Igreja popular: que é?

Em síntese: O tema da Igreja Popular se associa aos movimentos de Cristãos para o Socialismo e congêneres, que se opõem à Igreja institucional e oficial para pleitear uma nova Igreja comprometida prioritariamente com a luta de classes e a transformação da sociedade. Essa Igreja popular já não teria as características da obra fundada por Jesus Cristo, mas seria uma sociedade humana, na qual as pessoas comprometidas com o Socialismo e a guerrilha se incitariam à sua tarefa sócio-política mediante fórmulas aparentemente religiosas. Os arautos dessa Igreja propõem uma releitura da Biblia a partir da realidade histórica contemporânea e uma reformulação da Liturgia de modo que sirva a denunciar “inimigos” e instilar o ódio classista. Professam a secularização dos valores mais genuinamente sagrados e um menosprezo pelo transcendental em favor de arregimentação de forças na luta ideológica. Na verdade, deve-sSe rejeitar a premissa da teoria da “Igreja popular”; não há simplesmente opressores e oprimidos na sociedade, como ensina o Marxismo, mas há uma gama de posições sociais. A Igreja, por sua vez, não abrange apenas uma classe (a dos pobres, identificados com o povo), mas ela congrega todos os filhos de Deus, qualquer que seja a sua posição social. Em qualquer classe da sociedade, sim, pode haver bons cristãos que honestamente cumpram a sua missão, seja como operários, seja como patrões. Mais ainda: a Igreja não pode ser fundada de novo, mas foi fundada por Jesus Cristo para todos os homens indistintamente; daí a ambiguidade da expressão “a Igreja que nasce do povo”.

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Não raro se ouve falar de novo modelo de Igreja, mais adaptado aos nossos tempos e especialmente às circunstâncias da América Latina: seria uma Igreja que nasce do povo e toma traços mais flexíveis, em sua doutrina e em sua disciplina, do que a Igreja oficial, hierárquica, institucionalizada. Esta proposta aparece em publicações várias, das quais algumas são mais explícitas, outras mais moderadas. Disto resultam dúvidas e interrogações no grande público, que se vê interpelado por novas teorias, cujo valor nem sempre e fácil perceber. — É ao que justifica uma explanação do tema em Pergunte e Responderemos, seguida de um comentário da problemática assim levantada.

1. Pano de fundo

Vão aqui propostas algumas das premissas da tese de uma “Igreja Popular”.

Sob a luz de uma análise marxista da sociedade, verifica­-se que os homens se repartem em duas grandes classes: a dos opressores, que são uma minoria detentora dos bens de produção, e a dos oprimidos, que vêm a ser a grande massa, empobrecida e explorada por aqueles.

Essa situação há de ser a chave sob a qual se deve ler a Sagrada Escritura e conceber a vida cristã. Ora a Escritura no Antigo Testamento apresenta a história do povo de Israel, escravizado e oprimido pelos egípcios e libertado do cativeiro pelo Senhor Deus; apresenta outrossim Jesus Cristo, que no limiar do Novo Testamento se mostrou rebelde contra as estruturas sociais da sua época, contestando as autoridades constituídas e, por isto, morreu na cruz como subversivo e revolucionário. Em consequência, há quem deduza da S. Escritura o incitamento a subverter a ordem social hoje vigente, tida como injusta, a fim de se chegar a uma sociedade sem classes, que respeite a igualdade fundamental de todos os homens. A libertação do povo oprimido seria a grande meta do cristão. A teologia construída a partir da consideração das injustiças sociais teria por critério de verdade a sua eficiência libertadora; a ortopraxis seria mais importante do que a ortodoxia. A Liturgia também, segundo este modo de ver, há de ser concebida em vista da praxis libertadora ou em vista da transformação da sociedade atual.

Como se vê, esta nova teologia apregoa uma releitura das Sagradas Escrituras, releitura a partir da situação concreta na qual o cristão se acha na América Latina: como ­os antigos cristãos repensavam Jesus a partir das circunstâncias de Tessalônica, Éfeso, Corinto…, deixando-nos a respectiva imagem de Jesus nos escritos do Novo Testamento, assim também nós deveríamos repensar Jesus a partir do momento presente latino-americano. O que as primeiras comunidades cristãs fizeram, deve ser repetido pelas comunidades cristãs contemporâneas, de modo a reinterpretar Jesus e sua mensagem para o homem latino-americano. Com outras palavras: não são os sinais dos tempos que devem ser interpretados à luz da Revelação Divina, mas, ao contrário, é a Revelação que há de ser interpretada à luz dos sinais dos tempos. A situação social de cada época é o “lugar teológico” por excelência; o homem de hoje é o princípio hermenêutico da Sagrada Escritura; a antropologia é o princípio a partir do qual se deve compreender o mistério de Cristo e da Igreja, assim como as doutrinas e instituições do Cristianismo.

