Conversando com amigos evangélicos sobre o tema “Salvação”

Dando continuidade à série de diálogos entre amigos sobre temas apologéticos, compartilho agora uma conversa fictícia acerca do tema “salvação”, uma matéria bem importante, pois foi a principal causa das divisões entre católicos e protestantes no século XVI. Me baseei em algumas conversas que tive com amigos evangélicos, mas reordenei as sentenças aqui para que os argumentos tenham uma maior consistência. Do mesmo modo que os diálogos anteriores, este outro pode servir como auxílio e guia na hora de explicar para os nossos irmãos cristãos de outras denominações aquilo que exatamente cremos e os porquês, ainda que tanto neste assim quanto nos outros temas os melhores argumentos não tenham o poder de convencer a todos. Os nomes dos participantes da conversa, como sempre, não são reais.

JÚLIA – Nunca entendi a razão de os católicos negarem a salvação como uma graça[1] que recebemos através da fé. Por acaso a Bíblia não diz que “fostes, pois, salvos pela graça, mediante a fé; e isto não vem de vós, mas é um dom de Deus; tampouco provém das obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2,8)?

JOSÉ – Você abordou um tema muito importante e com todo prazer explicarei aquilo que nós, católicos, cremos.

MARLENE – Prossiga então. Isso também me interessa.

JOSÉ – Antes de mais nada, vocês devem saber que nós, católicos, cremos que a salvação é uma graça de Deus que recebemos através da fé.

JÚLIA – Mas vocês não creem que a salvação seja recebida apenas pela fé[2], mas creem que, para salvarem-se, devem realizar também boas obras, cumprir os Mandamentos, como se a salvação pudesse ser comprada. São Paulo é bastante claro que “se é pela graça, já não o é pelas obras, pois de outra forma a graça já não seria graça” (Romanos 11,6).

JOSÉ – Vou explicar através de um exemplo, pelo qual poderemos entender o fato de a salvação ser sim uma graça de Deus: imaginem um homem que se encontra no fundo de um poço bem profundo, sem dinheiro e que não pode sair dali por si próprio. Então chega alguém e mesmo verificando que aquele homem não mereça ser ajudado e que também não tem dinheiro para recompensá-lo, ainda assim busca uma escada suficientemente grande para fazer com que aquele homem possa sair dali. Ora, mas se este homem não segura na escada e não começa a subir por si mesmo, ele não vai sair dali. É possível até que tenha que se esforçar ainda mais para sair, inclusive segurando na mão do homem que lhe fez descer a escada; ele então terá que fazer a sua parte, o que não significa que ele pagou para sair dali. Ao contrário, ele foi gratuitamente resgatado, já que o seu esforço para sair dali não paga o favor que foi realizado pelo seu benfeitor.

MARLENE – Sim, esse exemplo é bastante semelhante ao que eu mesmo utilizo para explicar que Deus nos oferece gratuitamente a salvação e nós devemos aceitá-la.

JOSÉ – Pois bem: vocês concordam comigo que quem impulsiona o homem a aceitar a salvação e crer é Deus, que infunde no homem a Sua graça?

JÚLIA e MARLENE – Claro!

JOSÉ – Então! A mesma graça de Deus que impulsiona a crer é a mesma que impulsiona a agir. É o que diz a Bíblia: “Pois é Deus quem opera em vós o querer e o agir, como bem Lhe parece” (Filipenses 2,13).

JÚLIA e MARLENE – Estamos de acordo!

JOSÉ – Observem agora que a graça começa a agir no homem muito antes dele crer. Inclusive, quando ele se sente movido a ouvir uma pregação ou quando ele busca se aproximar de Deus, já está a graça operando e movendo-o a Ele.

JÚLIA – Sem dúvida!

JOSÉ – Mas vocês creem que o homem tem poder para resistir a essa graça? Que Deus o move a crer e então a agir, vejo que estamos de acordo; mas pode o homem resistir?

MARLENE – Creio que sim, pois há muitos que decidem não crer ainda que ouçam muitas pregações.

JÚLIA – Nisto discordo da Marlene. Eu creio que a graça de Deus pode ser parcialmente resistida, mas nunca de maneira definitiva; por isso, dizemos que é irresistível, já que Deus vai e abre pouco a pouco o coração daqueles que Ele predestinou a serem salvos, por mais duros que sejam[3].

