O Monaquismo: dos primórdios até o século VII (Parte 1/2)

INTRODUÇÃO

 

O objecto do presente estudo é o monaquismo, que constitui o grande alicerce para a expansão do Cristianismo à escala mundial. Não é nosso propósito desenvolver este tema relativamente ao período do seu grande apogeu – Idade Média -, mas sim referir-nos às suas origens e seus antecedentes, de modo a podermos compreender melhor como se chegou a um período tão áureo na vida monacal medieval. Debruçar-nos-emos, pois, sobre o tempo em que o Monaquismo nasceu, à margem da Igreja oficial, que tinha dificuldade em reconhecer o valor e a utilidade que os mosteiros poderiam ter na expansão e afirmação do ideal Cristão,1 por suspeitar que eles espalhavam doutrinas duvidosas, para depois ir ganhando terreno no seu seio, transformando-se num meio imprescindível na afirmação da doutrina de Cristo.

Focaremos, igualmente, a evolução e o percurso do monaquismo, primeiro no Médio Oriente, seguindo-se o Norte de África e, finalmente, a Europa Central e Ocidental. Tentaremos demonstrar a importância e o contributo das principais Regras que ajudaram a fornecer bases bem precisas para “uma vida monástica mais consistente”2.

Em capítulo detalhado, desenvolveremos com maior pormenor a questão do monaquismo nas Ilhas Britânicas, com especial relevo para o monaquismo celta, que teve características próprias e bem definidas.

Tentaremos demonstrar que a Cristianização das Ilhas Britânicas não foi um processo pacífico, e que a uma determinada altura estabeleceu o caos e a confusão, devido à coexistência de várias correntes da vida monástica: a Celta e a de Roma.

Deter-nos-emos no Sínodo da Whitby (673), do qual resultou “a unificação religiosa da Inglaterra sob a orientação de Roma”3, embora tenham persistido ainda alguns redutos do Monaquismo Celta, sobretudo na Irlanda.

Escolhemos este facto por considerarmos que ele culmina um período bem demarcado do Monaquismo Ocidental – o seu nascimento e implantação, que será fundamental para o período de grande apogeu da vida dos mosteiros que se lhe seguiu e que, inclusivamente, originou a criação e a difusão de novas ordens monásticas.

Quanto à metodologia de trabalho utilizada, a mesma teve por base bibliografia variada e que é indicada em secção própria, de modo a possibilitar o confronto de ideais e a superação de lacunas que uma visão unilateral obrigatoriamente teria.

Esperamos que o nosso estudo ajude a uma reflexão e a uma sistematização sobre a maneira que os homens encontraram de chegar a Deus, tentando atingir a perfeição, meditando, alheando-se das coisas terrenas através da oração, humildade e obediência. A esse modo de vida religiosa se chamou MONAQUISMO.

 

CONCEITO DE MONAQUISMO

 

Ao depararmos com o temo Monaquismo, de imediato nos surge a ideia de isolamento e de alheamento do mundo. Com efeito, o Monaquismo é um sistema de vida de consagração à causa divina, que tenta chegar a Deus passando pelo recolhimento e uma vida de dedicação e interiorização.

A esta palavra associa-se uma outra – monge -, que deriva do grego monos, (único, só). Etimologicamente, designa aquele que vive solitário, dedicando a sua vida ao serviço de Deus, dedicação essa assumida livremente e que pressupõe o cumprimento das normas estabelecidas numa Regra, baseando-se sempre nos conceitos de castidade, pobreza e obediência.

Embora tenha assumido formas diferentes, como iremos verificar, o que é certo é que o Monaquismo tem sido uma constante na vida de várias religiões, à partida completamente díspares (ex: Monaquismo Budista versus Monaquismo Cristão), revelando-se acima de tudo como “algo universal e inerente à condição dos fiéis que pretendem desenvolver a sua vida espiritual no sentido da perfeição”4.

 

ORIGENS DO MONAQUISMO CRISTÃO

 

Desde os primórdios da Cristandade que os ideais livremente assumidos de virgindade e castidade em louvor do Reino de Deus foram motivo de admiração. Essa escolha era feita “por fiéis de ambos os sexos que abraçaram uma vida de plena imitação de Cristo e que, para além dos votos referidos, praticavam a oração e a mortificação paralelamente com obras de misericórdia”5.