Em consequência deste principio subjetivo, verifica-se que o conteúdo da fé se muda: esta significa aderir a Cristo revolucionário e segui-lo; ficam em segundo plano as verdades do Credo, que serão avaliadas de acordo com a sua eficácia transformadora da sociedade. São palavras de Diego Irarrazável, membro do movimento “Cristãos para o Socialismo”:

– “Descobrimos que não é possível um compromisso revolucionário dos cristãos sem uma transformação da fé” (Cristianos en el Processo Socialista, pp. 469s).

– “Creio honestamente que todos os que estamos aqui reunidos, fomos convertidos… Ultimamente vivemos uma experiência nova de conversão. Não mudaram apenas alguns compromissos políticos ou algumas posições ideológicas. Foi-­se mudando também a nossa fé” (p. 476).

A conversão assim entendida é “conversão ao povo e ao processo revolucionário”:

– “Assumir a praxis subversiva dos explorados que procuram construir uma terra nova, é viver a experiência da conversão evangélica, é encon- trar uma nova identidade humana e cristã” (Documento de Québec 1975, nº 17; ver bibliografia).

-“Converter-se é comprometer-se com o processo de libertação dos pobres e explorados” (Gustavo Gutierrez, Teologia de la Liberación, Salamanca 1974, p. 268).

– “A prática da fé está implícita na prática revolucionária. Alguém é tanto mais cristão quanto mais solidário com as lutas do povo em prol da sua libertaç?o” (Los Cristianos y el Socialismo 1973, p. 244).

As concepções até aqui expostas implicam alteração do conceito de História Sagrada. Classicamente distinguem—se a História da Salvação (história do povo de Deus da Antiga e da Nova Aliança) e História Profana… Ora a nova teologia da libertação afirma que toda a História da Humanidade é História da Salvação, guiada pelo Espírito Santo:

– “A unidade da história humana é um tema fundamental na teologia latino-americana. É uma superação do dualismo antagônico que separa a história profana ?— a das realidades temporais ou das sociedades políticas — de história sagrada ou da salvação, e que reduz esta a uma simples identificação com a história de Israel ou da Igreja. A história humana é concebida, na reflexão teológica latino-americana, como a única história. Toda ela é história da Salvação” (Francisco Vanderhoff e Miguel Argel Campos, La Iglesia Popular: condiciones políticas-ideologicas para su surgimiento, em “Contacto”, Mexico, dezembro 1975, p. 50).

Esta tese acarreta consigo, segundo G. Gutierrez e seus discípulos, a afirmação de que a salvação é universal: não somente todos os homens podem salvar-se porque foram chamados por Deus a tanto, mas, de fato, todos se salvarão! ?? Ora tal proposição contraria a constante Tradição cristã e a doutrina da Igreja fundamentada nos escritos do Novo Testamento. Confronte Mateus 25,31-46, onde Jesus distingue dois tipos de sentença sobre os homens no final da história.

Estes poucos traços da nova teologia são suficientes para que possamos situar o que se chama “Igreja Popular”.

2. “Igreja Popular”

Se a conversão dos cristãos consiste em voltar-se para a transformação das atuais estruturas sociais, entende-se que deva surgir uma nova Igreja dita “popular”, na qual se congreguem todos os “novos cristãos” assim convertidos:

– “O processo revolucionário mesmo torna possível uma revolução dentro da Igreja… Neste momento, mais do que em outras épocas, a Igreja deve ser recriada” (Los Cristianos y el Socialismo, p. 239S).

A Igreja nova há de se opor à Igreja oficial, hierárquica, institucional, da qual se distinguirá por sua índole eminentemente flexível e informal. A nova Igreja terá suas características, que podemos assim catalogar:

2.1. A ortopraxis acima da ortodoxia. Ateísmo

Este binômio já foi introduzido nas considerações antecedentes. Significa que o Credo pode ser revisto e, consequentemente, adaptado às concepções políticas dos cristãos. Há mesmo quem fale de um Cristianismo sem religião ou ateu, porque, sem mais, associado à filosofia materialista de Karl Marx. São numerosos os testemunhos de teólogos ou, melhor, de ideólogos que apregoam tal proposição:

– “Dada a primazia da ação revolucionária os cristãos (…) aceitam a autonomia da ciência e a ação revolucionária. Neste sentido, é preciso purificar a fé. A construção da sociedade socialista é uma tarefa não religiosa e supõe um Cristlanismo sem religi?o” (Los Cristianos y el Socialismo, Primer Encuentro Latinoamericano, 1973, p, 209).

O Cristianismo sem religião pode ser mesmo um Cristianismo ateu (paradoxo), segundo o ex-sacerdote Pablo Richard e seus discípulos. Eis como este autor se expressou numa entrevista concedida à revista panamenha Diálogo Social, de março de 1982, pp. 49-52:

– “O encontro com Deus só é possível a partir de uma prática que tenha certa exigência de ateísmo e de ausência de Deus” (p. 50).

– “Dizer ateísmo é dizer prática política de libertação. É exatamente a mesma coisa. Os cristãos têm que assumir esta prática com todas as suas implicações. A crítica marxista à religião, somos nós, os cristãos, que a devemos viver em primeiro lugar. Para amadurecer na fé, e preciso ser ateu, precisamente” (ib. p. 51).