JOSÉ – Mas, Júlia, se isto é assim, os que não creem e não se salvam por acaso nunca receberam a graça de Deus?

JÚLIA – Este é um tema complexo, mas creio que não; eles não recebem a graça de Deus porque não foram predestinados à salvação. A eleição divina é algo misterioso que a inteligência humana não pode penetrar.

JOSÉ – Neste caso, nós, católicos, estamos mais de acordo com a Marlene. Nós cremos que Deus derrama a Sua graça sobre todos porque “quer que todos os homens se salvem e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Timóteo 2,4).

Existem muitos textos bíblicos que ensinam que é o homem que se condena; não porque Deus não lhe tenha dado as graças necessárias para a salvação, mas porque [o próprio homem] as rejeitou. Por isso, os católicos creem que a graça pode ser resistida, inclusive de forma definitiva[4]. Em razão disso, São Paulo nos convida a cooperar com a graça, para não recebê-la em vão: “E como cooperadores Dele que somos, vos exortamos: não recebais em vão a graça de Deus” (2Coríntios 6,1).

Jesus, na parábola da videira (João 15,1-9), nos dá um bom exemplo, porque Ele mesmo ali se representa como o tronco de uma árvore e nós, os ramos; a graça é representada pela seiva do tronco que, fluindo até os ramos, faz com que produzam fruto. Quem produz o fruto: o ramo ou a seiva? Deus ou o homem?

MARLENE e JÚLIA – Deus, como você disse antes, pois é Ele “quem opera em vós o querer e o agir”.

JOSÉ – Sim, a obra é primeiramente de Deus, mas não é Deus agindo sozinho, mas Deus agindo através do homem. Por isso, São Paulo nos chama, no texto anterior, de “cooperadores” da Sua graça.

Você, Marlene, aceita que a graça pode ser resistida; então, quando a graça frutifica, o homem está deixando se mover por ela. Não é Deus que age sem o consentimento do homem; é o homem que age movido por Deus.

MARLENE – Concordo.

JOSÉ – Vamos agora para o próximo ponto: depois de o homem já ter crido e já ter sido justificado pela fé, pode ainda resistir à graça?

MARLENE – Creio que sim.

JOSÉ – Ele pode se desviar da verdade e, inclusive, pecar gravemente?

MARLENE – Sim.

JOSÉ – E se morrer nesse estado, sem ter verdadeiramente se arrependido, ele se salva?

MARLENE – Não.

JÚLIA – Claro que ele se salva, Marlene, pois já aceitou Jesus como Salvador. O Pai não olhará para ele, mas para Cristo, em quem ele pôs a sua confiança. Lembra do que diz a Bíblia: “Tem fé no Senhor Jesus e salvarás a ti e a tua casa” (Atos 16,31); e ainda: “Aquele que crê, tem vida eterna” (João 6,47). É precisamente por isso que a salvação é uma graça: se você não fez nada para recebê-la, então também não pode fazer nada para perdê-la.

JOSÉ – Um minuto! Há um erro no seu raciocínio: o fato de a salvação ser recebida gratuitamente não quer dizer que não possa ser perdida. Eu posso te dar um presente e isso não quer dizer que você não poderá jogá-lo fora no lixo.

JÚLIA – O texto afirma claramente que no momento de crer já se obtém a vida eterna; ele fala no presente, o que quer dizer que já a partir deste momento somos salvos eternamente; e se somos salvos para sempre, não podemos perder a salvação (João 3,36; 5,24; 5,47).

JOSÉ – Você deve entender que enquanto estamos neste mundo a vida eterna fica condicionada a que permaneçamos em estado de graça. São João nos fala de alguém que creu mas que depois começou a odiar o seu irmão; este já não tem “vida eterna permanente” (1João 3,15). O próprio Jesus adverte em diversas ocasiões que para alguém se salvar deve “perseverar até o fim” (Mateus 10,22; 24,13; Marcos 13,13). O autor da Carta aos Hebreus nos adverte a não “descuidarmos da salvação” (Hebreus 2,3). E São Paulo nos adverte de maneira taxativa que se não nos mantivermos na bondade seremos “cortados” (Romanos 11,22).

MARLENE – Eu acredito que a salvação pode ser perdida se o homem se afastar da fé.

JOSÉ – A questão é exatamente essa: se o homem, depois de crer, pode fazer ou deixar de fazer ALGO que afete a sua salvação, então NÃO DEPENDE APENAS DE TER CRIDO.

