O falacioso Protestantismo (Parte 2/2)

Um leitor nos escreveu questionando alguns pontos do meu texto “O Falacioso Protestantismo”. Ele acha que nós devemos trabalhar por conta dele, mesmo quando deixamos bem claro em nosso formulário de contato que fazemos o apostolado de forma voluntária e no pouco tempo livre. Escrevemos artigos e ainda temos que responder aos leitores. Esse leitor quase sempre nos questiona com dúvidas que já foram abordadas diversas vezes em diversos artigos. Vou respondê-lo mas espero que da próxima vez ao menos tenha o trabalho de procurar na nossa ferramenta de busca os textos que respondem suas “dúvidas”

Ele diz que, mesmo nas entrelinhas, há no meu artigo uma “uma certa admiração do autor aos reformadores do passado”. Ledo engano. O problema do mundo atual é a falta de honestidade até mesmo para fazer uma crítica saudável e bem fundamentada. Eu não preciso maltratar o que é fato na formação dos Reformadores para considerá-los os pais da revolução e os responsáveis por abrir a porteira do relativismo e anti-tradicionalismo. Se dissesse no meu artigo que os primeiros teólogos protestantes eram estúpidos e ignorantes na fé estaria fazendo uma afirmação mentirosa. Para derrubar o erro devemos ser sinceros ao conhecê-lo – conhecer o honestidade do erro. Hoje, o mundo se encontra tão acostumado com a desonestidade que até mesmo essa minha inocente afirmação – disse, no meu texto, que os Pais da Reforma, em sua maioria, eram homens doutos e cultos – é vista como uma certa admiração, mesmo que implícita.

Na seqüência o nosso leitor diz; “O grande avanço do protestantismo é justamente por permitir que o evangelho alcance alguém sem ferir os valores culturais de cada um, desde que estes valores não firam os dogmas do cristianismo bíblico.” Aqui há um erro tamanho. Primeiro, devemos partir da premissa de que se a Verdade é Verdade Ela se encontra acima das leis, costumes e culturas. Não é a Verdade que se adapta ao mundo em sua diversidade, mas são os homens que buscando vivê-La se modificam para elevar-se. O verdadeiro cristianismo dignifica e santifica as culturas, não o contrário. Depois ele nos diz que essas adaptações não podem ferir os dogmas bíblicos. Ora, até mesmo as igrejas protestantes no mesmo país não chegam a um mínimo consenso. O mesmo Livro, dentro do protestantismo, permite e não permite o batismo de crianças, autoriza e não autoriza a confecção de imagens, defende e não defende a devoção aos santos, institui e não institui a Ceia. Se a Escritura é Revelada ela não se contradiz, afinal onde há a contradição há a mentira, logo não existe a plenitude da Verdade.

Depois o nosso leitor afirma: “A ciência no meio protestante é usada para comprovar fatos e assim alimentar a fé dos cristãos no que diz respeito a veracidade bíblica. Descobertas cientificas que contradiz as escrituras são totalmente descartadas pela doutrina protestante, e isto, em qualquer denominação. Não é necessário nenhuma ciência humana para crermos na suficiência da Biblía como regra de fé.” Bem, se a ciência é ciência de fato, ou seja, comprometida com a verdade, ela sempre vai corroborar a correta hermenêutica bíblica, afinal todas as verdades se originam da própria Verdade. Vejamos por exemplo as descobertas das catacumbas em Roma, onde se encontravam as tumbas dos mártires e imagens de santos dos primeiros séculos do cristianismo. Nós sempre cremos e vamos continuar crendo, a arqueologia apenas corroborou aquilo que já era do conhecimento da Igreja. A mesma coisa vale para a descoberta do túmulo de São Pedro abaixo da Basílica; a tradição sempre nos informou que era lá que ele se encontrava, mas só no séc. XX, durante uma reforma do piso, que se constatou que os restos mortais do Primeiro Papa ali repousavam.