A tese do autor, muito sublinhada pela revista, era esta: “Para amadurecer na fé, é preciso ser ateu no sentido marxista”.

O próprio Pablo Ríchard confessa:

– “Percorro as Universidades, os colégios, etc., e lhes faço discursos de marxismo, leninismo, etc. O que mais impressiona os jovens, e que lhes digo: ‘Bem, companheiros… Há dez anos fiz uma opção marxista-leninista, que implicou para mim uma enorme riqueza de espiritualidade cristã…'”

Como se vê, esse ateísmo vem a ser algo de ambíguo. O fato é que P. Richard reconhece a necessidade de não o professar perante as massas, pois estas não aceitariam integrar-se num movimento ateu:

– “Os movimentos marxistas conseguem resolver o problema da mobilização popular quando conseguem resolver devidamente o problema religioso. Quando o povo verifica que as vanguardas são atéias, ele as rechaça como alheias (…) É inútil (…) A revolução compreendeu que não há pior serviço à revolução do que declarar-se ateu” (ib. p. 52).

O “ateísmo” de Pablo Richard assume outro nome, a saber:

2.2. Secularismo

Entende-se por secularismo o apagamento do nome de Deus e dos valores sagrados que equivale a ignorar a Deus ou mesmo negar a Deus. Assim, por exemplo, se exprime Clodovis Boff:

– “O que salva, não é o culto, mas a justiça; não é a religião, mas o amor. Por isto os que trilham a senda da justiça, caminham pela senda do Reino de Deus, A religião ou o culto não existem propriamente para salvar, mas para manifestar a salvação e para ajudar o homem a entrar no caminho da justiça, que é o que leva à salvação” (Revista Vozes, Petrópolis 1982, p. 8).

– “Sempre que os povos procuram a dignidade, os direitos, a justiça, estão na lógica do plano salvífico de Deus” (ib.).

Segundo o autor, o que Cristo veio ensinar e fundar, não foi tanto uma religião quanto um estilo de vida, um modo de ser e de agir (ib. p. 10). Isto quer dizer que os sacramentos são dispensáveis, pois não comunicam a graça salvífica, mas apenas a manifestam. Um homem, ateu ou pagão, que se empenhasse pela justiça social, estaria no caminho da salvação. Esta proposição, além do mais, tem sabor pelagiano, pois atribui à natureza humana a capacidade de conseguir, por si só, a salvação eterna.

2.3) Aliança com o Marxismo

De quanto até aqui foi dito, depreende-se que está na lógica da “Igreja Popular” contrair aliança com o Marxismo (às vezes, também designado por “Socialismo”, como na expressão “Cristãos para o Socialismo”). Tenham?se em vista os seguintes depoimentos:

– “A opção pelo Socialismo marxista, por mais que isto pese e amedronte a Igreja institucional, é para nos, cristãos do século XX, uma necessidade coerente com a nossa atitude de classe e nossa fé evangélica” (Cristãos para o Socialismo, Documento de Ávila, janeiro de 1973. Publicado por “Contacto” nº 5, outubro 1973, nº 52).

– “Quando os cristãos para o socialismo falam de ‘opç?o marxista’, não a entendem no sentido do sentimentalismo, mas porque encontram na interpretação marxista da realidade uma explicação segura da sua própria experiência (…) Como final da evolução de nossa fé, chegamos a aceitação do marxismo como teoria e praxis indispensável à realização concreta do nosso amor cristão” (Fierro/Mate, Cristianos por el Socialismo. Ed. Verbo Divino, 1975, pp. 158.201).

Quem não abraça o Marxismo, deixa—se ficar numa posição reformista (reformadora da sociedade atual) e não revolucionária. Tal é o caso dos que seguem a Doutrina Social da Igreja Católica: são também ditos “terceiristas”, porque acreditam numa via que não seja nem o capitalismo liberal nem o marxismo coletivista:

– “Rejeitamos as tentativas alternativas políticas ‘cristãs’ entre o capitalismo e o socialismo” (Cristianos por el Socialismo de Puerto Rico, documento de novembro de 1975, publicado em Liaisons Internationales, nº 9, 1976, p. 38).

– “Queremos recusar definitivamente a pretensão, amplamente difundida no mundo cristão, de sermos portadores de um projeto especifico de sociedade, expresso na chamada ‘Doutrlna Social Crist?’. De tato, parece-nos ilusória e pretensão de querer deduzir do Evangelho, em nome do primado do espiritual, um comportamento político” (Documento de Bolonha, 1973, publicado por Fierro/Mata, Cristianos por el Sociallsmo 1975, p. 335).

Outra característica do movimento em prol de uma Igreja Popular é o desejo de:

2.4) “Implosão” da Igreja oficial

Muitos daqueles que procuram transformar a Igreja ou criar uma nova Igreja, não querem retirar—se da Santa Igreja, onde foram batizados e nutridos espiritualmente, mas desejam mudar a Igreja tornando difícil e penosa a subsistência dos respectivos pastores, na esperança de que estes acabem por retirar?se. É o que se depreende de numerosas declarações dos arautos da “nova Igreja”:

– “A nós interessa recuperar essa zona da Igreja que está com o poder. Nós não sairemos da Igreja. Tornar-lhes-emos a vida impossível, para que saiam eles (…) Interessa-nos viver esse conflito no interior da Igreja (…) É preciso reproduzir o conflito que Cristo enfrentou e institucionalizá-lo; haja quem compreenda que aqueles que querem continuar dentro da Igreja têm que se converter; se não o quiserem, que se vão, mesmo que seja um bispo!” (Pablo Filchard, entrevista citada, p. 51).