MARLNE – Espera aí! Mas se o homem verdadeiramente creu, isto não quer dizer que ele não se afastará do caminho da fé? Até porque as obras são fruto da verdadeira fé e se realmente tinha uma fé verdadeira, ele agirá segundo essa fé.

JOSÉ – É verdade que as obras são fruto da fé, mas até mesmo o homem justificado continua sendo afetado pela concupiscência e pode resistir à graça. Portanto, ele pode ter crido e, ainda assim, depois afastar-se e deixar de frutificar. Para ilustrar isso, mencionei anteriormente a parábola da videira, onde os ramos que estiveram unidos à árvore podem deixar de dar fruto e acabarão sendo cortados e lançados ao fogo (João 15,6). São Pedro fala daqueles que, após terem sido lavados [=batizados], retornaram à imundície do pecado: “Pois teria mais lhes valido não ter conhecido o caminho da justiça do que, uma vez conhecido, voltarem atrás no santo preceito que lhes foi transmitido. Sucede-lhes aquele provérbio tão certo: ‘ao cão retorna o seu vômito’ e ‘o porco lavado torna a revolver-se na lama'” (2Pedro 2,21-22). Por outro lado, lembra que ainda que as obras sejam efetivamente produto da graça, é a graça que age através da livre vontade do homem.

JÚLIA – Mas, visto dessa maneira, uma coisa tão simples torna-se bem complicada e dá a entender que devemos nos esforçar pela salvação. No entanto, não faz sentido esforçar-se para se obter algo que é uma graça, ou em outras palavras, que é grátis.

JOSÉ – Não há razão para ver ambas as coisas como excludentes. Para que fosse compreendido, citei exatamente o exemplo do homem que se encontrava no fundo do poço. Lembra também que São Paulo nos ordena a “trabalhar com temor e tremor pela nossa salvação” (Filipenses 2,12); e Jesus, a “lutar para entrar pela porta estreita” (Lucas 13,24; Mateus 7,13). Tudo isso implica esforço pessoal. O ditado popular “Deus ajuda quem se ajuda” exemplifica isso muito bem.

JÚLIA – Porém, se é assim, se temos que nos esforçar para a salvação, por que Cristo morreu por nós?

JOSÉ – Cristo morreu para nos redimir. Sem o seu sacrifício, que foi totalmente gratuito, não poderíamos nos salvar. Mas isso não quer dizer que o fiel justificado não tenha que agir conforme a vontade de Deus para se salvar, nem que torna desnecessário cumprir os Mandamentos. Recorda que Cristo também disse: “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade do meu Pai celeste” (Mateus 7,21). Recorda também que o Senhor “se converteu em causa de salvação eterna para todos OS QUE O OBEDECEM” (Hebreus 5,9).

Quando perguntaram a Jesus o que deveria ser feito para se salvar, Ele respondeu: “Se queres entrar na Vida, cumpre os Mandamentos” (Mateus 19,16-17). Não é que se esteja “comprando” a vida eterna ao cumprir os Mandamentos, mas se estes não forem cumpridos, não se alcançará a salvação. É aqui que entra o “traje do homem novo” de que fala Jesus (Mateus 22,11-13): se não o vestirmos, seremos excluídos do banquete celestial.

JÚLIA – Mas quem pode cumprir todos os Mandamentos?

JOSÉ – Sozinhos, nada podemos; mas a graça nos capacita. Lembra das palavras de São Paulo: “Tudo posso em Cristo, que me fortalece” (Filipenses 4,13). Deus sempre nos dá a graça para cumprirmos os Mandamentos: “Porque estes Mandamentos que eu vos prescrevo hoje não são superiores às vossas forças, nem estão fora do vosso alcance. Não estão no céu, para que possais dizer: ‘Quem subirá ao céu por nós para pegá-los, para que possamos ouví-los e os ponhamos em prática?’. Nem estão do outro lado do mar, para que possais dizer: ‘Quem irá para o outro lado do mar por nós para pegá-los, para que possamos ouví-los e os ponhamos em prática?’. A palavra está bem perto de vós: está na vossa boca e no vosso coração, para que a coloqueis em prática” (Deuteronômio 30,11-14).

MARLENE – Sim, mas a Bíblia também diz que inclusive o justo peca sete vezes ao dia (Provérbios 24,16). Então ninguém poderia se salvar.