Como causas deste procedimento, poderemos referir a “repugnância pela imoralidade reinante”6 e, sobretudo para as mulheres, o facto de esse tipo de vida lhes proporcionar uma certa emancipação, tendo em conta a servidão social que o matrimónio assumiia na época.

É curioso realçar o facto de, na maior parte dos casos, estes votos serem feitos sem quaisquer solenidades públicas, permanecendo as pessoas no seio das suas famílias, não tendo vestuário que os distinguisse das outras pessoas.

A partir do século IV começou a ser habitual a realização de um ritual de consagração das virgens, – o velario -7 que costumava ter lugar nas grandes festas litúrgicas e na presença de fiéis.

Este tipo de consagração a Deus foi-se generalizando cada vez mais, tornando-se quase numa moda, sobretudo nos meios aristocráticos. A ilustrar esta afirmação, poderemos citar o exemplo de Paulino de Nola e Terásia, casal da nobreza imperial romano-cristã, que “se desfizeram de patrimónios imensos e assumiram uma existência de fiéis discípulos de Cristo, segundo os ensinamentos do Evangelho”8. Importante se torna referir aqui a figura de São Jerónimo, que dirigiu espiritualmente os círculos ascéticos de nobres senhoras romanas, primeiro em Roma e depois na Palestina9.

As “virgens consagradas” terão sido, na nossa opinião, o embrião da vida monástica, uma vez que a sua praxis tinha a ver com a renúncia do mundo pelo ideal de Cristo, para além do facto de já possuírem uma forma de vida consagrada, ainda que muito incipiente.

 

MONAQUISMO ORIENTAL

 

Mas onde, e quando, terá sido a origem do fenómeno normalmente designado por Monaquismo, ou Monacato, se utilizarmos a terminologia de Fortunado de Almeida10?

Ao certo, não se sabe. É comum designar-se monge aquele que segue uma Regra antiga, mas o que é certo é que, muito antes de se terem estabelecido Regras, já havia formas de vida monástica baseadas na segregação do mundo – o contemptus saeculi -, como condição prévia para a purificação interior, abrindo o caminho da contemplação divina11.

João Cassiano, que depois de passar muitos anos entre os monges da Palestina, Egipto e Constantinopla se estabeleceu na Provença e fundou dois mosteiros em Marselha, onde permaneceu o resto da sua vida, considerava que o Monaquismo já vinha do tempo dos Apóstolos12. Outros apontam para a época de Jesus. J. Allegro, no seu livro O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto aponta para o estudo dos documentos encontrados já neste século nas margens do Mar Morto e que dão testemunho da vida monástica (essénios e terapeutas) na época de Jesus Cristo, e que teriam influenciado os primeiros Cristãos. Estas comunidades espalharam-se até à Tebaida e parece ter sido nessa região – fronteira entre a Ásia e a África -, que a tradição diz ter nascido o Monaquismo Cristão13.

Com a promulgação da liberdade de culto e religião decretada pelo Édito de Milão de Constantino, ser Cristão passou a não comportar os riscos de outrora,

Alguns, desejando levar uma vida mais fervorosa, menos enredada nas preocupações do mundo, partiram para o deserto praticando aí uma vida de pobreza e humildade de acordo com os preceitos do Evangelho, tendo sido designados por Padres do Deserto.

A maior parte vivia isolada, por vezes com alguns discípulos à volta de um mestre, só voltando a encontrar-se com a comunidade para a celebração da liturgia. Muito pouco se sabe sobre a sua vida, que apenas veio até nós através dos Apotegmas – textos que nos relatam os seus actos através das suas palavras e que nos apresentam homens submetidos à tentação que se dedicam a viver o ideal de perfeição ensinado por Jesus14.

Como expoente e símbolo deste tipo de vida monástica apelidada de anacoreta ou eremita, temos Santo António do Egipto, também conhecido por Santo Antão, que influenciou directamente através do seu próprio exemplo, e indirectamente através do espírito, um grande número de aderentes ao anacoretismo, o qual se revestia de duas formas: absoluto, (solidão total) e temperado (sob a direcção de um “pai” espiritual)15.

Graças à sua acção, esta forma de Monaquismo espalhou-se pelo alto Egipto, Palestina, indo até à Síria e à Mesopotâmia.

Mas o anacoretismo não foi a única forma de vida consagrada existente nesta época.

