Jesus Cristo deve ser considerado um Mártir, um Santo, um Profeta ou um Líder?

– “Jesus Cristo deve ser considerado um mártir, um santo, um profeta ou um líder?” (Delvaux – Rio de Janeiro-RJ).

A Jesus Cristo competem, sem dúvida, os títulos acima; não bastam, porém, para explicar a sua personalidade. Os escritos do Novo Testamento, assim como a Tradição cristã, O apresentam como verdadeiro homem e verdadeiro Deus — Deus feito homem.

Este ensinamento poderá parecer produto da fantasia dos primeiros discípulos. Que nos garante a sua veracidade?

Em resposta, reflitamos sobre um ou outro aspecto da história de Cristo e do Cristianismo.

1) Até o séc. XVIII (ou seja, até o professor hamburguês H.S.Reimarus, +1768), exceção feita de um ou outro caso esporádico, ninguém negava que os Evangelhos dão suficiente testemunho da Divindade de Cristo. Nos séculos XIX e XX, porém, os críticos propuseram suas teorias, cancelando os traços da Divindade de Jesus nos Evangelhos, para só guardar os que O reduziam à categoria de um “iluminado” ou “líder” humano. Contudo, a história da crítica demonstrou o seguinte: as linhas que descrevem Jesus nos Evangelhos são tão ligadas entre si que não se pode cancelar uma sem ter que cancelar outras; chega-se assim a uma concepção de Jesus e da sua obra (o Cristianismo) tão depauperada e absurda que os críticos mais recentes acabaram concebendo horror das teorias dissecadoras do Evangelho e preferiram negar simplesmente a existência de Jesus. Tal é o caso do médico francês Couchoud que, não querendo guardar a figura de um Jesus histórico vago e monstruoso que lhe haviam consignado os críticos seus antecessores, se tornou protagonista da tese do “Jesus-mito” (veja-se a bibliografia indicada no fim desta questão). A experiência, pois, parece ensinar que não existe meio-termo entre a fé no Senhor Jesus Deus e Homem apregoado pela Tradição e a fé na não existência de Jesus ou fé no Jesus-mito.

Era esta a primeira lição da História que nos importava considerar. Passemos a outros dos seus ensinamentos.

2) Entre Jesus Cristo, que viveu na carne há vinte [e um] séculos, e a nossa geração, a ponte é estabelecida pela Igreja de Cristo. Pois bem: qual é o esteio desta sociedade? Que é que, partindo de Jesus, a habilita a resistir aos embates de [vinte] séculos, quando tantas vezes (principalmente a partir de 1799, com a ascensão de Napoleão Bonaparte) já se lhe predisse a ruína?

A própria Igreja nos responde que há um elemento na doutrina e na vida de Cristo sobre o qual repousa a sua fé, elemento sem o qual desmoronariam por completo a crença e as energias dos cristãos: tal elemento é a ressurreição de Jesus. Se não fôra esta, o Rabino da Palestina não diferiria de qualquer fundador de alguma das várias religiões hoje existentes (Buda, Confúcio, Lao-Tsé, Maomé…). Para a Igreja, é a ressurreição do Senhor que Lhe confere autoridade, inconfundível ou divina: “Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação; vã é também a vossa fé” (1Coríntios 15,14; cf. 17 e 19). A ênfase de São Paulo, ao escrever estas palavras, explica-se por ser a ressurreição o testemunho máximo, o selo de autenticidade posto por Deus à pregação de Jesus.

Sendo assim, interessa-nos examinar se, de fato, Cristo ressuscitou, como afirmam São Paulo e a Igreja; e, caso haja ressuscitado, quais as verdades que a ressurreição de Cristo confirmou e autenticou.

3) Quanto ao fato da ressurreição de Jesus, ele tem sido afirmado pela Tradição cristã desde os Apóstolos até hoje, não só mediante palavras, mas também mediante gestos heróicos (o martírio!). Sem que se queira exagerar o valor deste testemunho, observa-se que dificilmente milhares e milhares de pessoas, de todas as idades, épocas e regiões, dariam o sangue por algo que não lhes parecesse mais certo e valioso do que a própria vida. Ademais, deve-se notar que os Apóstolos, primeiros arautos da ressurreição, estavam tão pouco dispostos a inventá-la (por entusiasmo visionário ou por alucinação) que foram os primeiros a tomar atitude cética logo que dela tiveram notícia (haja vista o caso de Tomé). As autoridades e o povo de Jerusalém teriam facilmente desmascarado a fraude dos primeiros discípulos caso estes quisessem incutir a fé numa falsa ressurreição de Cristo. Quanto ao mundo greco-romano, sabe-se que a perspectiva de ressurreição dos corpos o horrorizava pois não raro concebia o corpo como cárcere da alma. Não obstante, judeus e pagãos foram-se convertendo, abraçando o código de moral árdua do Evangelho; tê-lo-iam feito, se a ressurreição de Cristo não fosse um fato histórico inelutável?

