O senso litúrgico da Santa Igreja

1. Introdução

O termo “senso litúrgico” tem sido utilizado por muitos católicos, fiéis ao Sagrado Magistério da nossa Santa Mãe Igreja. Tal senso diz respeito à um ideal de comportamento externo na Sagrada Liturgia, à ser vivido sobretudo durante a celebração do Santo Sacrifício da Missa e nos momentos de adoração com exposição do Santíssimo Sacramento.

Sabemos que nossa Santa Mãe Igreja tem normas litúrgicas, ou seja, determinações que dizem respeito ao nosso comportamento externo na Sagrada Liturgia e nos ensinam como viver um pouco deste senso litúrgico. Por exemplo: é norma litúrgica que nos ajoelhemos no momento Consagração, em sinal de adoração à Nosso Senhor. (Introdução Geral do Missal Romano, 43). Quem se ajoelha na Consagração, está vivendo este senso litúrgico. Porém, nem tudo que diz respeito ao senso litúrgico está determinado nas normas, pois tal senso transcende a elas.

Por outro lado, tal senso não é acessível a nós através dos nossos sentimentos ou de uma revelação interior do Espírito Santo (pelo menos, não ordinariamente); mas é acessível a nós através de um conhecimento da essência da Sagrada Liturgia, do conhecimento da sua história, do conhecimento dos seus simbolizamos e sinais, da suas normas (logicamente, este conhecimento tem base nos documentos do Sagrado Magistério da Santa Igreja) e da reflexão racional a partir daí. Por exemplo: quem recebe o Corpo de Nosso Senhor na mão não está desobedecendo nenhuma norma litúrgica, pois hoje há para o Brasil a concessão para se receber o Corpo de Nosso Senhor na mão. Porém, havendo possibilidade de receber o Corpo de Nosso Senhor diretamente na boca, o senso litúrgico nos mostra que é mais adequado que assim se faça, pois tal gesto é o mais seguro para evitar que se percam fragmentos do Corpo de Nosso Senhor e expressa reverência à Nosso Senhor, como nos ensina tradição litúrgica e o Sagrado Magistério da Santa Igreja: “Essa maneira de distribuir a Santa Comunhão deve ser conservada, não somente porque ela tem atrás de si uma tradição multissecular, mas sobretudo porque ela exprime a reverência dos fiéis para com a Eucaristia.” (Instrução Memoriale Domini, da Congregação para o Culto Divino, de 29/5/1969)

Aqui, é preciso deixar claro que não podemos condenar a atitude de quem recebe o corpo de Nosso Senhor na mão, por motivos justos. Aqui se enquadra o exemplo de uma pessoa que em determinada situação opta em receber o Corpo de Nosso Senhor na mão de um ministro que se sabe que lhe desagrada ministrar o Corpo de Nosso Senhor diretamente na boca, para evitar conflitos com tal ministro. Porém, tais razões podem ser muito pessoais e subjetivas, por isso aqui não nos cabe julgamento do ato.

Para que tal senso litúrgico torna-se mais claro para nós, podemos nos perguntar: como surgiu tal senso litúrgico? Qual a sua relação mais profunda com o simbolismo que a Sagrada Liturgia tem e com as normas litúrgicas? Quais as motivações que temos para viver tal senso em nossa vivência litúrgica? Como tal senso tem sido atingido pela crise litúrgica e doutrinária que se tornou presente na Santa Igreja nas últimas décadas? Qual deve ser nossa atitude em meio à realidade que vivemos? É o que procuraremos responder nos parágrafos abaixo.

2.1. Aspectos históricos

Como foi dito acima, o senso litúrgico transcende as normas litúrgicas. Por outro lado, ao mesmo tempo que transcende, ele é anterior às normas litúrgicas. Anterior ainda ao senso, foi o surgimento do simbolismo litúrgico, que por sua vez, surgiu do encontro do Santo Evangelho com a cultura. Podemos estabelecer a seguinte lógica:

a) a cultura se encontrou com o Santo Evangelho
b) a cultura evangelizada gerou o simbolismo litúrgico
c) o simbolismo litúrgico gerou o senso litúrgico
d) o senso litúrgico gerou as normas litúrgicas.

