a compreensão do mandato divino da Igreja e do episcopado.

Toda esse explicação gira em torno do que se denomina Alta Igreja (High Church). A High Church se caracteriza por se opor aos princípios essencialmente reformados, esse setor do anglicanismo aprecia o legado tradicional católico, pré-reforma, indo além ao pensar a Igreja com uma autoridade divinamente instituída, uma hierarquia que remonta aos Apóstolos, com Sacramentos que representam sinais visíveis da graça divina. A Alta Igreja não compreende o rompimento da Inglaterra com Roma como um atestado de condenação aos ensinamentos católicos, desse modo aceitam e louvam a Tradição e os Padres da Igreja. Os setores dessa ala se distanciam da idéia protestante de Igreja, para eles o anglicanismo é a via média, de fato. A High Church tem uma postura mais dogmática do que qualquer denominação protestante. Ainda vale frisar que a Alta Igreja carrega um espírito crítico a dependência da Igreja Anglicana ao Estado, se aproximando, mais uma vez, dos princípios católicos de mandato divino da Igreja. Os anglo-católicos, um quase sinônimo para os fiéis da High Church depois do Movimento de Oxford, compreendem a palavra “Católica” como a designação do nome da Igreja construída por Cristo, postura bem diferente da tomada pelos anglicanos da Baixa Igreja (Low Church).

A Low Church já tem uma pensamento essencialmente protestante, se enxergando como, de fato, uma Igreja reformada. Ela é herdeira das mais tradicionais heranças puritanas e calvinistas, e dela vinha os não-conformistas [2]. Desse modo subvalorizam o Episcopado, o Sacerdócio, os Sacramentos, o sentido sacrificial das ordens. Como já foi dito ao longo do artigo, o espírito anti-católico, dentro da Igreja Anglicana, levou ao fortalecimento dos setores protestantes que apreciavam a entrada da teologia reformada na Inglaterra como forma de minar a influência do ethos católico que ainda perdurava. Os evangélicos, como ficaram conhecidos os fiéis da Baixa Igreja, tem uma postura protestante. Existe, entre eles, uma radical defesa do primado da Escritura e da salvação unicamente pela fé, centralizando toda a sua espiritualidade em torno da Bíblia. A estruturação da Sola Scriptura contrastou com o próprio reconhecimento que o anglicanismo fazia não só da Tradição, mas também dos primeiros Concílios e dos escritos dos Santos Padres. A Sucessão Apostólica, a priori, era defendida por ambas as igrejas – afinal era comumente citada nos principais textos da Comunhão Anglicana -, entrentanto uma questão se colocava: como um Bispo evangélico poderia se pensar herdeiro dos Apóstolos se se opunha à própria tradição de origem apostólica? Desse modo, com esse distanciamento não só doutrinal mas estrutural da idéia de Igreja – para eles a Igreja só era “Católica” enquanto “Universal” – houve a perda do sentido real da idéia do episcopado.

Ademais, ainda existe a Broad Church, Larga Igreja, com uma pensamento liberal – modernista para ser mais claro – de entender a fé cristã. Assim sendo tenta enxergar os ensinamentos da religião de forma ampla, alargada, levando em conta toda a realidade contextual, uma adaptação da Verdade aos tempos modernos.

O que os anglicanos relativistas enxergam como sadias maneiras de compreender a fé cristã na verdade não passam do produto dos eternos paradoxos da Reforma Protestante. Dentro da Igreja Anglicana existem grupos que valorizam a Tradição e a consideram essencial no conhecimento da Verdade, vão além ao reverenciar a doutrina e a forma dogmática, acreditando na Sucessão Apostólica e na sua origem essencialmente Cristã. Além disso têm um entendimento dos Sacramentos e do Episcopado bem próximos da ótica católica. Do outro lado estão os setores que não só rejeitam a Tradição –  além dos Concílios e da Patrística – como têm um comportamento verdadeiramente reformado ao aderir formalmente ao modo protestante de pensar o cristianismo, ou seja, Somente a Escritura. Ademais, subvalorizam o episcopado e seu fundamento apostólico, deixando também de lado a importância dos Sacramentos enquanto sinais visíveis da graça de Deus. O mais irônico de tudo isso é que ambas as alas seguem e se fundamentam na mesma fé, crença que gira em torno do Livro de Oração Comum, dos Trinta e Nove Artigos da Religião e das Homílias Anglicanas. Na verdade o anglicanismo sempre nutriu, desde as suas origens, uma terrível tensão interna; de um lado existiam aqueles que rejeitavam qualquer ensinamento que remontasse ao catolicismo, desse modo abraçavam a teologia reformada, do outro tinham religiosos que, de fato, recusavam a obediência ao Santo Padre, mas não confundiam o anti-papado com anti-catolicismo, como se tudo que viesse de Roma tivesse um base anti-cristã. O equilíbrio conquistado se deu por meio de um rodízio de hegemonia dentro da estrutura anglicana. As antíteses coexistiam, e como? Através do desenvolvimento da descentralização do poder e da autonomia dada aos bispos. Desse modo cada diocese vivia uma espiritualidade e uma fé. Um fiel que saísse da Cantuária de William Laud e fosse para alguma diocese escocesa calvinista provavelmente não reconheceria a mesma Igreja.