O que hoje vem ocorrendo no protestantismo é a utilização de conteúdos extra-bíblicos – históricos, arqueológicos etc – para desenvolver uma hermenêutica centralizada naquela conversa de um cristianismo primitivo e da não-existência de uma Igreja visível. Na verdade eu posso dizer que TODA a interpretação da Escritura dentro da fé protestante parte de um arcabouço extra-bíblico. Vejamos. A Sola Scripitura afirma que a Bíblia é a única medida da fé – mesmo os primeiros reformadores, principalmente anglicanos e luteranos, acatando os Credos – apostólico, niceno e atanasiano, principalmente – desenvolvidos nos Concílios da Igreja – e que o seu entendimento é pessoal; cada um pode interpretá-la. Ora, isso abriu as portas para o subjetivismo hermenêutico. Igrejas institucionalizadas e visíveis, como a anglicana e as nacionais luteranas – por desenvolverem uma estrutura mais aprimorada conseguiram, por muito tempo, estipular uma interpretação menos heterogênea da Bíblia nas suas fileiras. Ademais, desde o séc. XIX foram invadidas pelo espírito evangélico, oriundo dos homens influenciados pelo pensamento calvinista e puritano. Com isso, com a consolidação dessa corrente reformista que rejeitava a Igreja como comunidade visível e estável,  até mesmo nessas denominações mais próximas da Tradição a diversidade hermenêutica passou a pulular.

O fiel pode interpretar a Escritura de maneira pessoal, isso, a priori, não identificaria uma grande variedade de interpretações, mas é o que ocorre, e por que? O crente protestante, ao ler a Bíblia, já traz consigo suas crenças e vontades pessoais, seus vícios e objetivos, ele chega até o Livro com premissas claras e planos já traçados, mesmo que inconscientes. Quando ele lê a Escritura apenas busca autenticar o que já pensava, confirmar o que já pretendia confirmar. Isso é um respaldo extra-bíblico claríssimo. Como já disse, o protestantismo abriu espaço para o subjetivismo; enquanto os católicos chegam até a Escritura com os pressupostos da Tradição – Tradição que fez a Escritura – os protestantes, por a rejeitarem, vão até a Escritura com os pressupostos individuais. A ciência, na atualidade, apenas serve como mais um respaldo extra-bíblico. O que o nosso leitor esquece é que por conta da Livre-Interpretação a cada dia novas hermenêuticas do Livro nascem e servem como base para a fundação de novas seitas, com isso, pautados na ciência, pastores, bispos e “bispas” desenvolvem interpretações que partem desse conteúdo que não se encontra na Escritura. Na verdade a ciência não é tão comumente utilizada; a grande massa protestante prefere lançar mão do próprio Eu como a medida hermenêutica. Já exegetas e teólogos de destaque dentro do pensamento reformado, esses sim, baseados na ciência e na teologia, desenvolvem interpretações consolidadas por meio da interferência de fatores externos ao próprio Livro.

O leitor ainda afirma que “O grande problema do catolicismo é não aceitar opiniões e até mesmo punir os que tem opiniões que contradizem as suas. A história comprova isto, principalmente no tempo da chamada “santa inquisição” (E que santa hein?!?!?).” Pois bem, opinião nós temos sobre jiló, não sobre a doutrina cristã. Cristo deixou o Magistério, afinal instituiu uma Igreja Visível, com o múnus de guiar e ensinar. Pautados nesse poder legitimamente cristão os católicos confiam e seguem os ensinamentos magisteriais. O leitor fala que a “história comprova”. Ora, será que ele esquece que o desenvolvimento intelectual do Ocidente se deu graças a Igreja? Que as Universidades católicas eram redutos do saber? A fidelidade a Verdade, a doutrina Revelada, não inibe a produção intelectual, ao contrário. Os dogmas e os ensinamentos cristãos, que são eternos, evoluíram e se aprofundaram através, justamente, da lapidação da capacidade dos fiéis e do clero de compreender com mais maestria a grandeza eterna da mensagem cristã. Para ficar mais caricata sua contra-argumentação ele cita a Santa Inquisição: é claro que excessos existiram, mas foi graças ao poder inquisitorial que se desenvolveu, por exemplo, o sistema penitenciário – alguém por acaso não reparou que o nome Penitenciária vem de penitência e que a cela do prisioneiro se chama cela porque era assim que era designado o quarto do monge? De todo o modo, o leitor esquece que o protestantismo não só desenvolveu uma Inquisição como fez dela uma máquina de matar graças a influência do espírito calvinista e puritano.

