Leitor espanta-se com a expressão “adoração da cruz”

SAÚDE E PAZ! BENDITO SEJA NOSSO SENHOR JESUS POR EXISTIR FONTES COMPROMETIDAS COM A VERDADE. GOSTARIA DE PARABENIZAR TODA EQUIPE.QUE DEUS ABENÇOE O APOSTOLADO E MUTIPLIQUE ESTA INICIATIVA DE DEFENDER O QUE É VERDADEIRO. APROVEITO PARA PERGUNTAR PORQUE NA SEXTA FEIRA DA PAIXÃO É VEICULADO NA MÍDIA SECULAR CONVITE PARA CELEBRAÇÃO DE ADORAÇÃO A SANTA CRUZ;É OBVIO QUE TODOS SABEMOS QUE ADORAMOS SOMENTE O DEUS UNO-TRINO.OUTRA DÚVIDA É SOBRE OS DONS DO ESPÍRITO SANTO,PORQUE EM ALGUMAS CELEBRAÇÕES OBSERVAMOS QUE NÃO SE SEGUE AS ORIENTAÇÕES DO APOSTOLO PAULO NAS SAGRADAS ESCRITURAS SOBRE A ORDEM NO CULTO E MANIFESTAÇÕES DOS DONS.NÃO ENTENDO PORQUE A IGREJA NÃO ORIENTA DE FORMA BEM CLARA E COM BOA DIVULGAÇÃO SOBRE ASSUNTOS COMO ESTES.AGRADEÇO DESDE JÁ A ATENÇÃO DESTINADA.

 

 

 

 

 

Caríssimo sr. Victor,

 

Obrigado pelos elogios. São mais frutos da sua caridade e da graça divina do que de nossos merecimentos.

 

Darei as duas respostas que o senhor quer.

 

1) A adoração da Cruz

 

Não é só a mídia que utiliza a expressão “adoração da Cruz”. É exatamente este o nome da cerimônia realizada durante a Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa. Está lá no Missal Romano. Pode conferir.

 

A confusão se deu porque, certamente, o senhor desconhece a distinção entre culto absoluto e culto relativo. Vamos elucidar sua dúvida.

 

“A razão pela qual uma pessoa ou uma coisa é objeto de culto pode ser-lhe intrínseca ou extrínseca, anexa ou separada. No primeiro caso, o culto é absoluto; no segundo, relativo.[1]

 

Outro canonista nos socorre: “O culto absoluto dirige-se diretamente às pessoas, e o culto relativo é prestado às imagens ou às relíquias, mas em razão das pessoas com as quais elas se relacionam, e é em última análise a estas pessoas que as homenagens se dirigem.[2]

 

Assim, o culto dirigido a Deus (adoração, latria) e o culto dirigido aos santos (veneração, dulia) pode ser absoluto ou relativo. Há, pois, adoração absoluta e adoração relativa, e veneração absoluta e veneração relativa. Exemplos: culto prestado a Cristo, em Si (adoração absoluta, pois se dirige à Pessoa divina de Cristo), culto prestado ao Espírito Santo (adoração absoluta), culto prestado ao Pai (adoração absoluta), culto prestado à Eucaristia (adoração absoluta, eis que sob as aparências de pão e vinho está o próprio Jesus), culto prestado ao Sagrado Coração de Jesus, em Si (adoração absoluta, pois há uma união substancial entre Cristo e Seu Coração); culto prestado a Nossa Senhora, em si (veneração absoluta), culto prestado a São José ou qualquer outro santo, em si (veneração absoluta); culto prestado a uma relíquia de um santo ou a uma imagem sua (veneração relativa, uma vez que se dirige apenas indiretamente ao santo e imediatamente tem como destinatário a imagem ou a relíquia, que guardam relação – daí ser veneração relativa – com o santo).

 

Vimos exemplos de adoração absoluta, de veneração absoluta e de veneração relativa. Já de adoração relativa, é exemplo perfeito, além do culto prestado a uma imagem de Cristo ou do Espírito Santo ou da Trindade (pois é dado à imagem imediatamente, a qual guarda relação com a Pessoa adorada indiretamente), a própria adoração à Cruz pelo senhor mencionada. Não há uma união substancial entre Cristo e a Cruz. Por isso, o culto a ela prestado não pode ser absoluto, eis que se trata de cultuar diretamente a Cruz e indiretamente Cristo que nela morreu para nos salvar. Entre Cristo e a Cruz há uma relação, daí o culto a ela prestado ser relativo. Todavia, não se trata de mera veneração relativa, pois a Deus (ainda que indiretamente, como é o caso), presta-se culto de latria, culto de adoração. Em síntese, adora-se, sim, a Cruz, mas não da mesma forma que adoramos a Eucaristia.