Procuraremos então mostrar como acontece cada uma das etapas deste processo.

A cultura se encontrou com o Santo Evangelho

Entende-se aqui por cultura o conjunto de crenças, valores e produção artística de uma determinada população. Quanto o Santo Evangelho se encontra com determinada cultura, dois processos ocorrem: em primeiro lugar, o Santo Evangelho a purifica dos seus erros; em segundo lugar, os elementos positivos da cultura são conservados e recebem do Santo evangelho um novo significado.

A cultura que primeiramente teve contato com o Santo Evangelho foi a cultura judaica. Isso aconteceu no século I, durante a vida pública de Nosso Senhor e o início da pregação dos Santos Apóstolos. Tal cultura trazia em si muitos elementos positivos, tais como: a crença em um Deus Único, Justo e Misericordioso, como também uma busca da vivência da lei natural, expressa nos 10 mandamentos da lei de Moisés. Por outro lado, tal cultura trazia em si alguns erros, tais como: uma interpretação errônea da lei de Deus (manifesto em inúmeras passagens do Evangelho pelo legalismo dos fariseus), o desprezo pelos doentes e o desprezo pelos pagãos.

2.3. A cultura evangelizada gerou o simbolismo litúrgico

Na Igreja Primitiva, a cultura judaica tornou-se uma cultura evangelizada, isto é, purificada dos seus erros e conservando seus aspectos positivos, não só a crença no Deus Único e a busca da vivência da lei natural, mas muitas práticas desta cultura foram conservadas e com o tempo passaram a ter um significado na Sagrada Liturgia. A medida que a evangelização acontecia também entre os povos pagãos, a cultura cristã foi assimilando mais alguns elementos positivos e práticas da cultura grega e da cultura romana.

Por exemplo:

? Para o povo judeu, o ato de ajoelhar-se ou de prostrar-se tinha um significado de adoração à Deus. Diz o Salmo 94: “Vinde, inclinemo-nos em adoração, de joelhos diante do Senhor que nos criou.” (v.6) Na Sagrada Liturgia, esse gesto passou a simbolizar a adoração a Nosso Senhor, presente no Santíssimo Sacramento, como o próprio São Paulo escreve: “Ao nome de Jesus se dobre todo o joelho, no céu, na terra e nos infernos.” (Fl 2,10)

? Também para o povo judeu, o incenso tinha um significado de honra à Deus ou a um Rei. Diz o Salmo 140: “Que minha oração suba até vós como fumaça do incenso.” (v.2) Na Sagrada Liturgia, o incenso passou-se a se incensar o Santíssimo Sacramento e demais sinais litúrgicos (o altar, a cruz, as santas imagens, os sacerdotes, os fiéis), e o incenso passou a ter um simbolismo litúrgico próprio

? Para o povo judeu, para o povo romano e para o povo grego, havia o costume de o Rei, os ministros da religião e demais nobres se vestirem de forma bela e pomposa, como também havia o costume de se utilizar materiais nobres e belamente decorados em construções (templos e palácios) e situações importantes. Tal beleza e esplendor passa a ser utilizada também na Sagrada Liturgia: nas igrejas, nos paramentos litúrgicos, nos altares, nos cálices, cibórios e assim por diante, em honra a Nosso Senhor e em sinal do Santos Mistérios que são celebrados, ou seja, também com um simbolismo litúrgico próprio.

Assim, torna-se claro que o simbolismo litúrgico da Santa Igreja tem suas raízes na cultura judaico-greco-romano, e isto foi consolidado sobretudo após a oficialização do cristianismo como religião oficial do Império Romano no século IV. Com a mútua colaboração entre a Santa Igreja e o Estado, na Cristandade que neste momento começava a se desenvolver, o cristianismo formou a cultura da Europa durante toda a Idade Média, e por isso manteve nela tal simbolismo litúrgico; cultura esta levada pela evangelização também à grande parte da Ásia e grande parte da África, e vários séculos depois, trazida pelas navegações às Américas.

