“Orientalis Ecclesiae” (Pio XII: 09.04.1944)

Carta Encíclica
ORIENTALIS ECCLESIAE
sobre São Cirilo, patriarca de Alexandria, no 15º Centenário de sua morte piedosíssima.

Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica.

CAPÍTULO I

1. A Igreja sempre exaltou com os maiores louvores o patriarca deAlexandria, são Cirilo, honra da Igreja oriental e defensor preclaríssimo da virgem Mãe de Deus; louvores que nos é grato recordar brevemente ao completar-se o décimo quinto centenário de quando ele deixou felizmente este exílio terreno pela pátria celestial. Já o nosso predecessor s. Celestino I o chamara “bom defensor da fé católica”,(1) “sacerdote exímio”,(2) e “homem apostólico”;(3) e o concílio ecumênico de Calcedônia não só invoca o auxílio de sua doutrina para descobrir e refutar os novos erros, como também não duvida compará-la à sabedoria de s. Leão Magno;(4) o qual, por sua vez, louva e recomenda os escritos de tão grande doutor por concordarem plenamente com a doutrina dos santos padres.(5) E não foi com menor veneração que o quinto concílio ecumênico, reunido em Constantinopla, seguiu a autoridade de são Cirilo,(6) e muitos anos após, ao debater-se a controvérsia sobre as duas vontades em Cristo, de novo sua sentença, tanto no primeiro Concílio Lateranense,(7) como no sexto concílio ecumênico, foi com justiça e felicidade defendida dos erros dos monotelitas, de que alguns falsamente a acusavam de estar imbuída. No testemunho de nosso santo predecessor Agatão, ele “foi defensor da verdade” (8) e “pregador incansável da fé ortodoxa”.(9)

2. Julgamos, portanto, muito oportuno, em breve exposição, colocar sua vida integérrima, sua fé e virtude diante dos olhos de todos, e principalmente daqueles que, pertencendo à Igreja oriental, se gloriam com razão, e justiça deste luminar da sabedoria cristã e campeão da fortaleza apostólica. Proveniente de nobre origem, e no ano de 412 (segundo a tradição) elevado a sé de Alexandria, com ânimo vigilante e impávido combateu primeiro os novacianos e outros corruptores e inimigos da genuína fé, já por palavras, já por escritos e decretos divulgados. Mais tarde, quando a heresia ímpia de Nestório se espalhava pelo oriente, vigilante pastor que era, imediatamente descobriu os novos erros que grassavam, impediu-os com todo o cuidado no rebanho a si confiado, e foi naquela tempestade, e sobretudo na celebração do concílio de Éfeso, o invicto assertor e sapientíssimo doutor da maternidade divina da virgem Maria, da união hipostática em Cristo, e do primado do romano pontífice. Visto, porém, que nosso próximo predecessor, de feliz memória, Pio XI, ao celebrar-se em 1931 o décimo quinto centenário desse concílio, na carta encíclica Lux Veritatis(10) muito bem descreveu e ilustrou o papel principal de são Cirilo nessa gravíssima causa, julgamos supérfluo comemorá-lo novamente de um modo especial.

3. Mas não bastou a Cirilo combater vigorosamente as heresias nascentes, defender com ardor e diligência a integridade da doutrina católica e colocá-la com todo apuro em sua luz meridiana, mas também; na medida de suas forças, incessantemente se esforçou por reconduzir os irmãos errantes ao caminho reto e à verdade. De fato, como os bispos da província de Antioquia ainda não reconhecessem a autoridade do concílio de Éfeso deve-se à sua dedicação se eles depois de muito periclitar voltaram finalmente à concórdia plena. E depois que com o auxílio de Deus conseguiu conciliar esta felicíssima paz, e defendê-la e protegê-la prontamente contra os dissimuladores, já maduro para o prêmio eterno voou aos céus, com as lágrimas de todos os bons, no ano de 444.

4. Os féis cristãos de rito oriental não só o colocam no número dos “padres ecumênicos”; mas também em suas preces litúrgicas o veneram com louvores insignes. “Iluminado na inteligência com as chamas do Espírito Santo (assim cantam os gregos nos “Meneus” para o dia 9 de junho), qual sol irradiante destes respostas que pareciam raios; vossos dogmas, ó beatíssimo e divino, mandaste-os a todos os confins do orbe e dos fiéis, iluminando todas as assembléias e perseguindo as trevas das heresias com o impulso e as forças daquele que se manifestou nascido de uma Virgem”. E com pleno direito os filhos da Igreja oriental se alegram deste pai santíssimo como de uma insigne glória doméstica. Brilham de fato nele, de um modo todo particular, aqueles três dotes de alma que tanto ilustraram também os outros padres do oriente: exímia santidade de vida, em que resplandece nomeadamente a devoção à excelsa Mãe de Deus; doutrina em tudo admirável, pela qual a Sagrada Congregação dos Ritos, por decreto de 28 de julho de 1882, o proclamou doutor da Igreja universal; um cuidado ativo e indefesso com que rebateu, de peito destemido, os assaltos dos hereges, armou, defendeu e, generosamente, onde quer que lhe foi possível, propagou a fé católica.

