O Verbo era Deus

Abre parêntese:
Já aconteceu comigo algumas vezes: membros do grupo Testemunhas de Jeová batem à minha porta para pregar A Sentinela e ler passagens da sua pastiche ¹ da Bíblia – e, dentre tantas passagens modificadas deliberadamente, a que mais chama atenção é, sem dúvida, João 1,1. Por esta razão, segue uma análise didática sobre a tradução deste trecho, feita por mim, a fins de demonstração. O intuito é ajudar leigos que não tiveram a terceira aula de qualquer curso introdutório da Língua Grega, e também a todos os membros das Testemunhas de Jeová , que, ademais, são todos os leigos citados.
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O VERBO ERA DEUS
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Neste artigo, discutiremos a tradução de João 1,1 em contrapartida com a tradução/explicação da denominação sois-distant cristã Testemunhas de Jeová. A partir do grego, demonstraremos ao leitor, passo a passo, a maneira correta de traduzir esta passagem bíblica. A maioria das bíblias [traduções católicas e protestantes] traz:

“No princípio era o Verbo
E o verbo estava com Deus
E o verbo era Deus


João 1,1 é uma das muitas passagens da Bíblia que afirmam a divindade de Jesus Cristo, razão pela qual é foco de interesse das doutrinas que tentam negar esta verdade – e as Testemunhas de Jeová assim negam; são notadamente conhecidas por serem uma das seitas que defendem que Nosso Senhor Jesus Cristo é o Arcanjo Miguel ². Como esta última heresia nos exigiria para muito além de traduções e interpretações, mas representa propriamente o que São João escreveu na segunda epístola, versículo 7, nos restringiremos apenas ao que anunciamos no primeiro parágrafo.
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Testemunhas de Jeová

As Testemunhas de Jeová utilizam a chamada Tradução do Novo Mundo para a Bíblia, que supostamente teria sido feita a partir dos originais hebraico, aramaico e grego, mas que acabou condenada por todos os estudiosos das línguas citadas. Charles Russell, responsável pela corrupção do texto, conseguiu a façanha de ser levado a julgamento e não conseguir identificar as letras do alfabeto grego, como consta no processo. Na Tradução do Novo Mundo lê-se, onde destacamos em negrito anteriormente:

“E o Verbo era [um] Deus”

A palavra “um” é inserida antes de Deus, de modo que o Verbo Encarnado [João 1,14] não era o próprio Deus, mas “um” Deus. Ora, vejamos que artimanha a seita utiliza como explicação para isto, de acordo com os originais gregos. [As palavras em grego serão transcritas aqui em caracteres latinos, sem os “acentos”, para facilitar o entendimento]

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Em Grego, João 1,1:

“En arche en o logos
Kai o logos em pros tos Theon
Kai o logos en Theos”

Em negrito, temos a passagem em Grego que nos interessa neste momento, e que foi traduzida pelas Testemunhas de Jeová como “E o verbo era [um] Deus”. Vejamos:

Em grego, não existe artigo indefinido [um, uma]. Quando a palavra não apresenta o artigo [definido], e quando o contexto e as regras exigem, a tradução acrescenta o artigo indefinido na frente. Veja o exemplo nas frases abaixo:

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“Ego eimi e phone”
[Presença do artigo em negrito: “Eu sou a voz”]“Ego eimi phone”
[Ausência de artigo: “Eu sou uma voz”]

Desse modo, a Tradução do Novo Mundo nos dá a explicação que, de acordo com esta regra gramatical grega, o correto seria acrescentar o artigo indefinido “um” antes de Deus na passagem “Kai o logos en Theos”, uma vez que antes de “Theos” não viria o artigo definido – e que da mesma forma como ocorre em outras passagens do Novo Testamento, em que os diversos tradutores utilizam esta regra, da mesma forma em João 1,1 esta regra pode ser aplicada. Mas será que isso é verdade? Vejamos:

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“Kai o logos en Theos”