São Pacómio, coevo de Santo António do Egipto, trouxe ao Monaquismo novos elementos de grande importância – a vida em comum e a obediência a um superior religioso: cenobitismo16.

Ainda uma referência muito especial para o Cristianismo Copta que, de certa forma, foi uma consequência do Monaquismo Egípcio19. Graças à sua acção, O Cristianismo penetrou amplamente nas populações de camponeses de língua copta, principalmente porque os monges eram na sua maioria gente de condição humilde. Desde os tempos de São Atanásio, eram apoiantes acérrimos dos Patriarcas de Alexandria, a quem apelidavam de chefes religiosos e nacionais. Após o Concílio de Calcedónia (451), os monges, desconhecedores das disputas teológicas, seguiram incondicionalmente os seus patriarcas e caíram na heresia monofisista, surgindo assim outra corrente Cristã desvinculada de Roma e de Constantinopla que se foi isolando cada vez mais, sobretudo desde a conquista islâmica do século VII, passando a ser conhecida por Cristianismo Copta20.

 

MONAQUISMO OCIDENTAL

 

Herdeiro das tradições orientais, o Monaquismo Ocidental teve um papel de extrema importância na consolidação do ideal cristão.

Na Grécia, foi São Basílio, bispo de Cesareia, quem desenvolveu e organizou a vida dos ascetas, tendo escrito algumas “Regras”, que ainda hoje são observadas no mundo ortodoxo.

Aliás, a fundação de mosteiros no Ocidente está sempre ligada à elaboração de um conjunto de normas orientadoras na organização dos Institutos de Vida Consagrada, utilizando a terminologia do actual Código do Direito Canónico.

Santo Agostinho de Hipona foi outro nome deste período, escrevendo, igualmente, uma Regra que viria a obter grande sucesso na Idade Média. São Martinho de Tours notabilizou-se também, através da fundação de mosteiros, entre os quais se salientam os de Ligugé e Marmoutier. Referência ainda para os nomes de Columba e Patrício, grandes impulsionadores do monaquismo celta.

Primordial se torna falar de São Bento de Núrsia – “last but not least” -, cuja Regra iria reger durante vários séculos quase todos os mosteiros do Ocidente, tornando-se numa grande personagem, senão maior, entre aqueles que fundaram mosteiros e escreveram Regras, sendo justamente chamado “Pai dos Monges do Ocidente”21 e designado Patrono da Europa.

Para além de se basear nas suas próprias experiências recolhidas nos mosteiros que fundou e onde viveu (Subiaco e Montecassino), a sua Regra, estabelecida em meados do sec. VI, inspirou-se nas que então se praticavam: as de Pacómio, Agostinho e Cassiano.

Contudo, segundo Souther, R.W., no seu livro A Igreja Medieval, “parece hoje indiscutível que São Bento copiou quase literalmente grande parte da sua Regra, incluindo algumas das passagens mais famosas acerca do ensino espiritual, da Regra de um autor anterior conhecido como Mestre”22. De acordo com a fonte citada, as duas Regras apresentam no entanto algumas diferenças, entre as quais se salientam:

REGRA DO MESTRE

REGRA DE SÃO BENTO

– muitas generalidades, com pouca prática; longas descrições da vida no Paraíso e de natureza monástica.

– aspectos demasiado particularizados para serem significativos:

Regulamentação acerca do tossir, cuspir e respirar pelo nariz por forma a não ofender os anjos.

– revela espírito impetuoso e investigador do Mestre.

– o Abade parecia preocupar-se mais com os que se fingiam doentes.

– a obediência absoluta era uma virtude apenas alcançável por uns quantos monges perfeitos.

– omitiu-se tudo isto, conservando apenas o que tinha interesse prático, resumindo tudo o mais possível e conferindo-lhe claridade.

– deu grande ênfase à rotina exacta dos ofícios diários.

– prova-se a humildade que exigia aos próprios monges.

– o abade destinava-se acima de tudo a cuidar dos doentes.

– a obediência absoluta era uma virtude alcançável por todos os bem-aventurados.

 

Mas como e porque é que esta Regra se tornou o expoente máximo do Monaquismo Ocidental?