Vejamos, por exemplo, a fórmula de absolvição impressa no ‘Prayer Book‘, livro síntese da fé anglicana, que é usada tanto por evangélicos, liberais e membros da Alta Igreja:

Nosso Senhor Jesus Cristo que deu à sua Igreja o poder de absolver qualquer pecador que sinceramente se arrepende e nele crê, perdoa as tuas ofensas pela sua grande misericórdia; e pela autoridade que me confiou, eu te absolvo de todos os teus pecados, em nome do Pai e do Filho e dp Espírito Santo. Amém.

Essa fórmula não se distancia em nada da forma católica. Fica claro que ela entende a Igreja como uma estrutura divinamente pensada e o Sacerdote como fazendo as vezes do próprio Cristo- in persona Christi – origem de todo o sacerdócio.

De todo o modo vemos, mais uma vez, o resultado das contradições essenciais do protestantismo. Dentro da própria Igreja Anglicana coexistem três óticas que compreendem a fé e a estrutura da religião de maneiras não só diversas, mas até contraditórias. Os setores da Alta Igreja e, especialmente, os anglo-católicos têm uma postura muito mais realista, desse modo não interpretam essa diversidade como uma riqueza cristã, mas como o sintoma de uma problemática encrustada no âmago do anglicanismo. O surgimento de movimentos e comunhões tradicionais, desde o séc. XIX, como o de Oxford [3] e a Comunhão Anglicana Tradicional [4], apenas foi o resultado do alto grau de decadência, com o fortalecimento dos setores liberais e evangélicos, que acentuou as contradições da Igreja da Inglaterra. Qualquer homem comprometido com Cristo enxerga com claridade essas antíteses na religião e, levando em conta a Unidade da Verdade, as interpreta como o atestado da falta de vivência sincera da fé – se existe contradição não existe Deus, já que Deus é a Verdade e a Verdade não se contradiz.

Com qual Igreja nós católicos dialogamos? Com a Igreja Anglicana que renega a Tradição e a Sucessão Apostólica, que nem sequer valoriza os Sacramentos, ou com a Igreja Anglicana que crê na Tradição e no mandato divino da Igreja e do episcopado, indo além ao enxergar na Missa um verdadeio Sacrifício? Se nem eles se entendem como nós iremos entendê-los?

[1] – “Statement of Cardinal Hume on the Ordination of Anglican Bishop Leonard as a Roman Catholic Priest” (in English). The Catholic Resource Network (Trinity Communications). 1994. http://www.ewtn.com/library/ISSUES/LEONARD.TXT. Retrieved on 11 October 2007.

[2] – Os não-conformistas eram protestantes ingleses que estavam insatisfeitos com o desfecho da reforma no Reino. Eram contrários à intervenção do Estado nos assuntos da Igreja e faziam radical oposição à manuntenção da hierarquia institucionalizada. Os grupos não-conformistas mais famosos foram os puritanos, quakers, batistas, presbiterianos, congregacionalistas e metodistas.

[3] – O Movimento de Oxford ou Tractarianismo (por causa dos seus escritos, os Tracts Times) foi um grupo formado na Alta Igreja basicamente por membros da Universidade de Oxford. Entre eles havia a sincera pretensão de demonstrar que a Igreja da Inglaterra descendia, diretamente, da mesma instituição criada por Cristo e guiada pelos Apóstolos. Os dois principais atores desse Movimento foram John Henry Neman e Edward Bouverie Pusey – daí que os fiéis filiados a proposta tractariana também fossem chamados de newmanites ou puseyites.