 

À Eucaristia prestamos adoração absoluta. À Cruz prestamos adoração relativa.

 

Ainda um comentário adicional. Sua dúvida, caro consulente, nos dá oportunidade de esclarecermos outro ponto. Não é o objeto de sua consulta, porém é interessante avançarmos mais um pouco.

 

Na maioria das vezes tomamos a palavra “adoração” em seu sentido estrito, como culto tributável somente a Deus, um culto reconhecedor de Sua divindade. Sem embargo, há um sentido lato, mais largo, de pouco uso na Igreja justamente para evitar confusões, e que abarca o que costumeiramente denominamos veneração.

 

O que se há de compreender bem é que os termos no vernáculo pouco importam. O que interessa é a essência do culto. E nisso, o culto tributado a Deus (adoração em sentido estrito, seja absoluto seja relativo) é essencialmente diverso daquele prestado aos homens (Nossa Senhora, os santos, as pessoas constituídas em dignidade, as autoridades, os pais etc). No culto prestado a Deus (adoração em sentido estrito), reconhecemos Sua divindade, ao passo em que naquele prestado aos homens apenas manifestamos nossa honra e nosso respeito a eles.

 

Por isso, o grego cunhou dois termos distintos para expressar a diversidade dos cultos: latria e dulia. Latria é o culto à divindade. Prestamos culto de latria a quem reconhecemos como Deus. Já dulia é o culto prestado aos demais, um culto de respeito.

 

No português, convencionou-se chamar latria de adoração e dulia de veneração. Contudo, os termos não são tão presos, por assim dizer, a um significado único. Embora geralmente expressemos, com a palavra adoração, o conteúdo do culto de latria, aquela mesma palavra (adoração) se presta a significados distintos, mesmo no mundo profano (?adoro esse doce?, por exemplo).

 

O que importa observar é que damos culto látrico somente a Deus, ainda que, no português, como em outras línguas latinas, utilizemos a palavra adoração para expressar até mesmo a dulia. Não é comum, já o dissemos, em vista de uma possível confusão, mas existe esse uso.

 

Havia um rito antigo durante a coroação dos Papas que se chamava “adoração do Romano Pontífice”. Ora, evidentemente, não se trata aqui de prestar culto de latria (adoração no sentido estrito) ao Santo Padre, eis que este se deve só a Deus. É mais razoável crer que se trata de adoração no sentido amplo, lato, e que engloba, além da adoração em sentido estrito (latria), também o que usualmente chamamos veneração (dulia).

 

Urge compreendermos que essa variação lingüística é uma expressão da rica diversidade de um idioma, e muito característica do pensamento católico, o qual sabe conjugar os diferentes matizes e nuances de todas as coisas e seres. Prender-se a formas severamente estritas é mais próprio do espírito protestante, que cerceia os empregos analógicos e a riqueza cultural expressada nas diversas palavras e nos diversos usos de uma mesma palavra. Nisso há manifestação da tendência gnóstica do puritanismo, da qual nossa sociedade não se desfez infelizmente.

 

Ensina um insigne teólogo jesuíta:

 

“A adoração designa in genere qualquer ato pelo qual reverenciamos alguém em razão de sua excelência. A adoração, entretanto, é distinta segundo a natureza que constitui seu objeto formal, ou o ato mediante o qual cultuamos aquela excelência (cf. cânon 1255 – nota do VS: o texto refere-se ao Código de 1917).