Um ponto a ser levado em consideração é que algumas igrejas protestantes, como a anglicana e as evangélicas-luteranas, se aproximam, em muito, da institucionalização eclesiástica, ou seja, uma igreja não só invisível, mas visível com sua hierarquia e seus sacramentos. Ou seja, a afirmação do nosso leitor de que “Cada individuo tem o direito de exercer o chamado livre arbítrio e isto está ligado a opiniões também” seria inválida até mesmo entre certos protestantes; a opinião pessoal, oriunda da livre interpretação bíblica, dentro de algumas denominações protestantes – principalmente nas mais antigas – jamais colocaria em discussão verdades consolidadas e vivenciadas a séculos. Assim começou a ocorrer no anglicanismo, com mais força, a partir do séc. XIX, através da invasão do espírito evangélico, e também nas igrejas nacionais luteranas da Escandinávia. Entre elas havia um forte espírito institucionalizado, um cultura eclesiástica e até mesmo dogmática, mas que passou a ser minada com a invasão do mais simples pensamento reformado, daí, por exemplo, o fortalecimento dos movimentos de Alta Igreja. Nosso leitor fala muito do “protestantismo”, mas são tantos “protestantismos” que ele não dá conta de defender todos com a mesma argumentação.

Quase no final do texto ele diz que os movimentos carismáticos “Através de capanhas bem elaboradas, apelaram para os sentimentos dos fiéis no sentido de dete-los dentro da Igreja através de slogans e chamadas a conciencia católica sendo o alvo principal aqueles que migraram para o movimento pentecostal em busca de renovação e salvação em suas vidas, pois já estavam cansados de uma pratica litúrgica envelhecida.” Outro erro crasso. Carismáticos acreditam na mesma Igreja e seguem os mesmos ensinamentos de toda a verdadeira cristandade. É fato que a origem primordial do espírito do movimento é no pentecostalismo americano, mas assim como São Francisco purificou a heterodoxia contida entre os hereges que radicalizavam a vivência da pobreza os católicos fizeram e fazem o mesmo em relação ao carismatismo. O leitor novamente se engana ao falar da prática litúrgica; muitos dos mais radicais defensores da fidelidade litúrgica vem da Renovação Carismática. Alguns setores frutos da RCC, como a Canção Nova, são próximos do Opus Dei, Legionários de Cristo, Arautos do Evangelho etc. Ora, a Toca de Assis e Pe. Roberto – que celebra com extrema piedade – vieram do movimento carismático. Se há um ranço anti-tradicional na RCC é por conta de compreensões obtusas e exageradas mas que, graças a Deus, estão sendo desfeitas com o conhecimento profundo da doutrina e da beleza do mistério que se faz presente nas celebrações eucarísticas.

Voltando um pouco, a busca por uma hermenêutica mais homogênea, dentro do protestantismo, perpassaria por duas possibilidades: ou a reforma do princípio da Sola Scriptura, adotando também a Tradição como medida de fé, assim completando as duas formas de transmissão da Revelação – a não ser o Magistério – ou, então, rever a Livre-Interpretação por meio da institucionalização do protestantismo, com igrejas visíveis e estáveis. Isso necessitaria uma maior aproximação com a Tradição e um choque com a realidade das seitas que proliferam na fé protestante.

O nosso leitor disse que “O grande avanço do protestantismo é justamente por permitir que o evangelho alcance alguém sem ferir os valores culturais de cada um”. Ora, ele fala como se as diferenças entre as denominações protestantes fossem unicamente normativas e disciplinares. Absolutamente não. A diversidade protestante é por conta da diversidade de maneiras, que há no protestantismo, de se entender a fé. Anglicanos consideram luteranos hereges, luteranos consideram calvinistas hereges e calvinistas consideram anglicanos hereges. Claro que usamos como medida a ortodoxia dessas vertentes, sem o relativismo reinante. Vejamos um caso interessante. No séc. XIX a Igreja Anglicana cogitava a possibilidade de criar, juntamente com a Igreja Evangélica da Prússia, uma arquidiocese em Jerusalém. Assim disse o Parlamento em 1841:

