Notas rápidas sobre justificação pela fé

Existe um detalhe que deve ficar claro quando a questão é a doutrina da justificação que é encontrada nas cartas de Paulo e Tiago. Tanto um como o outro estão falando a mesma coisa, sobre a mesma justificação e do processo como o homem é justificado.

As obras em Paulo aos Romanos, no v. 3,28 (Porque julgamos que o homem é justificado pela fé, sem as observâncias da lei. A tradução protestante traz concluímos pois que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei), estão relacionadas às obras da lei mosaica praticada pelos judeus, como por exemplo as disposições quanto aos alimentos, a circuncisão, etc., como componente da justificação do homem. Essas obras não são e não podem ser meritórias, porque não são obras movidas pela graça divina.

Mérito:

Diante de Deus, em sentido estritamente jurídico, não mérito da parte do homem. Entre Ele e nós a diferença é infinita, pois dele tudo recebemos, dele, que é nosso criador.

O mérito do homem diante de Deus, na vida cristã, provém do fato de que Deus livremente determinou associar o homem à obra de sua graça. A ação paternal de Deus vem em primeiro lugar por seu impulso, e o livre agir do homem, em segundo lugar, colaborando com Ele, de sorte que os méritos das boas obras devem ser atribuídos à graça de Deus, primeiramente, e só em segundo lugar ao fiel. O próprio mérito do homem cabe, aliás, a Deus pois suas boas ações procedem, em Cristo, das inspirações do auxilio do Espírito Santo.

A adoção filial, tomando-nos participantes, por graça, da natureza divina, pode conferir-nos, segundo a justiça gratuita de Deus, um verdadeiro mérito. Trata-se de um direito por graça, o pleno direito amor, que nos toma “co-herdeiros” de Cristo e dignos de obter “a herança prometida da vida eterna. Os méritos de nossas boas obras são dons da bondade divina. “A graça veio primeiro; agora se entrega aquilo que é devido. (…)Os méritos são dons de Deus.” (Catecismo da Igreja Católica, 2007-2009)

Tiago, quando fala de boas obras e justificação, não quer com isso dizer que a justificação do homem depende unicamente das boas obras , sem o auxílio da fé, ou que as obras precedem a graça ou a justificação, como obras meritórias que partem da vontade do próprio homem, sua vontade única. Isso é, no mínimo, semi-pelagianismo. Tiago fala da necessidade da fé ser mostrada pelas obras de piedade, e as obras de piedade somente podem cooperar e complementar a fé se forem obras executadas pela ação da graça precedente, que é distribuída gratuitamente por Deus, que quer que todos sejam salvos.

O homem e a graça:

A preparação do homem para acolher a graça é já uma obra da graça. Esta é necessária para suscitar e manter nossa colaboração na justificação pela fé e na santificação pela caridade. Deus acaba em nós aquilo que Ele mesmo começou, “pois começa, com sua intervenção, fazendo com que nós queiramos e acaba cooperando com as moções de nossa vontade já convertida”:

Sem dúvida, operamos também nós, mas o fazemos cooperando com Deus, que opera predispondo-nos com a sua misericórdia. E o faz para nos curar, e nos acompanhará para que, quando já curados, sejamos vivificados; predispõe-nos para que sejamos chamados e acompanha-nos para que sejamos glorificados; predispõe-nos para que vivamos segundo a piedade e segue-nos para que, com Ele, vivamos para todo o sempre, pois sem Ele nada podemos fazer.

A livre iniciativa de Deus pede a livre resposta do homem pois Deus criou o homem à sua imagem, conferindo-lhe, com a liberdade, o poder de conhecê-Lo e amá-Lo. A alma só pode entrar livremente na comunhão do amor. Deus toca imediatamente e move diretamente o coração do homem. Ele colocou no homem uma aspiração à verdade e ao bem que somente Ele pode satisfazer plenamente. As promessas da “vida eterna” respondem, além de a toda a nossa esperança, a esta aspiração:

Se Vós, ao cabo de vossas obras excelentes (…) repousastes no sétimo dia, foi para nos dizer de antemão pela voz de vosso livro que, ao cabo de nossas obras (“que são muito boas”, pelo fato mesmo de terdes sido Vós que no-las destes), também nós no sábado da vida eterna em Vós repousaremos. (Catecismo da Igreja Católica, 2001-2002)

As obras não são a causa da justificação. Não é isso que ensina a teologia católica. Católicos e protestantes concordam quando à necessidade das boas obras na vida do cristão, porém perde-se o foco quanto à influência dessas obras na salvação do homem. Quando Tiago ensina que a fé sem as obras é morta, quer dizer que ela, sozinha e simplesmente fiducial, não é a fé que salva, porque as obras complementam a fé, quer dizer, a justificação não pode ser considerada apenas um ato de fé, mas um processo que envolve a prática de boas obras, para que essa fé seja complementada, e se torne salvífica.