2.4. O simbolismo litúrgico gerou o senso litúrgico

O simbolismo litúrgico gerou o senso litúrgico, ou seja, o reconhecimento de que determinadas coisas são mais adequadas do que outras. Por exemplo, o reconhecimento de que:

? É bom que os fiéis permaneçam ajoelhados nos sublimes momentos de adoração, como por exemplo, no momento da Consagração, no momento de receber o Corpo de Nosso Senhor na Comunhão Eucarística e nos momentos de exposição do Santíssimo Sacramento.

? É bom que se utilize o incenso para expressar a honra devida à Nosso Senhor e aos Sagrados Mistérios da Sagrada Liturgia.

? É bom que as igrejas, os paramentos litúrgicos, os altares, cálices, cibórios e demais objetos litúrgicos sejam feitos de materiais nobres e belamente decorados.

Os fiéis sempre buscaram viver a Sagrada Liturgia desta forma, dentro das possibilidades. Houve situações em que não foi possível atingir esse ideal, por exemplo, durante a perseguição que a Santa Igreja sofreu por parte do Império Romano até o século IV, muitas vezes os fiéis se reuniam nas catacumbas para celebrar o Santo Sacrifício da Missa, obviamente, sem toda o esplendor que conseguiram alcançar mais tarde, quando o cristianismo tornou-se a religião oficial do Império Romano e se podia celebrar o Santo Sacrifício da Missa agora nas igrejas.

2.5. O senso litúrgico o gerou as normas litúrgicas

Com o tempo, principalmente após a liberdade que a Santa Igreja gozava por o cristianismo tornar-se a religião oficial do Império Romano e haver a mútua colaboração entre a Santa Igreja e o Estado, que se fez presente por toda a Idade Média, o Sagrado Magistério foi normatizando a Sagrada Liturgia, ou seja, oficializando o senso litúrgico que já existia entre os fiéis e determinando como a Sagrada Liturgia deveria ser vivida por eles. Por exemplo:

? Tornou-se norma litúrgica que os fiéis se ajoelhem em sinal de adoração durante o momento a Consagração, norma esta que vigora até hoje. Tornou-se norma litúrgica também que os fiéis recebam o Corpo de Nosso Senhor de joelhos, também em sinal da adoração – embora hoje, a pedido de algumas Conferências Episcopais, haja a concessão para que aqueles que desejam receber o Corpo de Nosso Senhor em pé assim, assim o façam, fazendo uma reverência antes de Comungar. A este respeito, a Sagrada Congregação para os Sacramentos e Culto Divino publicou, em Julho de 2002, um documento reprovando a atitude de sacerdotes que negam ministrar a Comunhão a quem deseja receber Nosso Senhor ajoelhado. Diz o documento: “”A recusa da Comunhão a um fiel que esteja ajoelhado, é grave violação de um dos direitos básicos dos fiéis cristãos. (…) Mesmo naqueles países em que esta Congregação adotou a legislação local que reconhece o permanecer em pé como postura normal para receber a Sagrada Comunhão, ela o fez com a condição de que os comungantes desejosos de se ajoelhar não seria recusada a Sagrada Eucaristia. (…) A prática de ajoelhar-se para receber a Santa Comunhão tem em seu favor uma antiga tradição secular, e é um sinal particularmente expressivo de adoração, completamente apropriado, levando em conta a verdadeira, real e significativa presença de Nosso Senhor Jesus Cristo debaixo das espécies consagradas.” É preciso dizer que pode não ser prudente comungar ajoelhado, em locais onde o público não está habituado com isso.