Este texto põe em relevo o propósito de suscitar dentro da Igreja um conflito permanente. Frei Betto (Alberto Libânio O.P.) observa por sua vez:

– “Somente através da luta interna se consegue mudar a Igreja” (aos participantes do Encontro de Teologia de Manágua em 1980, Apuentes para una Teologia Nicaraguense. Manágua 1981, p. 79).

Ou ainda, conforme os Cristãos para o Socialismo:

– “Os confrontos que nossos movimentos têm tido com autoridades eclesiásticas hão de ser considerados na perspectiva mais ampla das nossas responsabilidades na luta popular. Neste setor predomina, com poucas exceções, a tendência a não nos deixarmos isolar no interior das igrejas, mas também a de não nos deixarmos recuperar nem no interior nem no exterior das mesmas por uma orientação procapitallsta e interclassista” (Documento da Comissão Quinta do Segundo Encontro Internacional. Québec, abril de 1975, nº 4. Reproduzido no Boletlm nº 13 do Grupo SAL de Medellin, pp. 3-15 e nº 14, pp. 9-12).

Interessa salientar nesta Declaração duas atitudes que norteiam o comportamento de muitos membros da Igreja dados à contestação; “não nos deixarmos isolar”, “n?o nos deixarmos recuperar”.

Muito a propósito o Papa Paulo VI, em sua Exortaç?o “Paterna cum benevolentia” de 08/12/1974, lamentava os focos de infidelidade que atualmente surgem na Igreja e que infelizmente “procuram solapá-la por dentro”. E acrescentava:

– “Promotores e vítimas de tal processo pretendem permanecer na Igreja, com os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de expressão e ação que os outros, a fim de atentar contra a unidade da Igreja” (nº 3).

Já se tem observado, e com muito acerto: em épocas passadas, os que pretendiam destruir a Igreja, eram confessadamente anticatólicos; hoje em dia, os depredadores da “Igreja renovada” estão no próprio bojo da Igreja e se dizem arautos da “Igreja renovada” — o que é foco de graves mal-entendidos para o Povo de Deus.

2.5) Pobreza doutrinária

Compreende-se que a prioridade dada à práxis sobre o “Logos” acarrete um esvaziamento da mensagem teológica entre os arautos da Igreja popular. Eis como o fato é analisado por D. Boaventura Kloppenburg, bispo auxiliar de Salvador-BA:

– Uma das atribuições do povo-pobre-oprimido-­conscientizado seria: ser o sujeito da própria Teologia (…) Por esta razão, encontramos entre os fautores da nova Igreia Popular uma generalizada atitude de desdém para com os teólogos que, segundo eles, não estão comprometidos e muito menos estão identificados com o que eles chamam ‘povo’. O desprezo para com os teólogos acarreta a desestima da própria Teologia elaborada pelos desdenhados teólogos. Resultado: já não têm nem desejam ter uma boa, sã, refletida e madura Teologia. Em verdade, nem têm Teologia.
Este é certamente o motivo por que alguns teólogos da libertação fazem alarde da sua vida com o povo-pobre-oprimido-conscientizado-lutador. Eis, a seus olhos, um título que vale muito mais do que qualquer título acadêmico, que, de resto, quase sempre lhes falta…
Tal é a libertação da Teologia. Já não querem ser professores nem ensinar com seriedade a metodologia, a competência e o preparo exigidos nas severas Universidades do Velho Mundo. Seria um método bancário. Tudo vem do povo e de seus privilégios epistemológicos, proféticos e missionários. O povo pensa entender a Palavra, não se engana, não peca. Principalmente ele realiza a autêntica praxis, a única que vale. O povo é transformado em mito. Quem fez uma opção de classe em favor de uma e contra a outra, tem as portas abertas para a verdade. Já não precisa de estudo. É o verdadeiro teólogo. Os que estudaram Teologia antiga, ideologizada, trataram de esquecê-­la para aprender com o povo, que é o novo magistério. ‘Fazer um curso para ser diácono é um método opressor’ (J. Comblin). O que ilumina é a praxis libertadora e revolucionária. A partir da praxís, com a praxis, na praxis e pela praxis, são capazes de propor em duas páginas uma ‘nova’ Teologia. Como podem rejeitar em cinco linhas toda uma Teologla de séculos, alegando que é ‘européia’? Talvez seja este o motivo pelo qual temos agora uma verdadeira invasão de Teologias na América Latina, mas Teologias tão superficiais, com afirmações tão pouco sérias e científicas, que o leitor chega a perder a sua própria capacidade admirativa ao ver tantas bobabens e simploriedades” (p. 88s).