5. Se muito nos alegramos de que todos os povos cristãos do oriente cultuem a são Cirilo com zelosa veneração, não menos nos entristece que nem todos tenham também chegado à suspiradíssima união que ele, com tanta veemência amou e promoveu. E lamentamos principalmente que isso suceda em nossos tempos, quando se faz mister que todos os fiéis cristãos se unam num concurso de inteligências e de forças, na Igreja única de Jesus Cristo, para que um exército comum compacto, concorde, inabalável, resista aos esforços da impiedade, que a cada dia mais se desenvolvem.

6. Mas para que tal se realize, é absolutamente necessário que todos, seguindo as pegadas de são Cirilo, procurem aquela concórdia das almas, que se deve cimentar numa tríplice razão, pela qual Jesus Cristo, fundador da Igreja, por um superno e inquebrantável vínculo por ele constituído, quis que ela se unisse e delimitasse; a saber: uma só fé católica, uma só caridade para com Deus e para com todos, e, afinal, uma só obediência e submissão à legitima hierarquia dada pelo mesmo divino Redentor. Esses três vínculos, como bem o sabeis, veneráveis irmãos, são de tal forma necessários, que se faltar algum deles, não se poderá sequer entender a verdadeira unidade e concórdia na Igreja de Cristo.

7. Desejamos que o patriarca de Alexandria seja também no presente, como o foi em seus tormentosos tempos, o mestre e exemplo preclaríssimo na consecução diligente e defesa vigorosa desta verdadeira concórdia. E de início, para falarmos da unidade da fé cristã, não há quem ignore sua inabalável energia para defendê-la obstinadamente: “nós (assevera ele) que somos amigos da verdade e dos dogmas da verdade, de modo algum os seguiremos (aos heréticos); mas nas pegadas dos santos padres defenderemos o depósito da revelação divina, contra todos os erros”.(11) E combatendo até a morte este combate, fazia-o pronto a sofrer o que de mais acerbo fosse. “Seu maior anseio (escreve) é trabalhar, viver e morrer pela fé em Cristo”.(12) “Portanto não me comove nenhuma injúria, nenhum ultraje ou afronta… Importa apenas que a fé se conserve íntegra e salva”.(13) E desejando ardentemente, com nobreza e fortaleza de alma, a palma do martírio, pronunciou aquelas palavras de grande generosidade: “Propus-me afrontar qualquer trabalho pela fé em Cristo, suportar quaisquer tormentos, até mesmo os que se enumeram entre os mais graves suplícios, a ponto de aceitar, enfim, com agrado, a morte por esta causa”.(14) “Pois se temermos pregar a verdade pela glória de Deus, para não sofrermos algum incômodo, pergunto: de que modo celebraremos diante do povo os combates e triunfos dos santos mártires?”(15)

8. Havendo nos mosteiros do Egito muitas e acérrimas disputas sobre a nova heresia nestoriana, ele, que era pastor vigilantíssimo, previne os monges contra os erros e perigos dessa doutrina, não já para inflamar as lutas e discussões, “mas (como escreve a eles) para que, se algum vos provocar, possais vós, opondo a verdade à futilidade deles, fugir à desgraça do erro e com argumentos oportunos induzir os outros, como a irmãos, a conservarem constantemente, como uma pedra preciosa engastada em suas almas, a fé confiada outrora às igrejas pelos santos apóstolos”.(16) E otimamente adverte (como facilmente o verá quem ler as cartas que ele escreveu sobre a questão dos antioquenos) que esta fé cristã que nós devemos conservar e defender com todas as forças, nos é transmitida pelas Sagradas Escrituras e pela doutrina dos santos padres,(17) e também proposta pelo magistério vivo e infalível da Igreja. E como os bispos da província de Antioquia julgassem ser suficiente para restaurar e conservar a paz, reter tão-somente a doutrina nicena, são Cirilo, que também professava firmemente o Símbolo de Nicéia, reclamou de seus irmãos no episcopado, para afirmar a unidade, que se reprovasse e condenasse outrossim a heresia nestoriana. De fato, ele bem sabia que não basta aceitar de boa mente os antigos documentos do magistério eclesiástico, mas que é também necessário abraçar com ânimo submisso e fiel tudo aquilo que a Igreja, com a força de sua autoridade suprema, nos manda crer. E mais: que nem sob pretexto de alimentar a concórdia é lícito dissimular um dogma sequer; com efeito, como adverte o patriarca de Alexandria, “desejar a paz é o maior e principal bem… mas por este motivo não se pode desprezar a virtude de piedade para com Cristo”.(18) Pelo que, não conduz à suspirada volta dos filhos errantes à fé legítima e reta em Cristo, aquele caminho e método que propõe apenas os pontos de doutrina em que combinam todas ou pelo menos a maior parte das comunidades que ostentam o nome cristão; mas antes aquele que põe como fundamento da concórdia e consenso dos fiéis cristãos, todas e íntegras, as verdades divinamente reveladas.