? Tornou-se norma litúrgica que as igrejas tenham uma determinada disposição, que os paramentos litúrgicos sejam feitos de determinada forma, que os cálices, cibórios e outros objetos litúrgicos sejam feitos de determinada forma. O Missal Romano, por exemplo, determina a disposição que um local sagrado deve ter para celebrar o Santo Sacrifício da Missa, no que diz respeito ao local do sacrário, presbitério, altar, ambão, credência e assim por diante. A instrução Redemptionis Sacramentum determina que os vasos sagrados sejam feitos de material nobres e inquebrantáveis, com aprovação dos Bispos Diocesanos (RS, 117).

Exemplos também de normas litúrgicas, que vigoram até hoje são: a determinação de que se faça uma hora de jejum eucarístico antes de receber o Corpo de Nosso Senhor para expressão reverência por Nosso Senhor, podendo durante este tempo tomar apenas água e medicamentos (cân. 919), ; a determinação de que os sacerdotes, diáconos e demais ministros da Sagrada Liturgia utilizem sempre os paramentos litúrgicos, o que expressa a diferenciação da função de cada um (RS, 121); a determinação de que ordinariamente só o sacerdote e o diácono podem ministrar a Sagrada Comunhão (por isso os ministros extroardinários só estão autorizados a atuar quando houver real necessidade), pois é da Santa Igreja que o os fiéis recebem o Corpo de Nosso Senhor, e são os sacerdotes e diáconos os ministros ordenados da Santa Igreja (RS, 88); a determinação de que há determinadas orações no Santo Sacrifício da Missa que só podem ser pronunciados pelo sacerdote (cân. 907), dada à sua condição sacerdotal, como a oração da coleta, a oração sobre o oferendas, toda a oração eucarística (inclusive a doxologia: “Por Cristo…”), a oração da paz e a oração após a Comunhão.

Como podemos perceber, o senso litúrgico, além de transcender as normas litúrgicas e ser anterior a elas, acaba-se manifestando a nós, em parte, através das normas; não só delas, mas como foi dito, também através do conhecimentos da essência da Sagrada Liturgia, do conhecimento da sua história, do conhecimento dos seus simbolizamos e sinais, e da reflexão racional a partir daí.

3. Adesão ao senso litúrgico

O que nos motiva hoje a viver a Sagrada Liturgia de acordo com o senso litúrgico? Em primeiro lugar, manifestar a honra devida a Nosso Senhor através das atitudes que ele implica. Em segundo lugar, manifestar a fé da Santa Igreja naquilo que acontece na Sagrada Liturgia. Por isso, o senso litúrgico é guardião da sacralidade. Se o senso litúrgico for ignorado, corre-se o perigo de que caiamos na “dessacralização”, ou seja, tratar aquilo que é Sagrado como se não fosse Sagrado.

Se eu entro em um ambiente sagrado e me deparo com várias pessoas ajoelhadas ou prostradas em adoração diante do Santíssimo Sacramento, isso me recordará que a razão de tudo isso é a Presença Real Nosso Senhor, e consequentemente ajudará a dispor a minha alma para que eu O adore também; agora, se eu entro em um ambiente sagrado e encontro pessoas dispersas, se comportando na Presença Real de Nosso Senhor como se estivessem em um lugar qualquer, o meio terá a tendência de me condicionar a agir da mesma forma e a tratar o Santíssimo Sacramento como se fosse algo qualquer – quanto mais tempo eu ficar exposto a esse meio, mais forte será essa tendência. Por outro lado, como poderemos convencer o mundo que Nosso Senhor está verdadeiramente presente no Santíssimo Sacramento, se O recebermos de qualquer jeito, tratando a Hóstia Consagrada como se fosse um simples pedacinho de pão? Ou como poderemos convencer o mundo que a Santa Missa é a atualização do Santo Sacrifício de Nosso Senhor, se tratarmos a Santa Missa como uma coisa qualquer?