Estes dizeres, sarcásticos como são, não deixam de pôr em relevo um fato: muitos escritores, movidos por critérios diferentes do da Palavra de Deus, ou seja, agitados por preconceitos ideológicos e passionais, escrevem na América Latina sobre assuntos teológicos como se estivessem cultivando a Teologia; na verdade, o que desejam é pôr a serviço da transformação social o enorme patrimônio da mensagem de Jesus Cristo e da fé cristã. Como exemplo, entre outros, dessa distorção, está também o fato de que, para eles, a Bíblia vem a ser preponderantemente o Antigo Testamento, na medida em que este propõe questões da política do povo de Israel; a visão cristã da política que decorre de uma leitura do Novo Testamento (especialmente do Apocalipse) lhes é estranha.

2.6) A história contemporânea e a Bíblia

Para os fautores da Igreja popular, a história contemporânea vem a ser canal pelo qual Deus se revela, como a história de Israel descrita pela Biblia foi canal de revelação. Não há distinção entre a História Sagrada e a História Profana, como já notamos [anteriormente].

Um dos testemunhos mais explícitos e recentes desta tese é o Encontro Latino-Americano de Teologia realizado em Manágua (Nicarágua) de 8 a 14/09/1980 com a presença de quarenta participantes provenientes do Brasil, do Chile, do México, do Peru, de El Salvador, da Guatemala, da Nicarágua e da Espanha[1].

Os participantes do Encontro exaltaram a Igreja popular como dimensão específica do movimento popular revolucionário da Nicarágua. Esta Igreja popular, como realidade já existente, é contraposta à Igreja oficial ou hierárquica, como se depreende do título publicado à p. 69 do volume de Atas: “Relações Igreja Popular ? Igreja Estabelecida Tradicional”. Os conferencistas do Encontro afirmam a existência de tensões entre uma e outra. Tais tensões são conscientemente provocadas pela “Igreja popular”, já que os membros desta estão persuadidos de que “a luta de classes atravessa a Igreja-instituiçäo” (p. 69) e “somente através da luta interna se consegue mudar a Igreja” (p. 79).

A nova “Igreja popu1ar” necessita de “nova Teologia”: “(Comprovamos) que o modelo de Teologia utilizado tradicionalmente pela Igreja não corresponde às necessidades consideradas pela Praxis Cristã Revolucionária” (p. 190). Por conseguinte, a revolução “urge uma releitura militante e revolucionária da Biblia. Urge criar uma teologia a nível popular” (p. 196). Esta nova teologia deve ser elaborada “a partir das bases e com as bases” (p. 196). E deve partir da praxis revolucionária. Pois “o texto agora é a praxis” (p. 165), como explica José I. González Faus S.J., o qual acrescenta: aquele que na sua teologia não parte da praxis revolucionária não pode fazer teologia, simplesmente por falta de texto. A nova teologia admite, como condição essencial, a necessidade de captar a novidade do histórico (p. 73). A tarefa teológica propriamente dita é assim concebida: “Auscultar, discernir e articular a palavra, que Deus está pronunciando hoje em e através da Nicarágua” (p. 73). Aliás, na p. 71 o redator do texto declarara que “o dado teológico mais importante é o triunfo da revolução sandinista (…) Através deste aparecerá a nova Palavra de Deus sobre a Nicarágua como realidade histórica global, e sobre as igrejas cristãs da Nicarágua”.

Como se vê, a Igreja Popular admite “uma nova palavra de Deus”. Jon Sobrino condena como fundamentalismo bíblico afirmar que a revelação de Deus se realizou adequadamente uma vez por todas. Seria também fundamentalismo bíblico pensar que a Igreja conta com o depósito da Revelação divina; na verdade, Deus estaria “pronunciando agora uma palavra atual e novidadeira” (p. 116), como a pronunciou nos tempos bíblicos; por conseguinte, a história da revelação de Deus aos homens não acabou; antes a revelação atualmente feita pela história é ainda mais abalizada e exigente do que a revelação ocorrida nos tempos bíblicos. “Não estar à escuta dessa possível nova palavra seria o pecado fundamental contra o Deus da história” (p. 117). Confessar Deus como o Deus da história significa “escutar a palavra concreta tal como esta veio a ser. Quem crê que Deus já disse tudo, pode ser que nada tenha escutado” (p. 118). Nesta mesma página Jon Sobrîno proclama em tom categórico:

– “Se a Igreja não admite, ao menos em princípio, a possibilidade de uma nova palavra de Deus na história atual e se não admite a exigência de encarnar-se na história, tal como esta vem a ser, a fim de escutar a palavra, então, com todos os seus dogmas, sua doutrina social, seu Direito Canônico, a tradição dos Padres e seus teólogos oficialmente reconhecidos, inclusive com os livros da Revelação sagrada, pode ser que esteja desobedecendo precisamente àquela palavra que Deus quer que Ela ouça; pode estar impedindo que Deus seja Deus e Senhor soberano da história. E isto, que é tentação perene de todo homem e concupiscência típica da Igreja, mas também possibilidade de graça e encarnação, se torna mais patente em momentos de mudança e de processos revolucionarios” (p. 118).

