Leitor pergunta sobre o conceito de “perfeição” (Parte 1/2)

[Leitor autorizou a publicação de seu nome no site] Nome do leitor: Ícaro Andrade
Cidade/UF: carpina/ Pernambuco
Religião: Protestante Histórico

Mensagem
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Caros amigos, ultimamente eu tenho estudado um pouco a  filosofia do francês René Descartes, e ele prova a existência da alma e de Deus da seguinte maneira: eu posso achar que meus pensamentos são como meus sonhos, tudo ilusão e que tudo que me cerca é ilusão, mas eu não posso provar que minha alma não existe, pois se eu penso logo eu existo; mas que perfeição maior do que duvidar é saber e se eu duvido é porque eu não sou perfeito, se eu sei que não sou perfeito, mesmo assim eu sei que  existe um ser perfeito, que é Deus! Sou de uma família católica, mas ainda estou sondando qual religião me servirá melhor para estabelecer relações com Deus, por isso já mandei e-mails para outras igrejas como a Batista, e a assembléia e agora estou  mandando esses para vocês me esclarecerem alguns pontos: primeiramente eu, assim como Descartes e outros filósofos, acredito num único Ser perfeito e supremo (Deus), e minha primeira dúvida é se no catolicismo existem outros seres, como os santos e a Virgem Maria, que se aproximam a Ele? E qual o poder  que os santos e que a Virgem Maria têm? Eu queria muito que uma pessoa formada em teologia tirasse algumas dúvidas minhas! Espero contar com  vocês, um abraço a todos! E outra pergunta era se eu poderia estudar teologia católica caso viesse a fazer parte desta Igreja?

Prezado Ícaro,

Eu não sou formado em teologia, mas em filosofia, e tentarei sanar suas dúvidas. Começarei pela última, que é mais fácil de responder: se você se converter à verdadeira Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo – Deus o permita! –, poderia estudar, como leigo, teologia católica (ou “teologia” simplesmente, pois só a Igreja Católica tem mandato para ensinar a doutrina sagrada), possibilidade contemplada no Código de Direito Canônico: “Procure a autoridade eclesiástica competente que nas universidades católicas se erija uma faculdade, um instituto ou, ao menos, uma cátedra de teologia na que se dêem aulas também a estudantes leigos” (cân. 811 § 1).

Permita-me, antes de responder a seus outros questionamentos, um pequeno reparo quanto à prova cartesiana da existência de Deus mencionada por você: na realidade, segundo Descartes, o que conheço primeiramente é a idéia de um ser perfeito; depois, porque eu não poderia, sendo imperfeito, elaborar uma idéia de um ser perfeito, esta idéia tem que ter sido posta em mim por alguém perfeito, ou seja, Deus. Outra prova que Descartes utiliza é uma variante do argumento ontológico, de S. Anselmo1: “eu tenho a idéia de um ser perfeito, e nessa idéia está incluída a noção de existência; logo esse ser perfeito, isto é, Deus, existe”.

Sua primeira pergunta parece ser a respeito do grau de perfeição dos santos e de Nossa Senhora em comparação a Deus. Em primeiro lugar, num sentido estrito, a perfeição enquanto plenitude só cabe a Deus, pois Ele, sendo o Ser por excelência, possui em Si as perfeições de todas as criaturas; na realidade são essas que participam de sua perfeição, segundo o modo de realidade – realidade material, realidade vivente, realidade pessoal – recebido em sua criação. As criaturas possuem uma perfeição relativa, e isso em dois sentidos: no que se refere a todos os seres, porque sua perfeição, como já dissemos, é uma participação na divina; e no que diz respeito, em particular, aos seres pessoais (de natureza espiritual), criados à “imagem” de Deus (com inteligência e vontade), porque estes são “perfectíveis”, isto é, não são criaturas “acabadas”, mas chamadas a desenvolver, a realizar o próprio ser, através do conhecimento da verdade e do amor ao bem. E aprofundando no sentido dessa realização, com o auxílio da Revelação podemos dizer que a pessoa é convidada, por graça, a participar da própria natureza divina, é chamada à “semelhança” com o Criador, no conhecimento d’Aquele que é a Verdade e na entrega amorosa Àquele que é o Sumo Bem. É o próprio Deus quem nos diz, no Antigo Testamento: “Dirás a toda a assembléia de Israel o seguinte: sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). E o Senhor Jesus, no Novo Testamento: “Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). A vocação humana é divina, é vocação a participar da perfeição do Pai, que é a perfeição do amor, chamado à santidade. Não é uma perfeição que se alcança com o mero esforço humano, mas através da graça de Deus, com a qual colaboramos. A santidade é o sentido da vida humana, e os santos canonizados, com a Virgem Maria à frente, são aquelas pessoas das quais podemos estar certos de que alcançaram a meta, por sua vida de virtudes, de caridade, por sua fidelidade a Deus e a sua Igreja; e eles podem ser propostos como exemplos de Fé, e são nossos intercessores junto a Deus, pois vivem em união beatífica com Ele.

De algum modo, já fica respondida sua outra questão, sobre o “poder” que têm os santos e a Virgem Maria: eles têm plena comunhão com Deus, na glória, e assim são poderosos intercessores em nosso favor. No Credo Apostólico rezamos que “cremos na comunhão dos santos”, e esse intercâmbio entre os membros da Igreja militante – que peregrina na terra – e da Igreja triunfante – que goza da bem-aventurança celeste – faz parte desse mistério. Também podemos acrescentar que muitos santos, do Antigo Testamento e da Nova Aliança, foram abençoados, aqui na terra, com uma especial participação no senhorio de Deus sobre a criação, recebendo dons carismáticos, como o dom da cura, dos milagres, da profecia, etc.

Por último, amigo, a “religião que lhe servirá melhor para estabelecer relações com Deus” é aquela fundada por Ele, a santa religião católica, aquela que detém a plenitude dos meios de salvação, e na qual você poderá alcançar aquela “perfeição da caridade” à qual estão chamados todos os homens, esforçando-se, com orações e boas obras, por colaborar com a graça derramada nos sacramentos, e contando com a ajuda inestimável da Bem-Aventurada Virgem Maria e dos santos.

Um abraço, no Senhor Jesus e sua Mãe Santíssima,

Joathas Bello

(1) O argumento de S. Anselmo é assim resumido pelo filósofo Julián Marías: “o insensato, ao dizer que não há Deus [refere-se ao Sl 14 (13), 1], entende o que diz: se dizemos que Deus é o ente tal que não se pode pensar outro maior, também o entende; portanto, Deus está em seu entendimento; o que nega é que, além disso, esteja in re, exista na realidade. Mas se Deus só existe no pensamento podemos pensar que exista também na realidade, e isto é mais que o primeiro. Portanto, podemos pensar algo maior que Deus, se este não existe. Mas isso está em contradição com o ponto de partida, segundo o qual Deus é tal que não se pode pensar um ente maior. Logo Deus, que existe no entendimento, tem que existir também na realidade” (MARÍAS, Julián. Historia de la filosofia. In: _____, Obras I. Madri: Revista de Occidente, 1981, p. 141).

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