Lendo filosofadas modernas

Um amigo trombou com um texto de filosofia moderna, e não entendeu nada.

Beirando o desespero, perguntou-me: “qual a diferença entre a noção [moderna] e a cristã de essência e de concreto?”

Tentei explicar (texto moderno em negrito):

Isso porque as representações imediatas ocultam a racionalidade das coisas mundanas, que aparecem como algo dado e não como resultante de um processo. Somente uma atividade de abstração (atividade subjetiva) pode captar e desvelar a essência do universo ôntico (…) [O] concreto é resultado, pois síntese de múltiplas determinações e não acabado em si.

Era mais fácil perguntar se haveria alguma semelhança…

Prepara a aspirina, que filosofada moderna parece coisa do Heráclito de porre no hiperurânio. Vamos lá:

Essência, em termos aristotélico-tomistas, é matéria informada que não recebeu o ato de ser. É a mesma coisa que “natureza”. Nós, por exemplo, temos a mesma essência, a natureza humana. Quando esta essência é atualizada, recebendo o ato de ser, temos uma substância, ou indivíduo: Carlos ou Christiano. Cada pessoa é uma substância, e cada um é uma pessoa diferente, porque a mesma essência recebeu duas atualizações diferentes: somos duas instâncias individuadas da natureza humana, essencialmente iguais e substancialmente diferentes. O que hoje se chama de “concreto” seria mais precisamente chamado “material”, ou seja, aquilo que é perceptível pelos sentidos, é tangível, visível, etc.

Já para o moderno, a realidade “de verdade” (a ontologia, a metafísica, os acidentes sensíveis…) não interessa, não entra na equação. Ele não vê as coisas, só as relações entre elas. Para o moderno, os acidentes de relação (ou seja, as atualizações das potências de relação de uma dada substância) são o que determinam uma ontologia, e sua enumeração é o mais próximo que ele consegue chegar de uma ontologia.

Se vc pergunta para um tomista “o que é Bill Gates?”, ele vai dizer que Bill Gates é um ente de natureza humana, ou seja, uma instância individuada e substancial da natureza humana. Já o moderno vai ignorar a natureza, a essência, a individuação, etc., e vai ver Bill Gates como “um opressor” – tomando assim errônea e reducionisticamente um mero acidente de relação (já que Bill Gates pobre não deixaria de ser Bill Gates, sua relação com seus funcionários ou com os compradores de seus softwares, mesmo que realmente seja de opressão, não o constitui substancialmente, é apenas um acidente) por uma definição ontológica -, ignorando a natureza humana do Bill, suas capacidades, seu peso e altura, tudo.

O moderno só consegue ver o acidente de relação; tudo mais para ele é um construto artificial que constitui uma alienação (uma falsa fachada que impede que se veja o que realmente interessa: o acidente de relação) e deve ser expurgado através de um processo de abstração de tudo o que não é o acidente de relação (o processo de “conscientização” ou “desvelamento”).

Para ele, assim, as coisas e pessoas, na verdade, não existem. Só o que existe é um movimento: a atualização do acidente de relação. Se vc coloca três copos em cima da mesa, o moderno não vê os copos, vê um triângulo. Deu para entender? Cada copo só existe como relação com os outros copos (e com a mesa, e com vc, etc., etc., etc.). Ver cada copo separadamente como um copo individual, um ente subsistente, é alienação.

Assim, o autor do texto está dizendo, em termos tomistas, que:


as representações imediatas ocultam a racionalidade das coisas mundanas,

Os acidentes que percebemos pelos sentidos (“as representações imediatas” – os acidentes de quantidade, qualidade, extensão, localização, tempo, etc.) ocultam o que verdadeiramente interessa, que é o acidente de relação (que é um ente de razão, “a racionalidade das coisas mundanas”).

que aparecem como algo dado e não como resultante de um processo.

Fazendo assim com que não vejamos o acidente de relação como a causa eficiente da determinação ontológica daquele ente (o que para um moderno é a maneira correta de ver as coisas; quem vê o Bill Gates como um homem está alienado por não o ver como um opressor), caindo na armadilha de achar que existe um ente que não depende do acidente de relação para ser (um ente que subsiste por si: “algo dado”, não um “resultante de um processo” de relação), ou que se possa compreender um ente por outro modo que não pela enumeração de seus acidentes de relação.

Somente uma atividade de abstração

É preciso assim deixar de lado os acidentes sensíveis (se o Bill Gates está chorando não é para ter pena; se a filha do Bill Gates é uma gatinha, não é para se sentir atraído e condoído na hora de matá-la…), que induzem ao erro de ver seres humanos como seres humanos (como algo subsistente, algo que existe em si), e não como componentes de relações. Isso é feito abstraindo-se o que é irrelevante, “conscientizando-se” que os outros acidentes são “alienantes” (por induzirem a crer que há um ente subsistente ali) e abstraindo-os do raciocínio (efetuando uma “atividade de abstração”).

(atividade subjetiva)

Esta atividade ocorre na cabeça do observador (sujeito), e só lá. O acidente de relação, que é o que interessa, não é perceptível pelos sentidos nem os outros acidentes desaparecem objetivamente quando alguém é conscientizado e deixa de lado a alienação (que consiste em prestar atenção em algo mais que o acidente de relação). Ignora-se, assim, o objeto para que se possa ater-se – subjetivamente, ou seja, na cabeça do sujeito pensante e apenas lá – aos acidentes de relação.

pode captar e desvelar a essência do universo ôntico.

Assim, só quando se ignora tudo o que os sentidos dizem e se deixa de lado qualquer tentativa de visão ontológica – ou seja, de percepção de cada ente como um ente, com essência comum a outros entes da mesma natureza, mas individuado como ente substancialmente único – se pode perceber (“captar”) como “realmente é” (este é o sentido de “essência” na frase; é o sentido comum, de artigo de jornal) o universo dos “seres” (também no sentido vulgar – ele usa “ôntico”, que é um jeito heideggeriano meio bichoso de dizer a mesma coisa enfatizando a materialidade do ser), rasgando o véu da ilusão proporcionada pelos outros acidentes que nos induzem a crer que este ente exista independentemente do acidente de relação (“desvelando” assim o ente como apenas um nó em uma rede de acidentes de relação, não como um ente que realmente existe independentemente). Ou seja, para ver como as coisas “são”, é necessário deixar de lado os entes e cuidar apenas das relações entre eles, e isso só pode ser feito subjetivamente (dentro da cabeça do observador) em uma atividade de abstração (deixando assim de lado tudo o que não é acidente de relação).

o concreto é resultado, pois síntese de múltiplas determinações e não acabado em si.

O ente material perceptível aos sentidos (“o concreto”, o “ôntico”), assim, não existe como tal, mas é apenas um pólo de vários acidentes de relação. São suas relações que o definem (ele é “resultado”), e qualquer ontologia que o veja como um ser subsistente (“acabado em si”) e não como um nó abstrato em uma rede de relações (“síntese de múltiplas determinações”) é falsa.

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