Por isto Sobrino julga que a Igreja oficial “tem medo de Deus; tem medo de pôr-se diante de Deus e ouvir a sua palavra” (p. 108).

À guisa de complemento, transcrevemos aqui em tradução portuguesa trechos de uma leitura latinoa-americana da Biblia da autoria de Everardo Ramirez Toro, ex-Re1igioso, ex-Sacerdote e ex?Professor de Teologia. Este publicou um “Evangelho Latino-Americano de la Liberación” como “nova tradução do Evangelho de Jesus”. O autor está convencido de que a sua versão devolveu ao Evangelho a sua feição original e resgatou a pessoa de Jesus de todas as mistificações que lhe foram impostas através dos séculos. “Esta será a primeira vez que lerão o Evangelho em seu sentido originário sem confusões nem desvios interesseiros” (ob. cit., p. 10).

O nascimento de Jesus é assim apresentado:

– “Antes que José coabitasse com Maria, a mãe de Jesus, que ele tomara como esposa, verificou que ela estava grávida. Josè (…) resolveu abandoná?la sem o dizer a quem fosse. Todavia durante a noite teve um sonho e ouviu uma voz que lhe dizia: ‘José, filho do povo, não temas tomar a Maria por esposa, porque é inocente e foi violada'” (ob. cit., p. 13).

Na p. 58 os adversários de Jesus fazem referência à origem obscura de Jesus e dizem: “Nossa origem é limpa e não como a tua: és filho natural e nem sequer se sabe quem é teu verdadeiro pai”. Ao que Jesus responde: “Quem de vós pode censurar-me por alguma coisa, fora a minha origem, da qual não sou responsàvel?”

À p. 49 lê-se que se aproximaram de Jesus uns sacerdotes tradicionalistas para submetê?1o à prova e lhe perguntaram: “Para a Santa Mãe Igreja, o matrimônio é indissolúvel; mas muitos jovens sacerdotes, desses que são chamados revolucionários, defendem o divórcio em caso de incompatibilidade de temperamentos. Que dizes tu a isto?” Jeesus respondeu: “Vocês, hipócritas, pensam que uma cerimônia religiosa pode unir dois seres por toda a vida, sem nada mais levar em conta? Tolos! A única coisa que pode unir inseparavelmente um homem e uma mulher, é o amor. Se dois seres não se amam nem se compreendem mutuamente, por que hão de continuar unidos? Que providenciem ao bem futuro de seus filhos e se separem!”

Na p. 83, o autor informa que Jesus foi morto por um golpe de metralhadora e que colocaram o cadáver de Jesus com uma metralhadora nas mãos para insinuar que se suicidara. Na última página é mencionada a “ressurreição”: o povo saiu às ruas “proclamando que Jesus, o libertador, vive no povo e no coração de todos aqueles que amam a justiça social e procuram a libertaç?o”.

à guisa de observação final: a palavra “libertação (1iberación)” e seus derivados ocorre 348 vezes em 78 páginas, isto é, na média de cinco vezes por página!

Este exemplo de releitura do Evangelho abusivamente se denomina “latino-americano”. Na verdade, parece inspirado de preconceitos que desrespeitam o significado originário do Texto Sagrado. O estudioso tem o direito de perguntar se houve aí um mínimo de seriedade e de objetividade frente ao texto bíblico. Este não deve ser lido a partir de premissas pré?estabelecidas nem latino-americanas nem materialistas, mas, como diz o Concilio do Vaticano II, “é preciso estudar com atenção o que os autores queriam dizer e o que Deus queria dar a conhecer mediante tais palavras” (Constituição Dei Verbum n° 12). Sem a observância desta regra fundamental, o leitor cai no subjetivismo; não faz exegese ou explanação do texto, mas manipula?o em favor de uma tese preconcebida, caindo em conclusões arbitrárias e fantasiosas ou mesmo grotescas e irreverentes, como aquelas que o texto atrás transcrito formula!

2.7) A Liturgia “apropriada”

Em todos os tempos a Liturgia foi utilizada pelas correntes heréticas para veicular erros doutrinários. Em nossos dias os movimentos em prol da “Igreja popular” se servem dela para incutir ao povo concepções ideológicas, inspiradas muitas vezes por mentalidade que não é cristã. Aliás, este aproveitamento da Liturgia faz parte do programa de ação formulado pelos Cristãos para o Socialismo em sua Jornada Nacional de novembro de 1972 no Chile. Assinalava “a urgência de criar novas formas litúrgicas a partir do compromisso revolucionário, exprimindo os valores que ocorrem nas lutas e organizações políticas do povo. Por conseguinte, a Eucaristia não se celebra segundo fórmulas ou receitas, mas é a expressão viva de um povo que luta unido contra os opressores. Assim vai?se gerando uma nova espiritualídade, com referência permanente ao compromisso revolucionário e a um encontro sempre surpreendente com Cristo libertador” (citado por Pablo Richard, em Cristianos por el Socialismo. História y Documentatión. Ed. Sígueme 1976, pp. 255-257).