Em conclusão: “Nada perdura senão a verdade (…) Ao contrário, o que é falso, desaparece. O falso não tem base, ao passo que o pequeno edifício da verdade é de aço e cresce sempre”, são palavras do racionalista E. Renan, que Daniel-Rops assim comenta:

“Pode parecer fraco, quanto aos seus alicerces, o pequeno edifício dogmático da Ressurreição; mas há dois mil anos que dura e que milhões de espíritos humanos o aceitam, apesar de todos os argumentos em contrário, pormenor este que não se deve desprezar” (Daniel-Rops, “Jesus no seu tempo”, Porto, 1950, p.630).

4) Acrescentemos agora que a ressurreição de Jesus — fato comprovado — era por Cristo apresentada como o sinal por excelência da veracidade de sua pregação, “o sinal de Jonas” (cf. Mateus 16,4).

5) E qual o conteúdo da pregação que Jesus queria assim autenticar? Como verdade básica do Evangelho, Cristo ensinou ser Ele “Filho do Homem” e “Filho de Deus”, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Em particular à sua Divindade, Jesus a afirmou:

a) Por palavras: Colocava-se em igualdade de condições com Deus, que Ele chamava “Pai” não em sentido metafórico, mas como quem participa da natureza do próprio Deus: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho” (Mateus 11,27).

Neste texto Jesus atribui a Si uma prerrogativa que só a Deus toca: o conhecimento cabal da infinita Perfeição Divina. A afirmação é corroborada por outros dizeres: “Eu e o Pai somos um só (= uma só natureza, uma só substância, que se comunica entre duas pessoas)” (João 10,30); “Não credes que eu estou no Pai e o Pai está em Mim?” (João 14,10).

b) Por suas atitudes: A Lei dada aos israelitas no Antigo Testamento era tida como Palavra do Senhor. Ora, Jesus se referia aos seus preceitos com absoluta senhoria, dando a entender que possuía a autoridade do próprio Legislador. Tenham-se em vista os seguintes dizeres: “O Filho do homem é Senhor mesmo do sábado” (Marcos 2,28).

Jesus jamais se servia da fórmula habitual aos profetas: “Eis o que diz o Senhor Deus…”; mas falava diretamente em Seu Nome, opondo a Lei antiga à nova: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás’… (Êxodo 20,13). Eu, porém, vos digo: quem se irritar contra o seu irmão…” (Mateus 5,21-22). Antítese ocorrente seis vezes consecutivas em Mateus 5.

Os seus milagres, Jesus os realizava por autoridade própria: “Eu o quero: sê purificado (da lepra)” (Marcos 1,41); “Talitha kumi; jovem (defunta), eu te mando: levanta-te” (Marcos 5,41); “Ephpheta, abre-te”, disse Jesus ao surdo-mudo em Marcos 7,34.

Considere-se também o episódio do paralítico, a quem Jesus disse: “Teus pecados te são perdoados!”. Os judeus, ao ouvi-lo, acusaram-no de blasfêmia ou de usurpação de um poder que só a Deus compete. Longe de retroceder, Cristo se dignou curar o paralítico em testemunho de sua autoridade divina, de sorte que a multidão pôde exclamar nunca ter visto algo de semelhante (cf. Marcos 2,5-11).

Estes testemunhos, que se poderiam multiplicar, dão a ver que Jesus se apresentou realmente aos homens como verdadeiro Deus. Mais tarde, por sua ressurreição confirmou tais afirmações. Atualmente, a subsistência da Igreja não é mais do que o testemunho continuado da ressurreição e, por conseguinte, da Divindade de Cristo, vitoriosa sobre a morte e as leis da decrepitude. Não é sem razão que se tem falado do “milagre da Igreja”, da Igreja existente sempre vigorosa, portadora da Palavra que deu luz e estrutura à vida dos povos!

– “O que pensar dessa Igreja que diziam ter morrido? As tempestades dos homens e das épocas se desencadearam sobre ela para tragá-la. Como a arca [de Noé], ela atravessou o dilúvio e, de cada vez, encontrou novas paragens para crescer mais amplamente” (Cardeal Suhard, “Essor ou déclin de l’Eglise”, Paris, 1947, p.68).

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BIBLIOGRAFIA:

– J. Gultion, “Jésus”, Paris, 1957 (livro famoso, que estuda objetivamente as hipóteses modernas concernentes à personalidade de Jesus, e termina reafirmando a Tradição).
– H. Folder, “Jesus de Nazaré”, Petrópolis: Vozes, 1951.
– X. Adam, “Jésus le Christ”, Mulhouse, 1934.
– Daniel-Rops, “Jesus no seu tempo”, Porto, 1950.
– G. Ricciotti, “Vita di Gesù Cristo”, Milão, 1941.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 8:1957 – dez/1957
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