Haverá juízo sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o julgamento. De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, 16.e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma.

Mas alguém dirá: Tu tens fé, e eu tenho obras. Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras.

Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios crêem e tremem. Queres ver, ó homem vão, como a fé sem obras é estéril? Abraão, nosso pai, não foi justificado pelas obras, oferecendo o seu filho Isaac sobre o altar? Vês como a fé cooperava com as suas obras e era completada por elas.

Assim se cumpriu a Escritura, que diz: Abraão creu em Deus e isto lhe foi tido em conta de justiça, e foi chamado amigo de Deus (Gn 15,6). Vedes como o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé? Do mesmo modo Raab, a meretriz, não foi ela justificada pelas obras, por ter recebido os mensageiros e os ter feito sair por outro caminho? Assim como o corpo sem a alma é morto, assim também a fé sem obras é morta. (Tiago 2, 13-26)

Essa fé deve vir acompanhada de boas obras não porque a justificação já ocorreu e por isso o homem pratica boas obras, como conseqüência, mas porque a justificação deve permanecer uma realidade que o homem, além da necessidade de continuar crendo, deve praticar as boas obras. É um processo, não um evento único.

Por isso disse Jesus ao jovem rico sobre a necessidade da guarda dos mandamentos:

Um jovem aproximou-se de Jesus e lhe perguntou: Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna? Disse-lhe Jesus: Por que me perguntas a respeito do que se deve fazer de bom? Só Deus é bom. Se queres entrar na vida, observa os mandamentos. (Mateus 19,16-17)

Jesus não respondeu ao jovem como respondem os protestantes atualmente. Não falou que basta ter fé, sem obra alguma, que o jovem estará apto a entrar na vida eterna. Do contrário, Jesus disse observa os mandamentos como forma de dizer que não basta somente crer, mas praticar aquilo que crê. Quando dizemos Amo a Deus sobre todas as coisas, e na prática não operamos esse amor em nossas vidas, de nada adianta ter fé em Deus.

Abraão foi justificado diante de Deus porque teve fé, e essa fé o levou à obediência da fé, e mesmo diante de um horrível dilema, a morte de seu filho Isaac, sua atitude de submissão lhe valeu a justiça. Não foi somente pela sua fé que Abraão encontrou a justiça diante de Deus, pois tal dom ele já possuía, do contrário, não tendo fé que estava diante de Deus, não se submeteria à autoridade do próprio Deus a lhe falar. A justiça lhe foi concedida pela sua consciência de aceitação do que a fé lhe exigia: a obediência. A sua ação diante da ordem divina. Ora, a ordem divina, em Jesus, de que devemos, além de ter fé, elemento indispensável à salvação, guardar (praticar, operar) os mandamentos, é, na sua similaridade, a mesma figura Bíblica.

O grande problema no protestantismo como um todo em entender corretamente essa doutrina está no fato da sua origem. Entretanto vemos que mesmo no protestantismo primordial já se elevam os que discordam de uma visão strito da justificação somente pela fé. John Wesley, fundador do metodismo, e todos os descendentes de sua linhagem teológica, saem em defesa do livre-arbítrio. Ora, a aceitação do livre-arbítrio leva inevitavelmente ao caminho de que, em matéria de soteriologia e condenação, não é somente a fé que basta na salvação ou condenação do homem. Wesley escreve, em sua obra Operando Nossa Salvação, de 1788, que:

Deus opera em você; entretanto, você pode operar. Caso contrário, seria impossível. Se ele não fizesse o trabalho, seria impossível a você realizar a sua própria salvação.

Ainda assim, isso não é desculpa para aqueles que continuam no pecado, e colocam a culpa em seu Mestre, dizendo, “É Deus apenas que deve estimular-nos; já que não podemos estimular nossas próprias almas”.

Entretanto, visto que, como Deus opera em você, você está agora capacitado para operar a sua própria salvação.

Deus opera em você, entretanto, você deve operar em si mesmo. Você deve ser “um trabalhador junto com ele”, (essas são as mesmas palavras do Apóstolo), do contrário, ele irá parar de operar.

Para Lutero a única via para a justificação do homem é a prisão da vontade (de servo arbitrio). O homem é um ser pecador, e necessariamente morrerá pecador. Nunca deixará de pecar, então somente deve haver um único jeito desse homem ser salvo: se o pecado não influenciar na salvação.