JOSÉ – O que ocorre é que nem todo pecado é mortal, mas isto é algo que podemos abordar em uma outra oportunidade[5]. Enquanto estamos nesta vida, nós podemos sofrer quedas, mas o importante é perseverar até o fim no bem e, se cairmos, pedir perdão a Deus e nos levantar. Por isso, temos o sacramento da Penitência.

MARLENE – Da forma como você explica, não está muito distante do que eu particularmente creio.

JOSÉ – O que eu explico é precisamente o que ensina a Igreja. Ao longo da História dois erros opostos sempre tem estado em luta: o erro de Pelágio (que acreditava que a salvação era apenas o produto do esforço pessoal, sem a necessidade da graça)[6] e o erro de Lutero (que conferia à graça um lugar tão alto que negava o papel da liberdade humana)[7]. A salvação, em primeiro lugar, é de Deus, que nos salva gratuitamente; porém, em segundo lugar e de maneira subordinada, nossa.

Compreendido deste modo, é possível entender perfeitamente o porquê de todos os textos bíblicos falarem de como seremos julgados; eles dizem que seremos julgados por nossas obras (Mateus 16,27; 2Coríntios 5,10; Apocalipse 20,12; Mateus 25,31-46). E também o porquê de São Tiago advertir: “De que serve, irmãos, que alguém diga: ‘Tenho fé’, se não tiver obras? Por acaso a fé poderá salvá-lo?” (Tiago 2,14), pois “a fé, se não tiver obras, está realmente morta” (Tiago 2,17); e finalmente: “o homem é justificado pelas obras e NÃO APENAS PELA FÉ” (Tiago 2,24).

Como diz São Paulo, podemos TER FÉ PARA MOVER MONTANHAS, mas sem caridade seremos como metal que ressoa ou címbalo que retine (1Coríntios 13,1).

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NOTAS

[1] Em teologia cristã, entende-se por “graça divina” ou “graça santificante” um favor ou dom gratuito concedido por Deus para auxiliar o homem a cumprir os Mandamentos, salvar-se ou ser santo, como também se entende o ato de amor unilateral e imerecido pelo qual Deus continuamente chama as almas até Si. Também foi pela graça (gratuitamente) que Cristo morreu para redimir todos os homens.
[2] Nós, católicos, cremos que a justificação inicial se dá apenas pela fé, tal como sustenta o Concílio de Trento: “Quando o Apóstolo diz que o homem se justifica pela fé e gratuitamente, se deve entender as suas palavras naquele sentido que ele adotou e que tem sido expresso por perpétuo consentimento da Igreja Católica, a saber: diz que somos justificados pela fé, enquanto esta é princípio da salvação do homem, fundamento e raiz de toda justificação, sem a qual é impossível tornar-se agradável a Deus e nem mesmo chegar a participar da sorte de ser filhos Seus. Entretanto, também diz que somos gratuitamente justificados, enquanto que nenhuma das coisas que precedem a justificação – seja a fé, sejam as obras – mereçam a graça da justificação: porque se é graça, já não provém das obras; de outro modo – como diz o Apóstolo – a graça já não seria graça”.
[3] Neste diálogo, Júlia representa os evangélicos de tendência calvinista ou reformada, que creem que a graça é irresistível e que Deus predestina sem levar em conta nenhum merecimento pessoal, mas apenas um decreto inescrutável: alguns para a salvação; outros para a condenação. Marlene, ao contrário, representa os evangélicos de tendência arminiana, que aceitam que a graça não é irresistível. Para os católicos, é de fé que a graça não é irresistível.
[4] Se não fosse possível resistir à graça, o homem justificado nunca mais cometeria pecado. Os calvinistas admitem que a graça pode ser apenas parcialmente resistível, negando porém que possa ser definitivamente rejeitada.
[5] Em outra ocasião abordaremos a diferença entre pecado mortal e pecado venial.
[6] A heresia pelagiana sempre foi condenada pela Igreja.
[7] Martinho Lutero inicia a sua obra “De Servo Arbitrio” dizendo: “Das der freie wille nichts sey” (o que, traduzido, seria: “o livre arbítrio é um nada”). Mais adiante, nega o livre arbítrio, chamando-o de “pura mentira”. Esta obra pode ser gratuitamente lida na página da Biblioteca Reformada.

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