O matrimônio entre protestantes é válido?

Prezados colunistas: Estive conversando com uma amiga sobre a validade ou não do casamento protestante. O Batismo, por exemplo, é um sacramento que tem como matéria a água, como intenção a morte e ressurreição em Cristo e como forma as palavras: “eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Tal sacramento não precisa, necessariamente, da presença de um sacerdote. Em condições extremas, um leigo pode realizá-lo. O Batismo das Igrejas protestantes é reconhecido pela Santa Igreja Católica. Da mesma forma, o casamento tem como matéria os noivos, a intenção honesta e sincera de unir-se até que a morte os separe, e a forma que deve ser o “Sim” de ambas as partes, mediante pergunta do testemunho oficial do Vaticano, o padre, naquele momento. É um sacramento católico. Os protestantes, pelo que sei, não crêem em sacramentos, chamam de bênçãos essas atitudes. Mas, nem por isso, a Igreja deixa de reconhecer o batismo que professam em nome de Cristo. O casamento, da mesma forma, seria, então, reconhecido pela Santa Igreja Católica? O casamento protestante é válido até que a morte os separe? Ou não passam de amancebados, tal como se considera aqueles que somente se unem civilmente? enso que é tão válido quanto o batismo que fazem. Minha amiga diz que o batismo é, mas o casamento não. Fico, então, na dúvida. Procurei em todo sítio algo a respeito. E não encontro. Aguardo resposta (Emanuelle)

Prezada Emanuelle,

Pax Christi!

A dúvida que você e sua amiga têm é muita comum… Tão comum que o renomado canonista pe. Jesús Hortal (sj) já teve a oportunidade de esclarecer MUITO BEM esse assunto na Revista “Direito e Pastoral”, publicação nacional especializada em Direito Canônico.

Como a sua questão é de extrema relevância, aproveitamos a oportunidade que você nos proporciona para reproduzirmos o texto do pe. Hortal e, assim, contribuirmos para a divulgação de tão importante artigo (observe como o caso abordado por pe. Hortal, embora um pouco mais complexo, se enquadra perfeitamente com a sua pergunta), com grifos nossos:

“PERGUNTA: João Silva e Judite Amaral, ambos de família protestante (batistas), em cuja fé foram batizados, casaram-se pelo civil e receberam a bênção matrimonial perante o pastor de sua igreja . Viveram seis anos casados, de cuja união nasceu-lhes um filho. Hoje estão separados e se divorciando. João, tendo se afastado de sua igreja, conheceu Regina, moça católica praticante que o levou para a Igreja Católica e estão agora pensando em se casar no religioso. Quais as chances de João e Regina? Como devem proceder?

RESPOSTA: Já perdi a conta das vezes em que me consultaram a respeito de casos semelhantes, o que parece indicar uma problemática bastante freqüente. A resposta, por outro lado, é bastante simples, se se atende aos princípios em que se baseia o nosso Direito Matrimonial .

Partamos do cânon 1.055, §1: ‘O pacto matrimonial…entre batizados foi por Cristo Senhor elevado à dignidade de sacramento’.

O Código, seguindo toda a Tradição da Igreja, inclusive a doutrina do Concílio de Trento, afirma que o sacramento não é uma realidade paralela ao matrimônio natural entre batizados, mas uma transformação intrínseca (‘elevação’) da própria instituição matrimonial, tornando-a sinal e instrumento da graça salvífica de Cristo.

Daí que no §2 do mesmo cânon acrescente: ‘Portanto, entre batizados não pode haver contrato matrimonial válido que não seja por isso mesmo sacramento ‘.

Advirtam-se as palavras ‘por isso mesmo’ quer dizer que a distinção entre contrato e sacramento, quando se trata do matrimônio entre batizados é uma distinção conceitual ( distinctio rationis, como dizíamos na Filosofia).

Repitamos: não existem duas realidades paralelas – contrato matrimonial por um lado e sacramento pelo outro – mas uma única realidade complexa, que coalesce de um duplo elemento, humano (o consentimento) e divino (a graça significada e conferida). Não esqueçamos que estamos na ordem sacramental onde, a partir da encarnação de Cristo, a própria ordem sensível torna-se ordem salvífica.

Tentemos compreender isso mais plenamente. O batismo não é um fato de conseqüências apenas extrínsecas (acolhida na comunidade eclesial), mas que transforma intrínsecamente o ser do homem. Para dizê-lo com as palavras do próprio Código: nele ‘os homens…são de novo gerados…configurados com Cristo por caráter indelével’.

Ou seja, o batizado passa a ter um ‘ser crístico’, a levar pelo mundo essa ‘figura’ (configurados) de Cristo que ficou impressa no ser dele.

Daí que, na ordem matrimonial, o consentimento passe a ter um significado e uma realidade muito mais profundos do que o tinham naturalmente . Todo matrimônio tem uma dimensão de sagrado, porque indica a entrega da vida, da pessoa toda, dessa vida que vem de Deus e a Ele se dirige.

Mas o matrimônio entre batizados, pelo ser crístico que encarnam, está destinado a apresentar perante o mundo a união indissolúvel entre Cristo e a sua Igreja, tal como São Paulo ensina na Carta aos Efésios.

O cristão não se pode desvestir desse ser crístico, porque ele é um caráter indelével. Goste ou não goste, está marcado para a eternidade. Sempre será alguém destinado a essa reapresentação de Cristo.