9. São Cirilo Alexandrino seja para todos um exemplo nesta decidida fortaleza em conservar e defender a integridade da fé. Porquanto, apenas descobriu o erro de Nestório, refutou-o por cartas e outros escritos, apelou para o romano pontífice, e, representando-o no concílio de Éfeso, com doutrina admirável e coragem intrépida refutou e condenou a heresia que se espalhava; e de tal forma, que todos os padres do concílio depois de ler a chamada carta dogmática de Cirilo, solenemente a aprovaram como consoante em tudo à reta fé. Além disso, por sua diligência apostólica, foi injustamente espoliado do múnus episcopal, e suportou com ânimo sereno e invencível as injúrias dos irmãos, a condenação de um conciliábulo ilegítimo, o cárcere e outras muitas provações. Não duvidou, igualmente, de resistir abertamente não só aos bispos que haviam transviado do caminho reto da verdade e concórdia, mas ao mesmo augusto imperador. E ainda, como todos o sabem, para alimentar e defender a fé cristã, escreveu inúmeros volumes em que brilham o esplendor de sua sabedoria eminente, a impávida constância de sua coragem, e a presteza de sua solicitude pastoral.

CAPÍTULO II

10. Ao liame da fé deve-se acrescentar a caridade, pela qual nos unamos entre nós e com Cristo; e que, excitada e movida pelo Espírito Divino, una entre si com vínculo indestrutível os membros do corpo místico do Redentor. Essa caridade não deve negar-se a abraçar também os que erraram e perderam o caminho; o que podemos ver exemplificado no admirável modo de agir de são Cirilo.

Com efeito, apesar de combater fortemente contra a heresia de Nestório, claramente assevera, movido de intensa caridade, não admitir que ninguém diga amar mais a Nestório do que ele próprio.(19) E não sem razão; pois aqueles que se desviaram do caminho certo devem considerar-se como irmãos enfermos, e tratar-se com brandura e suavidade. A este propósito convém recordar os prudentíssimos conselhos do patriarca Alexandrino: “O caso (assim admoesta) pede grande moderação”.(20) “Pois muitas vezes as duras colisões impelem muitos a audácia; e é melhor resistir brandamente aos recalcitrantes do que criar-lhes dificuldades com o aguilhão do direito. Porque assim como se lhes adoecesse o corpo deveriam ser tratados com jeito, também à alma enferma se deve socorrer com uma prudência usada à guisa de remédio. Paulatinamente eles mesmos voltarão a um estado de alma sincero”.(21) E alhures acrescenta: “Imitamos a tática dos médicos peritos: pois que estes não curam logo atrozmente, a ferro e fogo, as doenças e feridas que aparecem no corpo humano; mas medicada a princípio a ferida com remédios mais fracos, aguardam o tempo oportuno à cauterização e amputação”.(22)Animado de tal misericórdia e benignidade para com os errantes, abertamente confessa “ser cuidadosíssimo da paz, e totalmente avesso às lutas e rixas; ser enfim tal que deseja amar a todos e ser por sua vez de todos amado”(23).

11. Essa facilidade natural do santo doutor para a concórdia, brilhou especialmente quando, mitigada a primitiva severidade, dedicou-se com empenho e diligência a conciliar a paz com os bispos da província de Antioquia. De fato, referindo-se ao legado deles, entre outras coisas escreve o seguinte: “Ele suspeitava que talvez devesse arrostar combates não pequenos para nos persuadir da necessidade de reunir as Igrejas na concórdia e na paz, de afastar a irrisão dos heterodoxos e de derrotar as forças da improbidade diabólica. E pelo contrário nos encontrou de tal modo preparados a ela, que não teve trabalho absolutamente nenhum. Lembramo-nos do que dizia o nosso Salvador: “Dou-vos a minha paz, deixo-vos a minha paz”.(24) E visto que essa paz era impedida pelos doze capítulos compostos por são Cirilo no sínodo de Alexandria (capítulos que, por falarem de “união física” em Cristo, eram rejeitados como heterodoxos pelos antioquenos), o benigníssimo patriarca, apesar de não condenar nem rejeitar esses escritos que propunham doutrina ortodoxa, no entanto, por meio de muitas cartas, explicou seu pensamento de tal modo que se afastasse qualquer – até mesmo a menor – sombra de erro, e mais facilmente se abrisse o caminho à concórdia. Isso proporcionava-o aos Bispos, “não já como a opositores mas como a irmãos”.(25) Pois, nas suas palavras, “pela paz das Igrejas, e para que estas não se separem pela divergência de opiniões não são inúteis as condescendências”.(26) E, assim, felizmente, resultou que a caridade de são Cirilo recolheu os desejados e ubertosos frutos da paz. E logo que pôde finalmente ver despontar a paz, e os bispos da província de Antioquia, condenando a heresia de Nestório, dar-se o abraço fraterno, tomado de superior alegria exclamou: “Alegrem-se os céus e exulte a terra! Derrubou-se o muro da separação, sossegou o que nos trazia tristeza, toda espécie de dissídios desapareceu, e Cristo Salvador de todos nós deu a paz às suas Igrejas”.(27)