Ou seja: a Santa Igreja, quando se ajoelha para adorar Nosso Senhor ou quando celebra o Santo Sacrifício da Missa de forma solene, utilizando toda a nobreza e a beleza dos paramentos litúrgicos, dos cálices, cibórios e demais materiais litúrgicos, quando utiliza incenso e belos castiçais na Sagrada Liturgia, está dando um testemunho público de sua fé, de uma forma especial quando o povo recebe uma boa catequese. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II nos diz que “a liturgia, enquanto edifica aqueles que estão na Igreja em templo santo no Senhor, em habitação de Deus no Espírito, até atingir a plenitude de Cristo, ao mesmo tempo e de modo admirável robustece as suas forças para que preguem o Cristo; e assim aos que estão fora, ela mostra a Igreja como estandarte erguido diante das nações, sob o qual os filhos dispersos de Deus possam reunir-se na unidade, para que haja um só rebanho e um só pastor.” (SC 2) Como poderá a Sagrada Liturgia ser este estandarte, se as celebrações não manifestarem de todas as formas a grandeza daquilo que a Santa Igreja crê?

Nesse sentido, o Papa João Paulo II escreveu: “De modo particular torna-se necessário cultivar, tanto na celebração da Missa como no culto eucarístico fora dela, uma consciência viva da presença real de Cristo, tendo o cuidado de testemunhá-la com o tom da voz, os gestos, os movimentos, o comportamento no seu todo. A tal respeito, as normas recordam ? como ainda recentemente tive ocasião de o reafirmar ? o relevo que deve ser dado aos momentos de silêncio quer na celebração quer na adoração eucarística. Numa palavra, é necessário que todo o modo de tratar a Eucaristia por parte dos ministros e dos fiéis seja caracterizado por um respeito extremo.” (“Mane Nobiscum Domine”, 18)

Fala-se que “uma imagem fala mais do que mil palavras”. Li certa vez um profissional de marketing perplexo pelo fato de, em nossos dias, os católicos estarem abandonando sinais externos que eles mesmos criaram para testemunhar a fé, citando ele o sino e o hábito religioso. O porque não aplicarmos a mesma lógica para todos os sinais e gestos que constituem o simbolismo litúrgico da Santa Igreja?

É claro que se em uma situação um fiel optar por manifestar externamente na Sagrada Liturgia a fé católica com uma atitude diferente dos gestos que o senso litúrgico da Santa Igreja trás, e se tal atitude não consistir em desobediência à nenhuma norma litúrgica, Nosso Senhor aceitará tal atitude, pois Ele não se condiciona à isso. Porém, mesmo que não haja desobediência à nenhuma norma litúrgica e portanto, seja uma atitude aceita por Nosso Senhor, não estará havendo adesão ao simbolismo e ao senso litúrgico da Santa Igreja, e caberá a ao fiel se perguntar a razão pela qual prefere inovar em uma atitude para viver a Sagrada Liturgia, ao invés de aderir ao simbolismo e ao senso litúrgico oficial da Santa Igreja, que se desenvolveu com tanta riqueza durante 20 séculos e gerou tantos santos e santas. Além do mais, tais atitudes em público atrapalham o testemunho da Santa Igreja à respeito daquilo que ela crê, pois para isso a unidade dos sinais e dos gestos litúrgicos é importante para que, juntamente com uma boa catequese, possa testemunhar a sua fé à todos. Nesse sentido, o Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, declarou: “(…) a Liturgia é algo diferente da manipulação de textos e ritos, porque vive, precisamente, do que não é manipulável. A juventude sente isso intensamente. Os centros onde a Liturgia é celebrada sem fantasias e com reverência atraem, mesmo que não se compreendam todas as palavras.” (“O sal da terra”, p. 142)

4. Crise litúrgica

Uma interpretação distorcida do Concílio Vaticano II, por parte dos teólogos ditos “progressistas”, gerou a chamada crise pós-conciliar, gerando uma desseminação sem precedentes da heresia do modernismo na hierarquia da Santa Igreja, tanto no dogma quanto na moral, atingindo grande parte das congregações religiosas tradicionais. A grande manifestação do modernismo na América Latina se dá através da Teologia da Libertação, de Leonardo Boff, Frei Betto e Marcelo Barros.