É aí onde se insere a problemática do matrimônio entre protestantes.

Sublinhei, inicialmente, as palavras, duas vezes repetidas no cânon 1.055 – entre batizados – porque, CONTRA O QUE ERRADAMENTE PENSAM ALGUNS, a dignidade sacramental NÃO É UMA PROPRIEDADE EXCLUSIVA DO MATRIMÔNIO ENTRE CATÓLICOS, mas constitui uma dimensão intrínseca de QUALQUER MATRIMÔNIO ENTRE BATIZADOS .

A objeção que já ouvi inúmeras vezes é: ‘Mas, para eles, não é sacramento’. O que significa esse ‘ para eles’? Que a doutrina das igrejas nascidas da Reforma nega a sacramentalidade do matrimônio? Ou que, pelo fato deles pensarem assim , o sacramento não existe?

Se fosse o primeiro caso, ainda poderíamos concordar, embora a resposta não seja tão nítida, dado o conceito estreito de sacramento com que essas igrejas trabalham. Mas não é essa uma questão que nos deva prender neste momento.

Vamos à segunda hipótese: porque os protestantes ensinam que o matrimônio não é sacramento então os matrimônios entre protestantes ficariam numa ORDEM PURAMENTE NATURAL, sem a elevação à ordem sacramental?

NÃO, DE JEITO NENHUM. Quando falamos de sacramento não nos movemos num terreno subjetivo, mas objetivo. Não se trata do ‘para eles’, mas do que Cristo quis e instituiu. Por isso, a Igreja Católica afirma que ENTRE BATIZADOS não pode haver contrato matrimonial válido que não seja POR ISSO MESMO sacramento. A única possibilidade de invalidar o sacramento é a de invalidar o próprio matrimônio.

De fato, isso pode acontecer, mas não por um simples ‘pensar’ e sim por um ‘querer’ positivo: ‘O erro a respeito…da dignidade sacramental do matrimônio, contanto que NÃO DETERMINE A VONTADE, não vicia o consentimento matrimonial’ (cânon 1.099). ‘Contudo, se uma das partes ou ambas, por ato positivo da vontade, excluem…uma propriedade essencial’ – no nosso caso, de matrimônio ENTRE BATIZADOS, a sacramentalidade – ‘contraem invalidamente’ (cânon 1.101, §2).

Vamos, então, aos nossos João e Judite: Os DOIS eram protestantes, BATIZADOS, mesmo que pela confissão a que pertencem (batistas) o tinham sido na idade adulta e por imersão. Em princípio, devemos supor a validade desse batismo, porque a matéria e a forma empregada pelos batistas são perfeitamente válidas e porque a intenção prevalente do ministro é, sem dúvida, realizar aquilo que Cristo mandou (cf. cânon 869, §2).

Por isso, o consentimento matrimonial deles estava destinado a ser ELEVADO à dignidade sacramental, de acordo com a VONTADE DO CRISTO SENHOR.

Será que eles EXCLUÍRAM o sacramento quando casaram? Podem até ter pensado que não se tratava de sacramento, mas quiseram POSITIVAMENTE rejeitá-lo? Não parece ser essa a vontade prevalente dos protestantes, nem sequer dos pastores…

Uma coisa é ‘pensar que’ e outra diferente ‘querer que’. Logo, em princípio, devemos supor, de acordo com a norma do cânon 1.060 (‘o matrimônio goza do fazor do Direito’), que o matrimônio entre João e Judite FOI NÃO SÓ VÁLIDO, MAS TAMBÉM SACRAMENTO e tão sacramento como o realizado entre dois católicos, na Igreja Católica.

Não vale argumentar, neste caso, com a falta de ‘forma canônica’. Esta não é algo intrínseco ao ser sacramental, mas apenas um requisito instituído pela Igreja Católica, que fixa as condições para a sua observância. Por isso, ela ‘deve ser observada, se ao menos uma das partes contraentes tiver sido batizada na Igreja Católica ou nela tenha sido recebida, e não tenha dela saído por ato formal’ (cânon 1.117).

Pelo que levamos dito, vê-se que O MATRIMÔNIO ENTRE JOÃO E JUDITE É RATIFICADO (PELO SACRAMENTO) E CONSUMADO (ATÉ TIVERAM UM FILHO!). Por isso, ‘NÃO PODE SER DISSOLVIDO POR NENHUM PODER HUMANO NEM POR NENHUMA CAUSA, EXCETO A MORTE’ (cânon 1.1141).

A única possibilidade que haveria – mas é algo puramente hipotético – seria que o matrimônio em questão fosse nulo por algum OUTRO motivo, como um impedimento dirimente ou um vício do consentimento, mas nunca pela ‘falta de forma’, que não houve.

Diferente seria o caso – não tão raro quando se trata de ‘batistas’ que nem sempre são admitidos ao batismo – em que uma ou ambas as partes não estivessem batizadas, porque aí poderia entrar em questão o privilégio paulino ou solicitar ao Santo Padre a dissolução do matrimônio em favor da fé. Mas não é esse o caso de que tratamos.”

Como você mesmo pode verificar, cara Emanuelle, você TINHA RAZÃO ao afirmar à sua amiga que o matrimônio protestante pode ser tido como válido (e, portanto, indissolúvel)…

Obrigado por nos escrever,
[]s

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