“O bispo ou os bispos assim consagrados poderão exercer dentro dos limites marcados por S. M., para esse fim, nos países estrangeiros, a jurisdição espiritual sobre os ministros das congregações britânicas da Igreja unidade da Inglaterra e da Irlanda sobre tais outras congregações protestantes que talvez desejem colocar-se sob sua autoridade” 

Michael Solomon Alexander, um judeu convertido ao anglicanismo, foi sagrado Bispo pelo Arcebispo de Cantuária e mandado para Jerusalém onde se tornou o Pastor da Anglo-Prussian Union (União Anglo-prussiana). Essa diocese congregava crentes que não tinham sequer a mesma fé: anglicanos e luteranos. A criação desse bispado gerou a revolta nas duas igrejas: no luteranismo os velho-luteranos e os neo-luteranos mostraram total aversão ao projeto, consideravam uma afronta a crença reformada. Entre os anglicanos os highchurchman (homens da Alta Igreja) fizeram radical oposição – esse fato foi a gota d’água para John Henry Newman, depois disso ele se distanciou do anglicanismo e nunca mais voltou. Em suma, os crentes luteranos e anglicanos fiéis as suas doutrinas rechaçavam a aliança porque não admitiam a concordância com o que consideravam erro. No projeto não havia referência a conversão, diálogo doutrinário, absolutamente nada. Anglicanos e luteranos iriam rezar unidos mesmo separados pela fé. As críticas foram tão duras que anos mais tarde a Igreja da Inglaterra pediu que o Bispo luterano (havia um rodízio) subscrevesse os Trinta e Nova Artigos e que fosse sagrado pelo rito inglês. Com a discordância da Prússia a aliança foi dissolvida e a diocese tornou-se unicamente anglicana.

Claro que hoje um fato desse não ocorreria, já que reina na fé reformada o relativismo religioso a ponto do nosso leitor chamar de ‘grande avanço do protestantismo” diferenças e contradições que não são meramente culturais, como ele disse, mas doutrinárias, com conseqüências tão acentuadas como a distinção entre protestantes e católicos.

Termino minha resposta com as palavras de Lord Macaulay, protestante, historiador, político, foi Ministro da Grã-Bretanha

“Não há nem houve jamais sobre a terra nenhuma obra de sabedoria política e humana que tanto mereça ser estudada como a Igreja católico-romana. A história desta Igreja liga entre si as duas grandes fases da cultura humana. Não se manteve nenhuma outra instituição que faz voltar nossos olhos para tempos em que do Pantheon se erguia a fumaça dos holocaustos, e em girafas e tigres eram levados ao anfiteatro. As casas reais mais soberbas são de ontem se comparadas com os papas. Quem mais se lhe aproxima, quanto à idade, é a república de Veneza; mas esta república era nova, comparada com o papado; ela passou; enquanto continua existindo papado, não como ruína, mas sempre vivo e na plenitude de seu vigor. A Igreja católica sempre prossegue enviando seus mensageiros para os pontos mais extremos do orbe, tão zelosos como aqueles que outrora, com Agostinho, desembarcaram na praia de Kent. Enfrenta reis inimigos ainda com o mesmo espírito com que enfrentou a Átila. A Igreja assistiu ao início de todos os regimes e de todas as instituições que o nosso mundo conhece, e não estamos absolutamente certos de que ela não assistirá também ao desmoronamento de todos eles. Ela já era grande e respeitada quando ainda nenhum pé anglo-saxão pisara terra britânica. Ela o era antes que os francos transpusessem o Reno, quando em Antioquia ainda florescia a eloqüência helênica e nos templos de Mekka ainda se adoravam ídolos pagãos. E ela, provavelmente, ainda continuará de pé na sua força em nada enfraquecida quando, um dia, um viajante da Nova Zelândia, no meio de uma solidão completa, se postar sobre uma das pilastras quebradas da ponte do Tâmisa [Tower Bridge, em Londres], afim de esboçar as ruínas da catedral de São Paulo [Catedral Anglicana, sede do Bispo de Londres]” 

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