A respeito da crise pós-conciliar, se pronunciou o Papa Paulo VI: “Através de uma brecha penetrou a fumaça de Satanás no templo do Senhor. Pensava-se que, depois do Concílio, o sol brilharia sobre a história da Igreja. Mas, em vez do sol, apareceram as nuvens, a tempestade, as trevas, a incerteza. Interveio uma potência hostil. Seu nome é o demônio, esse ser misterioso de quem nos fala São Pedro na sua primeira Epístola. Quantas vezes não se refere Cristo, no Evangelho, a este inimigo dos homens. Nós cremos que um ser preternatural veio ao mundo precisamente para perturbar a paz, para afogar os frutos do Concílio ecumênico e para impedir a Igreja de cantar a sua alegria por ter retomado plena consciência de si própria.” (29/06/1972) Também a este respeito, diz o Papa João Paulo II: “Foram espalhadas a mãos cheias idéias contrárias à verdade revelada e sempre ensinada: propagaram-se verdadeiras heresias nos campos dogmático e moral (…) também a Liturgia foi violada” (Discurso no Congresso das Missões, 06/02/1981)

Sim, a Sagrada Liturgia foi violada. Pois tivemos um encontro da nossa cultura tomada pela secularização com a teologia modernista, surgindo daí um falso simbolismo litúrgico e um falso senso litúrgico, contrapondo-se ao simbolismo e ao senso litúrgico que o Sagrado Magistério da Santa Igreja nos apresenta oficialmente.

O resultado da disseminação destes erros é a presença em alguns meios, nos casos mais extremos, da noção herética de que o Santíssimo Sacramento é apenas um símbolo e de que o Santo Sacrifício da Missa é simplesmente um encontro fraterno. Nos casos menos extremos, mas também graves, não há a presença explícita da heresia modernista na Sagrada Liturgia, mas a influência dela, ou seja, as normas litúrgicas são explicitamente desobedecidas e as atitudes externas da tradição litúrgica da Santa Igreja são consideradas ultrapassadas, antiquadas e sem sentido, como por exemplo: a adoração silenciosa, o ato de permanecer ajoelhado quando o Santíssimo Sacramento está exposto, a utilização do incenso, o ato de receber o Corpo de Nosso Senhor diretamente na boca, o ato de receber o Corpo de Nosso Senhor ajoelhado, a utilização da casula por parte dos sacerdotes, a utilização do latim nas celebrações.

Em relação à casula, ela é o paramento litúrgico próprio do sacerdote quanto celebra o Santo Sacrifício da Missa. Embora haja para o Brasil a concessão de o sacerdote celebrar apenas utilizando alva e estola quando houver razões pastorais (comentário do Pe. Jesús Hortal, SJ, à respeito do cânon 929), a norma geral da Sagrada Liturgia é que o sacerdote celebre utilizando a casula.

Embora hoje haja a concessão para se celebrar em vernáculo (a língua de cada povo) e reconhecendo que pastoralmente isso pode ser muito bom, o latim conserva o seu valor, pois continua sendo a língua oficial da Sagrada Liturgia e dá solenidade às celebrações, quando é utilizado. Por isso está normatizado na recente instrução “Redemptionis Sacramentum”: “Excetuadas as Celebrações da Missa que, de acordo com as horas e os momentos, a autoridade eclesiástica estabelece que se façam na língua do povo, sempre e em qualquer lugar é lícito aos sacerdotes celebrar o santo Sacrifício em latim.” (RS 112)

A respeito desta crise que falamos, o Papa João Paulo II escreveu: “De fato, há lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Em um ou outro contexto eclesial existem abusos que contribuem para obscurecer a reta fé e a doutrina católica acerca deste admirável sacramento. As vezes transparece um compreensão muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrifical, é vivido como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesma. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que se fundamenta na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. (…) Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um Dom demasiadamente grande para suportar ambiguidades e reduções.” (EE 10)