Em grego, quando o sujeito e o predicativo do sujeito são constituídos por substantivos, deve-se observar a regra de que o sujeito [Logos/Verbo] é acompanhado de artigo definido, enquanto o predicativo do sujeito [Theos/Deus] não é. Desta forma, Theos não deve vir com o artigo. Na língua grega, a posição dos termos de uma oração varia, e não necessariamente determinará a função gramatical da palavra, uma vez que as funções gramaticais são identificadas pelos chamados “casos” – onde uma mesma palavra terá sua grafia modificada de acordo com a função que desempenha na oração. Este exemplo pode também ser visto em João 1,1: “pros tos Theon” e “logos en Theos”, onde os leigos em latim, alemão, grego ou afins, podem observar como isso funciona. Tomemos a seguinte frase:

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Kai Theos en o logos”

Esta frase, embora traga “Theos” na frente, significa a mesma coisa que “Kai o logos en Theos”. A primeira vista, poderíamos traduzi-la por “E Deus era o Verbo”, mas isto não estaria correto. Muitas frases em grego trazem diferentes “arrumações” de seus termos [assim como em latim], e, no entanto, na hora de traduzir para uma língua, como para o português, teríamos o mesmo significado. “Kai Theos en o logos”, então, significa “E o Verbo era Deus”. No caso de “Kai o logos en Theos” ou “Kai Theos en o Logos”, o que nos permite saber “quem era o quê” é justamente a presença do artigo [neste caso, “o”] antes do sujeito. Há ainda outra possibilidade de escrever esta mesma frase, em grego, sem que nenhum dos termos venha precedido de artigo. No caso das frases nominais cujo sujeito e predicativo do sujeito sejam substantivos, e nenhum deles esteja acompanhado de artigo, o predicativo do sujeito deve vir em primeiro lugar na frase:

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“Kai Theos en logos”

Igualmente, temos o significado de que “O verbo era Deus”. Poderíamos ainda escrever:

“Kai Theos Logos.”

Nesta última, não temos o artigo e não temos também o verbo [“en”] de ligação explícito. O significado, no entanto, se mantém: “O verbo era Deus”.

Dessa forma, fica bastante evidente que a tradução de João 1,1 imposta pelas Testemunhas de Jeová, e por extensão á toda a Bíblia, é imoral, inaceitável, criminosa. Não tem qualquer fundamento. Há exemplos de imoralidades como essa em praticamente todos os versículos da Tradução do Novo Mundo, mas a passagem escolhida aqui é a mais gritante. Há inúmeras explicações disponíveis sobre esta passagem, e na verdade muito melhores do que esta, porém a elaborei pensando que poderiam servir aos leigos de nível 1, ao contrário das explicações que encontrei, que ou serviam aos leigos de nível 2 ou 3 ( regras gramaticais gregas pouco mastigadas) ou eram feitas por pessoas que apenas tinham compilado informações. Há explicações excelentes nos livros (algumas pessoas se deram a esse trabalho, ainda bem). Deduzimos ainda que:

– Se João desejasse escrever que o Verbo não era Deus [se ignorarmos todo o resto da bíblia que afirma que o Verbo era] e quisesse, como alegam as Testemunhas, atribuir ao Verbo uma qualidade divina, ele teria usado o adjetivo Theios.

– Afirmar que existe mais de um Deus é politeísmo.

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Notas

¹ Em literatura, "Pastiche" é uma obra que imita de maneira grosseira o estilo de outra; baseado numa obra já existente, o Pastiche difere na paródia no sentido em que o seu resultado final não beira ao plágio, mas produz um sentido original.

² Afirmar que Jesus Cristo é o Arcanjo Miguel é completamente absurdo; como todas as passagens da Bíblia negam isso, sugerimos ao leitor que abra aleatoriamente a Bíblia em qualquer página e veja por si mesmo.

Luciana Lachance, católica, faz parte do Grupo de Estudos do Pensamento Conservador – BA e estuda Letras Vernáculas na Universidade Federal da Bahia.

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