Ora, Lutero, devido a angústia desse pensamento e a pressa de encontrar uma saída, leu que Paulo escreveu que as obras da lei não servem para justificar o homem diante de Deus. Logo entendeu que obra alguma, sejam elas obras da lei ou sejam boas ou más, influenciam no processo de justificação, passando então a ensinar que o homem que tiver fé em Jesus como seu salvador, já estará salvo, e ele deverá crer firmemente nisso, posto que, por mais que seja pecador, esses pecados não lhe tirarão a salvação.Por isso se diz que a justificação protestante é forense, ou imputada, porque Deus na verdade declara que o homem é justo, encobrindo sua multidão de pecados. O pecador não precisa deixar de pecar para ser delcarado justo.

Então a questão do pecado deixava de ser um fator, uma vontade a ser evitada a qualquer custo pelo homem. É por isso que Lutero ensinava o famoso pecca fortiter

Esto peccator et pecca fortiter, sed fortius fide (Seja um pecador, e peca fortemente, mas creia ainda mais firmemente) (H. Grisar)

Entretanto devemos ter em mente, e no coração que Deus parte a cabeça de seus inimigos, o crânio hirsuto do que persiste em seus pecados. (Salmo 67,22)

Para Lutero, por mais que o homem peque, sua fé o salva. O pecado não o condena. Porém como o pecado não condena se a Bíblia em sua extensão nos ensina a não cometer pecados? Então a saída de Lutero foi dizer que o pecado não é um ato livre do homem, mas de Deus somente. É Deus quem age sobre a vontade do homem. Então obras boas ou obras más não são mais atos vindos da vontade do homem, mas unicamente da vontade de Deus, e Deus escolhe quem quiser para salvar ou condenar, independentemente da prática das boas ou más obras.

Deus salva pecadores e condena inocentes. É esse o núcleo da predestinação ensinada por Lutero e Calvino. Absurdo? Também Lutero o achou, por isso escreveu: Deus age sempre como um louco.

Porém não é isso que ensina a Escritura. Devemos ter fé em Deus, e praticar boas obras. Sem fé é impossível agradar a Deus, e se não guardamos os mandamentos, não alcançamos a vida eterna.

A Justificação e a Igreja Católica:

Vejamos, então, o que a madre Igreja nos ensina sobre tão complexo e necessário assunto:

A graça do Espírito Santo tem o poder de nos justificar, isto é, purificar-nos de nossos pecados e comunicar-nos “a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo” e pelo batismo.

Mas, se morremos com Cristo, temos fé de que também viveremos com Ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre Ele. Porque, morrendo, Ele morreu para o pecado uma vez por todas; vivendo, Ele vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6,8-11).

Pelo poder do Espírito Santo, participamos da Paixão de Cristo, morrendo para o pecado, e da ressurreição, nascendo para uma vida nova; somos os membros de seu Corpo, que é a Igreja , os sarmentos enxertados na Videira, que é Ele mesmo:

Pelo Espírito, temos parte com Deus. (…) Pela participação Espírito, nós nos tornamos participantes da natureza divina. (…) Por isso, aqueles em quem o Espírito habita são divinizados.

A primeira obra da graça do Espírito Santo é a conversão que opera a justificação segundo o anúncio de Jesus no princípio do Evangelho: “Arrependei-vos (convertei-vos), porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 4,17). Sob a moção da graça, o homem se volta para Deus e se aparta do pecado, acolhendo, assim, o perdão e a justiça do alto. “A justificação comporta a remissão dos pecados, a santificação e a renovação do homem interior.”

A justificação aparta o homem do pecado, que contradiz o amor de Deus, e lhe purifica o coração. A justificação ocorre graças à iniciativa da misericórdia de Deus, que oferece o perdão. A justificação reconcilia o homem com Deus; liberta-o da servidão do pecado e o cura.

A justificação é, ao mesmo tempo, o acolhimento da justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo. A justiça designa aqui a retidão do amor divino. Com a justificação, a fé, a esperança e a caridade se derramam em nossos corações e é-nos concedida a obediência à vontade divina.

A justificação nos foi merecida pela paixão de Cristo, que se ofereceu na cruz como hóstia viva, santa e agradável a Deus, e cujo sangue se tornou instrumento de propiciação pelos pecados de toda a humanidade. A justificação é concedida pelo Batismo, sacramento da fé. Toma-nos conformes à justiça de Deus, que nos faz interiormente justos pelo poder de sua misericórdia. Tem como alvo a glória de Deus e de Cristo, e o dom da vida eterna:

Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas, justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que crêem pois não há diferença, sendo que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus. Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, no tempo da paciência de Deus; ele queria manifestar sua justiça no tempo presente, para mostrar-se justo e para justificar aquele que tem fé em Jesus (Rm 3,21-26). (Catecismo da Igreja Católica, 1987-1992)

Vedes como o homem é justificado pelas obras e não somente pela fé? (Tg 2,24)

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