Também o Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, declarou: “Depois do Concílio, muitos padres deliberadamente erigiram a dessacralização como um programa de ação. (…) Animados por tais idéias, rejeitaram as vestes sagradas; tanto quanto puderam, eles despojaram as igrejas dos seus resplendores que lembra o sagrado; e eles reduziram a liturgia à linguagem e aos gestos da vida de todos os dias, por meio de saudações, de sinais de amizade e outros elementos.” (Conferência aos Bispos chilenos, Santiago, 13/07/1988) Disse ainda: “Do que precisamos é de uma nova educação litúrgica, especialmente também os padres.” (“O sal da terra”, p. 141)

5. Conclusão

Viver a Sagrada Liturgia da melhor forma possível implica não somente em atitudes internas, mas também externas. Aquilo que se refere às normas litúrgicas propriamente ditas precisa ser obedecido, sob pena de pecado de desobediência disciplinar se tal ato for feito com conhecimento da norma e consentimento da vontade, a não ser que se em uma situação muito particular se esteja optando pelo mau menor. Porém, lembramos sempre que tais atitudes externas não se limitam apenas à uma obediência das normas litúrgicas, mas também à vivência do senso litúrgico, dentro das possibilidade de cada situação. Esse senso nos leva a:

? Valorizar os sinais litúrgicos, já amplamente citados nos parágrafos acima.

? Valorizar os gestos que liturgicamente contém um simbolismo específico, como o ato de receber o Corpo de Nosso Senhor diretamente na boca, o ajoelhar-se nos momentos sublimes de adoração (de uma forma especial, no momento da Consagração, no momento da Comunhão Eucarística e nos momentos de exposição do Santíssimo Sacramento) e o manter uma postura externa adequada nos momentos de oração da Sagrada Liturgia, evitando posturas que transmitam desleixo ou indiferença com o que acontece ali.

? Nos vestirmos adequadamente para participar dos momentos litúrgicos, procurando evitar tudo o que possa ser escandaloso, banalizar ou chamar atenção. Em relação ao momento da Sagrada Comunhão, o Catecismo da Igreja Católica explicita que “a atitude corporal (gestos, roupa) há de traduzir o respeito, a solenidade e a alegria deste momento em que Cristo se torna nosso hóspede.” (CIC 1387) Nesse sentido, é evidente uma calça comprida é mais adequada do que uma bermuda, e uma blusa com manga é mais adequada do que uma blusa de alcinhas.

? Tomemos cuidado também para evitar qualquer tipo de zelo desordenado que possa de forma temerária julgar o comportamento dos nossos irmãos no que diz respeito à estarem ou não vivendo bem a Sagrada Liturgia, no que diz respeito ao senso litúrgico. Assim como os cristãos na época da perseguição do Império Romano não tinham condições de viver a Sagrada Liturgia com toda a esplendor desejavam, como foi dito anteriormente, podem haver justas razões físicas, psicológicas, externas ou pastorais para alguém ter determinada atitude que, aparentemente, possa parecer desleixo ou indiferença pela Sagrada Liturgia, mas que na realidade não o é, como foi exemplificado anteriormente com o exemplo da pessoa que recebe o Corpo de Nosso Senhor na mão para não gerar conflito com um determinado sacerdote. Este pode ser o caso da pessoa que se propõe a permanecer em adoração em um momento de exposição do Santíssimo Sacramento, mas está com a perna machucada ou demasiadamente cansada, e por isso senta ao invés de permanecer ajoelhada; ou da pessoa que opta em receber o Corpo de Nosso Senhor em pé para não gerar conflitos em um determinado ambiente onde não se está habituado à que se receba o Corpo de Nosso Senhor ajoelhado.

Quanto maior for o nosso amor por Jesus Sacramentado e por nossa Santa Mãe Igreja, tanto maior será a nossa motivação para viver a Sagrada Liturgia da melhor forma possível.

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