– “Tal liturgia, cuja forma depende da criatividade dos cristãos, dista muito da liturgia cíclica e histórica, pois é a celebração da entrega a Deus no acontecer histórico. Esta primeira apropriação de valores emancipativos, surgidos da nova praxis classista, forma o substrato de uma nova vivência e simbolização cristã de uma Igreja do povo” (Los Cristianos por el Socialismo y la Iglesia. Documento de la Comision Segunda del Segundo Encuentro Internacional de Cristianos por el Socialismo. Québec, abril de 1975. Reproduzido no Boletim nº 12 do Grupo SAL de Medellin, pp. 3-7).

Em 1976 foi publicado em Bogotá o livro intitulado “Oración desde la Praxis Liberadora” (Estudios Encuentro nºs 3-4, 220 pp.). É destinado a pessoas que tenham feito sua opção classista, e que são incitadas a ver inimigos em toda parte. Das 24 Orações Eucarîstîcas ai apresentadas vão extraídos alguns trechos:

– Oração Eucarística da “Igreja para os Pobres”: “Oremos por uma Igreja pobre e dos pobres, livre de estruturas”. “Livra-nos, Pai, de nossas seguranças doutrinárias e jurídicas. Faze-nos radicais no anúncio do teu Evangelho (…) Livra também os pastores de toda resposta pré-fabricada (…) de toda concordata (…)”

– Oração Eucarística da “Humanidade Peregrina”: “Ajuda-nos, Pai, para que a igreja não ponha sua preocupação fundamental na ortodoxia da doutrina, nem no perigo do ateísmo nem na obediência à autoridade”.

– Oração Eucarística “O Deus que sempre nos inquieta”: “Acolhe, ó Pai, nossa oração por todos aqueles que fizeram da Igreja um lugar de culto adormecedor; por todos aqueles cujas práticas piedosas, observâncias rituais, indagações sobre Deus nunca os levaram a desinestalar-se nem a comprometer-se com os pobres; (…) por todos os adormecidos no sagrado, dirigentes de um Cristianismo soporífero, incapazes de maldizer os ricos (…) Ajuda-nos a deixar-nos evangelizar pelos pobres”.

Como se vê, tais fórmulas repetem geralmente as mesmas ideias e instilam animosidade ou ódio, sem recear fazê—lo em estilo de oração — o que é grosseiro abuso. Aliás, o episcopado colombiano publicou aos 21/11/1976 um documento importante sobre as tendências socialistas de cristãos em que dizia que “a instrumentalização da Liturgia é talvez o maior dos abusos que contem. A Eucaristia deixou de ser, para eles, o sacrifício e o banquete do Senhor, para converter-se em meio de ‘conscientização’, em instrumento de luta revolucionária, em ocasião de arengas políticas. Por isto nada os impede de burlar todas as normas da celebração e elaborar a seu critério orações, fórmulas e cânticos que destroem o sentido sagrado da Liturgia e a convertem em ato de protesto e convite à revolta. A Eucaristia assim profanada já não edifica a comunidade dos irmãos, mas aguça o ânimo dos camaradas” (XXXII Assamblea Plenaria: Identidad Cristiana en la Acción por la Justicia. SPEC, Bogotá, 1976, nº 39).

Estes textos, assaz provocadores, serão comentados, a seguir, quando propusermos reflexões sobre a Igreja popular.

3. Refletindo…

As teses expostas levam?nos a rever três pontos importantes:

3.1. Igreja popular

Existe uma só Igreja de Cristo: deriva?se do próprio Cristo, que a entregou aos Apóstolos encabeçados por Pedro; recebeu do próprio Senhor Jesus a certeza da perenidade através dos séculos (“as portas ou forças do inferno não prevalecerão contra Ela”, Mateus 16,18); recebeu outrossim a promessa da assistência de Cristo e do Espírito, a fim de que não deturpe a mensagem do Evangelho, mas, ao contrário, a explicite e desdobre oportunamente através dos séculos, de acordo com as circunstâncias de cada época (Mateus 28,18-20; João 21,15-17; Lucas 22,31s).

Por conseguinte, não é licito a quem quer que seja, fundar outra Igreja de Cristo; esta será sempre espúria ou obra puramente humana; redundará numa agremiação de pessoas que terá a efêmera duração de toda obra humana.

A única Igreja de Cristo tem seus pastores ou sua hierarquia, aos quais Cristo prometeu assistência; “Estarei convosco até a consumação dos séculos” (Mateus 28,20). Isto quer dizer que não pode haver autêntica Igreja fora da hierárquica, oficial, institucional. Cristo não prometeu sua infalível assistência aos discípulos mais zelosos ou mais voltados para os pobres, mas, sim, aos Apóstolos e aos seus legítimos sucessores no pastoreio do rebanho. Quem, portanto, se separa da Igreja institucional, separa?se do próprio Sacramento do Cristo; já não tem certeza de estar fazendo a obra do Cristo. Por isto seria coerente com sua atitude se deixasse de atribuir à nova agremiação o título de “Igreja”.

Não há dúvida, porém: na única Igreja de Cristo há elementos acidentais, reformáveis…, que podem ser retocados em vista das sucessivas épocas da história. Tais alterações, contudo, não deverão afetar a substância da fé e da instituição jurídica da Igreja.