Em nosso entender, isso ficou a dever-se ao facto de a Regra fornecer bases concretas e precisas para uma vida monástica, conservando, todavia, uma certa flexibilidade, pretendendo indicar um caminho para uma nova ordem e incluindo pormenores de vida diária, indicações sobre os salmos a recitar, quais os livros a ler e sobre as pessoas responsáveis pelas várias actividades, entre outros aspectos da vida dos monges. Sendo abrangente, a Regra de São Bento tem como princípio base da sua doutrina o ideal de obediência de corpo e alma:

 

– aos princípios espirituais contidos nos Evangelhos;

– à Regra;

– ao abade;

 

“Aqueles que cumprem, devem, pelo trabalho de obediência, regressar a Deus, que abandonaram devido ao pecado da desobediência”23.

A figura do abade tem grande peso na ordem beneditina, considerado o vigário de Cristo na Comunidade. Logo, a sua palavra tem que ser ouvida como se fosse a do próprio Deus. O abade vai ter na Regra beneditina um papel de consolador e encorajador, sobretudo relativamente aos que incorrem na pena de excomunhão por cauda da desobediência24. Aliás, esta ternura tão pouco habitual em regras anteriores, vai ser uma das principais características da Ordem, conferindo-lhe um sentido universal, destinada a todos os homens da Terra, misturando severidade e rigor com ternura, apoio e compreensão.

A Regra de São Bento ajudou a diluir a ideia defendida no início do séc. VI, e suportada por Santo Agostinho, segundo a qual era difícil que um bom monge se tornasse um bom clérigo. “No one can both perform ecclesiastical (clerical) duties and remain by due order under monastic rule”25.

Com efeito, a Regra possibilitou a evolução e preparação dos monges, que inicialmente eram analfabetos na sua maioria, não tendo formação adequada para exercerem funções de presbíteros. A insistência numa vida em comunidade fechada – a estabilidade era um dos princípios bases da Regra-, produzia um tipo de monge mais civilizado que podia ser aproveitado para o clero secular após uma preparação adequada.

Quando São Bento faleceu, apenas três mosteiros abservavam as suas prescrições e trinta anos mais tarde o próprio mosteiro de Montecassino era destruído pelos Lombardos.

Ao ser eleito Papa, Gregório Grande, antigo monge beneditino, encarregou-se de propagar a Regra da sua Ordem tendo em mente dois objectivos bem definidos26:

 

1. favorecer o monaquismo, na medida em que era melhor para a expansão do Cristianismo;

2. desenvolver uma legislação unificada sobre a qual poderia exercer maior controle.

 

No final do seu pontificado já uma grande rede de mosteiros beneditinos cobria a Europa, entre os quais se salientaram as abadias de Jarrow, Malmesbury e Westminster, na Inglaterra, bem como as fundações antigas reconvertidas de Lérins e Marmoutier.

Gradualmente, e com o grande incremento dado por Gregório o Grande, o ideal beneditino foi-se espalhando e alicerçando tendo absorvido até a Regra de Columba, na Irlanda.

A Península Ibérica foi também influenciada pela corrente monástica que então se vivia na Europa.

De imediato ressaltam dois nomes: São Martinho de Dume, que na segunda metade do séc. VI trouxe à Galécia a doutrina do Monaquismo Oriental; de São Frutuoso de Braga, monge visigodo propulsor de um movimento ascético que sobreviveu à invasão islâmica, tendo composto uma Regra para monges e que mais tarde originou uma Regra comum.27.

No reino visigodo cristão vários Padres Hispânicos elaboraram Regras. Entre eles, salientaram-se São Leandro, com uma Regra para Virgens, dedicada a sua irmã Florentina, e Santo Isidoro, cuja Regra se destinou ao mosteiro Honorianense, na Bética.

A vida monástica na Hispânia estava subordinada aos prelados diocesanos-bispos, que tinham o direito não só de escolher o abade dos mosteiros mas também o de corrigir os excessos cometidos contra a Regra.

Este facto demarcou o monaquismo da Espanha goda do ideal beneditino, que impunha que o abade fosse eleito pela Congregação tendo a partir desse momento papel soberano sobre toda a comunidade.

No que se refere à província da Lusitânia, um dos seus mosteiros mais antigos foi o do Lorvão, segundo Fortunato de Almeida28, sendo provável que a sua fundação date de meados do séc. VI e que, a par dos mosteiros de Dume e de São Martinho de Tibães, constitui um marco importante da vida monástica em território que posteriormente viria a ser Portugal29.

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