 

Se o objeto formal é a excelência de Deus, infinita e imparticipada, tem-se a adoração em sentido pleno e próprio, que se identifica com o culto de latria. Mas, se o objeto é uma excelência finita e participada, tem-se uma adoração em sentido menos próprio, a qual se pode prestar às criaturas. E neste último sentido se identifica com o culto de dulia. Este vocábulo designa, nos teólogos antigos (cf. Santo Tomás de Aquino; S. Th., II-II, q. 103, a. 4), a reverência tributada a qualquer homem em razão de qualquer excelência (…).”[3]

 

Ou ainda:

 

“A adoração tomada no sentido mais lato é o ato pelo qual testemunhamos a excelência de um outro e nossa sujeição. Nesse sentido lato, adoração é a mesma coisa que culto. E neste sentido, nas Sagradas Escrituras diz-se que também os anjos e os homens, por exemplo, reis, são adorados (cf. Gn 18,2; III Rs 1,16; At 10,25). Tomada em sentido estrito, adoração é o ato externo de religião pelo qual testemunhamos a suprema excelência e o domínio de Deus e a nossa perfeita dependência e sujeição a Ele. Tal adoração só convém e é devida a Deus (Mt 2,11).[4]

 

E mais:

 

“Em um sentido genérico, a adoração é a honra prestada a outro por causa de sua superior excelência, em protesto de nossa submissão para com Ele. (…) Como se pode distinguir uma tríplice excelência, a saber, a divina, a criada sobrenatural e a criada natural, daí também se distingue uma tríplice adoração: a primeira, que é a da excelência divina, e que se chama latria; a segunda, que é a da excelência criada sobrenatural, que existe nos anjos e santos, e que se chama dulia; a terceira, que é a da excelência criada natural, e que se chama culto civil. Na Escritura Sagrada, não raro se toma a palavra adoração no segundo e no terceiro sentidos. Por exemplo, Abraão adorou os anjos e os filhos de Heth (cf. Gn 23,7); Betsabé adorou o rei Davi (cf. III Rs 1,16). ‘E tendo entrado Pedro, veio-lhe ao encontro Cornélio, e prostrando-se a seus pés, o adorou.’ (At 10,25).[5]

 

Resumindo:

 

a) a adoração no sentido estrito (latria) é devida só a Deus;

b) todo culto, seja adoração, seja veneração, admite uma forma absoluta e uma forma relativa, de modo que adoramos a Deus absolutamente (em Si, na Eucaristia) e relativamente (nas suas imagens, relíquias, na Cruz);

c) além da adoração no sentido estrito, há uma outra, em sentido amplo, que é sinônimo de culto, e abarca, além da adoração propriamente dita (latria), a veneração (dulia).

 

Acho que, com essa explicação, tudo ficou claro. Passemos ao segundo questionamento.

 

2) Se por dons do Espírito Santo, o consulente refere-se às manifestações extraordinárias (dom de línguas, curas, profecia etc), não é a Santa Missa o lugar apropriado para seu exercício. A Missa, mais do que uma reunião de oração, é o Santo Sacrifício de Cristo tornado presente diante de nós.

 

Ora, ao ver Cristo morrendo pela nossa salvação, ao contemplar a Cruz sob os sinais sacramentais, nosso comportamento deve ser um só: imitar a Santíssima Virgem e São João, que, aos pés do Calvário, sofriam com Jesus, uniam seus sacrifícios e dores aos d?Ele, esperavam a Ressurreição.

 

Claro que Deus concede dons extraordinários. Mas, são extraordinários, como o nome diz, e não são postos em operação como em muitos ambientes, infelizmente, se vê. Hoje, parece que se banalizou os estados místicos, reservados a poucos.

 

Na Missa, façamos o que está no Missal.

 

Tomara suas dúvidas tenham sido respondidas.

 

Em Cristo,


 


[1] CHOLLET, A. Culte en général, in Dictionnaire de Théologie Catholique, tomo III, Paris: Letouzey et Ané, 1923, col. 2409

[2] JOMBART, E. Dictionnaire de Droit Canonique, fasc. XXII, Paris: Letouzey et Ané, 1948, col. 862

[3] GENICOT-SALMANS, Pe., SJ. Institutiones Theologiae Moralis, vol. I, 17ª ed., Bruges: Desclée de Brouwer, 1951, p. 203

[4] NOLDIN, Pe., SJ; SCHMIDT, Pe., SJ; HENZEL, Pe., SJ. Summa Theologiae Moralis, vol. II, 34ª ed., Innsbruck: Felizian Rauch, 1963, p. 125

[5] PRÜMMER-MÜNCH, Pe., OP. Manuale Theologiae Moralis secundum principia S. Thomae Aquinatis, tomo II, 9ª ed., Freiburg-Breisgau: Herder, 1940, p. 321

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