3.2. Aliança com o Marxismo Não há compatibilidade entre Cristianismo e Marxismo. Este é visceralmente ateu e materialista, de modo que cedo ou tarde passa a combater os cristãos que lhe queiram dar apoio. Tal é o caso nítido da Nicarágua, por exemplo, onde os cristãos apoiaram a revolução sandinista?marxista e hoje se vêem perseguidos por esta, desde que não queiram renunciar a seus legítimos direitos de cristãos. A decepção sofrida pelos cristãos socialistas da Nicarágua levou não poucos deles a se voltar recentemente contra o sandinismo: tal é o caso do “Comandante Zero” ou Eden Pastora, o de Alfonso Robelo (que na época da insurreição mobilizara os empresários contra Samoza), o de Violeta Chamorro, viúva de Chamorro, proprietário de “La Prensa”, assassinado pela ditadura somozista,… para não falar de D. Miguel Obando Bravo, arcebispo de Manágua, que foi o primeiro a alertar contra os abusos do sandinismo marxista.

Por conseguinte, não são mais do que dialética vazia as afirmações de que, para ser cristão autêntico, é preciso fazer opção pelo Marxismo. Um cristão genuinamente marxista já não é cristão.

3.3. Interpretação da Biblia e história

A história bíblica, que vai de Abraão (1850 a.C. aproximadamente) até a geração apostólica, é inconfundivel, pois vem a ser o tempo da revelação de Deus aos homens; através dela são transmitidas aos homens as grandes verdades da fé e as grandes linhas da conduta do povo de Deus. Após a geração dos Apóstolos, não há nova revelação pública; os cristãos vivem do depósito da história bíblica, referindo as suas diversas situações aos padrões contidos nesta. A consciência desta verdade contribui para relativizar o significado da história posterior aos Apóstolos, que não pode ser tomada de maneira absoluta como escola de comportamento dos cristãos.

Isto, porém, não exclui que a Biblia seja lida e relida pelos cristãos através dos séculos para encarnarem a sua mensagem nas sucessivas fases da história; conserve—se, porém, a comunhão com a Igreja de Cristo no tempo e no espaço. É o que declara a Comissão Teológica Internacional em seu documento sobre o pluralismo teológico (1972):

– “Por causa do caráter universal e missionário da fé cristã, os acontecimentos e as palavras reveladas por Deus devem ser sempre pensados, reformulados e de novo vividos no interior de cada cultura humana, se se quer que deem resposta verdadeira aos problemas que têm sua raiz no coração de cada ser humano e que inspirem a oração, o culto e a vida cotidiana do povo de Deus. O Evangelho de Cristo assim leva toda cultura à sua plenitude e a submete, ao mesmo tempo, a uma prática criativa. As igrejas locais que, sob a direção de seus pastores, se aplicam a esta árdua tarefa de encarnação da fé cristã, devem manter sempre a continuidade e a comunhão com a Igreja universal do passado e do presente” (citado por B. Kloppenburg, Iglesia Popular, pp. 65s).

De resto, não há quem não veja nos livros e pronunciamentos dos fautores da Igreja popular a intenção (consciente ou inconsciente) de utilizar vocábulos e valores cristãos para propugnar uma causa que não é cristã, mas anticristã, porque atéia e materialista; voltam sempre certas características constantes, como a falta de amor à Igreja, o menosprezo da doutrina e do aprofundamento da fé, a animosidade para com as autoridades, o desrespeito, enfim, por tudo que seja transcendental ou vertical.

Infelizmente a simulação da ideologia marxista sob a capa de Cristianismo, como a propõem os fautores da Igreja popular, tende a iludir não poucos cristãos desejosos de atender aos mais pobres, sem apostatar explicitamente da fé cristã. Tal sedução não ocorrerá com tanta frequência desde que haja nítido conhecimento da Doutrina Social da Igreja. Esta se volta para a questão social como o Marxismo se volta, sem, porém, propugnar o totalitarismo ou o coletivismo marxista, que desrespeita a pessoa humana. É certo que o Cristianismo é avesso a toda forma de injustiça e proclama a necessidade de transformação de todas as estruturas sociais iníquas; e isto, com mais acerto e retidão do que o Marxismo, porque a mensagem cristã toma por base da sua proclamação a mais sólida e eficiente de todas as premissas: o plano de Deus.

Não há dúvida: se o homem não respeita a Deus, também não respeita ao homem nem provê ao verdadeiro bem da sociedade, como ensina a experiência da Polônia e de outros países sufocados pela ideologia marxista.

A respeito pode-se ler KLOPPENBURG, Boaventura, Iglesia Popular. Bogotá, 2ª ed., 1982. Às págs. 11-15 deste livro é indicada ampla bibliografia emanada dos grupos de Crist?os para o Socialismo e análogos.

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NOTA

[1] As atas respectivas foram publicadas com o título “Apuntes para una Teologia Nicaraguense”. San José, Costa Rica, 1981, 198 págs.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 267, págs. 133-149, março-abril/1983.

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