A forte secularização da Igreja, assim como a entrada do pensamento liberal e o fortalecimento do partido evangélico, foram os motivos que impulsionaram a estruturação do Movimento. Os líderes tractarianos buscaram aprofundar o conhecimento nas origens cristãs do anglicanismo, desse modo se aproximaram do catolicismo como forma de conhecer com mais intensidade a Tradição. Mesmo assim quase todos tinham uma postura radical anti-papado – menos Pusey. A Teoria dos Ramos se desenvolveu no seio do Movimento de Oxford, nela dizia que o catolicismo, o anglicanismo e a ortodoxia eram as ramificações da mesma Igreja – o que já é um erro, mas depois os modernistas pioraram colocando na “árvore” qualquer denominação dita cristã. Foi a partir do Movimento de Oxford que houve o renascimento das ordens religiosas na Igreja Anglicana, assim como o surgimento de um belo Movimento Litúrgico. Os “puseyites” centralizaram toda a vida espiritual e devocional ao redor da Eucaristia, e ainda tomaram certas tradições católicas. Os tractarianos faziam uma clara distinção entre os ensinamentos católicos dos primeiros séculos, aceitando-os integralmente, as crenças medievais, costumes e devoções populares corroboradas por Roma, rechaçadas por considerarem exageros e deformações da verdadeira doutrina, e o dogmatismo romano, que a depender de quem olhasse poderia ser apreciado com simpatia ou repudiado com escárnio. Newman, que não nutria a mínima simpatia por Trento, acabou não só reverenciando o Concílio como se convertendo ao catolicismo. Além do futuro Cardeal Newman vários outros membros do Movimento se converteram, entre eles; Henry Edward Manning, mais tarde o Cardeal Arcebispo de Westminster, Mons. Robert Hugh Benson, filho do arcebispo anglicano de Cantuária, Augusta Theodosia Drane, escritora e abadessa dominicana etc.

[4] – A Comunhão Anglicana Tradicional – Traditional Anglican Communion (TAC) – reúne igrejas anglicanas que juntas se separararam da Comunhão Anglicana sob o pastoreio do Arcebispo de Cantuária. A TAC corrobora a Declaração de St. Louis – Congresso convocado depois que a Igreja Episcopal dos EUA aprovou a ordenação de mulheres e fez uma radical reforma no ‘Livro de Oração Comum’ – e segue uma hermenêutica tradicional dos Trinta e Nove Artigos – vale frisar que tradicionalmente é uma interpretação legítima, afinal os religiosos da Baixa Igreja já partem de uma ótica calvinista ao ler os Artigos, mesmo eles não tendo essa conotação.A Comunhão Anglicana Tradicional não desassocia a Escritura da Tradição, além disso valoriza a teologia dogmática e o decoro litúrgico. Ademais, a TAC mantém um colégio de Bispos que é responsável pela eleição do Primaz.

A saída desses Bispos da Comunhão Anglicana foi motivada pela permissão da ordenação de mulheres e aceitação do homossexualismo, assim como a subvalorização da Tradição e a reforma litúrgica. Desse modo, esses pastores da Igreja da Inglaterra reconheciam que, por meio dessas mudanças, o anglicanismo rompia com todo o tradicionalismo apostólico.

Em 2007 a Comunhão Anglicana Tradicional, em nome de todos seus Bispos, religiosos e fiéis, pediu admissão na Igreja Católica. Assim disse arcebispo Hepworth, Primaz da TAC:

O Colégio dos Bispos da Comunhão Anglicana Tradicional (TAC), se reuniu em sessão plenária, em Portsmouth, Inglaterra, na primeira semana de outubro de 2007. Os Bispos e Vigários-Gerais aprovaram por unanimidade o texto de uma carta à Sé de Roma buscando plena e sacramental união. A carta foi assinada solenemente por todo o Colégio e confiada ao Primaz e a dois bispos escolhidos pelo colégio para ser apresentada à Santa Sé. A carta foi cordialmente recebida pela Congregação para a Doutrina da Fé. O Primaz da TAC definiu que nenhum membro do Colégio dará entrevistas até que a Santa Sé tenha considerado a carta e respondido

A respota da Igreja veio em 2008, por meio da Congregação para a Doutrina da Fé, que se mostrou solícita e pronta para analisar a questão. Sabemos que não é um acontecimento de pequenas proporções, estamos falando de uma Comunhão que congrega mais de 400 mil pessoas em todo o mundo. O processo de conversão deve ser cuidadoso, afinal as particularidades e riquezas tradicionais, presentes na TAC, herdadas dos tempos católicos, devem ser levadas em conta. Por isso, talvez, a resposta mais saudável para a Comunhão Anglicana Tradicional seja a criação de uma Prelazia Pessoal onde mesmo professando a fé católica em toda a sua plenitude manteriam a sua estrutura e sua individualidade litúrgica e espiritual.

Facebook Comments

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.