O nó górdio da Sola Scriptura

A doutrina básica do protestantismo é a sola scriptura, segundo a qual todo e qualquer ponto de fé dos cristãos deve estar expresso na Bíblia. Há algumas variáveis nesta doutrina, o que, em absoluto, soa a novidade, uma vez que os protestantes, discordes em tudo o mais, não lograriam encontrar unanimidade justamente neste terreno.

Mas tais variantes não são de grande importância.

O importante é que todos os protestantes, sob pena de não serem considerados protestantes “ortodoxos” (se é que isto existe…), afirmam que a fé por eles professada se baseia exclusivamente na Bíblia. Afirmam, também, que a Tradição cristã, por ser corrompível (e, no mais das vezes, corrompida) não é fonte segura em matéria de fé e de doutrina.

Há inúmeras incongruências acerca esta teoria. Incongruências de todos os naipes e para todos os gostos. Incongruências lógicas, bíblicas e históricas. Não as pretendo expor, pois, neste mesmo site, o leitor as poderá encontrar aos borbotões.

Pretendo, se o Senhor o permitir, ir direto àquilo que eu considero ser o ponto central da questão.

Sempre me chamou a atenção o o fato de que a Bíblia nunca afirmou ser a única regra de fé dos cristãos. Parecia-me que a sola scriptura poderia ser resumida na seguinte frase: todos os pontos de fé dos cristãos estão contidos na Bíblia, exceto o sola scriptura.

Para escapar desta, cilada os protestantes são useiros e vezeiros em citar trechos biblícos que, ao invés de enunciar a sola scriptura, limitam-se a louvar os Escritos Sagrados (como se não houvesse outros tantos que louvam a Tradição…). De que forma e por quais caminhos um protestante, de um texto que louva a Bíblia, chega à conclusão de que apenas a Bíblia é fonte da fé cristã, é um daqueles problemas que a lógica nunca resolverá.

A mim, isto sempre soou como um argumento de polichinelo. Com o perdão da expressão, um argumento da espécie do “me engana, que eu gosto”. Infelizmente, a quantidade de pessoas que gosta de ser enganada é bastante apreciável…

Por isto, se houvesse um ponto de fé compartilhado pela maioria dos protestantes que não contasse com qualquer respaldo bíblico, então, mesmo um argumento da espécie do “me engana que eu gosto” seria descartado. A partir de então, seguiriam crendo no sola scriptura, não os que gostam de serem enganados, mas apenas o cego que não quer ver.

O fato é que este ponto de fé existe.

E este é o nó górdio do sola scriptura.

Todo protestante crê (é um ponto de sua fé) que todos os livros que compõem a sua Bíblia (Gênesis, Êxodo… Apocalipse) são inspirados por Deus. Crê, igualmente, que todos os outros livros produzidos pela humanidade não o são.

O Cânon biblíco é, portanto, e indiscutivelmente, um ponto de fé dos protestantes. Ponto este, diga-se de passagem, de suma importância, pois, dele, dependem todos os demais.

E, no entanto, não há qualquer respaldo bíblico para o Cânon protestante (e, de resto, para qualquer outro Cânon). Não há sequer um versículo bíblico que, explícita ou implicitamente, afirme algo do tipo: “São considerados como livros inspirados: ‘Gênesis, Êxodo … Apocalipse'”.

Nada, rigorosamente nada que possa embasar, sequer, um argumento do tipo “me engana, que eu gosto”.

A definição dos livros bíblicos requer, inexoravelmente, uma autoridade extra-bíblica. E tal necessidade inexorável desmonta, por completo, a sola scriptura. Afinal, por que cargas d’água a Tradição seria idônea apenas para a definição do ponto de fé primordial de todo o cristianismo, não o sendo para definir qualquer outro menos importante? Por que razão a Tradição se corrompeu com relação a tudo mais, mas manteve-se imaculada apenas no tocante ao cânon bíblico? Por que motivo, por exemplo, a mesma não é confiável quando afirma (baseada, indiretamente, em alguns trechos bíblicos) que Maria foi assunta aos céus, mas é confiável ao proclamar que o Apocalipse é livro inspirado pelo Espírito Santo (sem possuir,sustentando tal afirmação, sequer uma única base bíblica indireta?

Como se vê, o mundo protestante é recheado de perguntas sem respostas…

Se a Tradição é confiável para a definição do cânon bíblico (e todos os protestantes com quem tenho debatido afirmam que ela o é), então, existe uma autoridade extra-bíblica e o sola scriptura não passa de uma demoníaca esparrela.

Somente o cego não vê.

Que os cegos sejam em número inferior ao dos que gostam de serem enganados…

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