12. Ora, do mesmo modo que naqueles remotos tempos, também no presente, veneráveis irmãos, para alcançar a desejada conciliação (por que lutam todos os bons) dos dissidentes com a Igreja única de Cristo, sem dúvida alguma uma benevolência sincera e eficaz das almas trará, como auxílio e favor de Deus, o mais valioso de todos os contributos. Com efeito, este afeto de benevolência fomenta o mútuo conhecimento, para cuja procura e consecução tanto trabalharam os nossos predecessores, por meio de várias iniciativas, e principalmente pela fundação nesta alma cidade de um Instituto Pontifício destinado a promover mais profundos estudos dos problemas orientais. Com a devida estima convém outrossim aceitar tudo aquilo que foi transmitido aos povos orientais pelos seus maiores, como um patrimônio peculiar; e assim também o que diz respeito à sagrada liturgia e às ordens hierárquicas, ou que pertença aos outros modos da vida cristã, desde que concordem plenamente com a lídima fé religiosa e as retas normas morais. É, pois, necessário que se conceda a todos e a cada um dos povos de rito oriental, no que pertence à história, ao caráter e índole de cada qual, uma legítima liberdade, que porém não discrepe da verdadeira doutrina de Jesus Cristo, toda inteira. E isso o saibam e considerem tanto os que nasceram no grêmio da Igreja católica, quanto os que se encontram no desejo e anseio de abraçá-la; os quais todos saibam e tenham por certo que nunca serão coagidos a mudar pelos ritos e usos latinos os seus próprios legítimos ritos e os usos que lhes foram transmitidos desde tempos remotos. Tudo isso que se deve considerar com igual estima e igual honra, circunda de uma variedade quase real a mãe comum a Igreja. E mais: tal diversidade de ritos e de usos, enquanto conserva fielmente o que cada qual possui de antigo e precioso, de modo algum obsta à verdadeira e sincera unidade. E principalmente em nossos tempos, quando a discórdia bélica e a desavença em quase toda a terra dividiram entre si os homens, é mister que todos, incessantemente, movidos da caridade cristã, sejam levados a favorecer por todos os meios a conjunção em Cristo e por Cristo.

CAPÍTULO III

13. Entretanto, o concurso da fé e da caridade será completamente falho e ineficaz para confirmar a unidade em Jesus Cristo, se não se basear naquela pedra inconcussa sobre a qual a Igreja foi divinamente fundada, isto é, na suprema autoridade de Pedro e de seus sucessores. Também isso o prova de sobejo o modo de agir do patriarca de Alexandria naquela causa gravíssima. Ele, com efeito, tanto ao profligar a heresia de Nestório, quanto ao conciliar a concórdia entre os bispos da província de Antioquia, esteve estreitíssima e constantemente unido a esta Sé Apostólica. Quando o vigilante pastor descobriu que os erros de Nestório, com riscos cada dia mais perigosos para a genuína fé, se espalhavam e grassavam por toda parte, enviou cartas ao nosso predecessor são Celestino I, em que entre o mais dizia: “Pois que Deus nestes negócios exige de nós a vigilância, e o longo costume das Igrejas persuade que tais negócios se comuniquem a vossa santidade, escrevo movido por verdadeira necessidade”.(28) Ao que o romano pontífice responde ter abraçado Cirilo “como que presente naquela carta”, visto què pareciam “ter sobre o Senhor um só e mesmo pensamento”.(29) Por isso o supremo sagrado antístite delegou a tão ortodoxo doutor a autoridade da Sé Apostolica, com a qual ele cuidasse de executar os decretos já lançados contra Nestório no sínodo romano. E a todos é patente, veneráveis irmãos, que ao celebrar o concílio de Éfeso o patriarca alexandrino representou cabalmente o romano pontífice, o qual também aos próprios legados então enviados recomendou com empenho que confirmassem a obra e autoridade de são Cirilo. Ele, portanto, presidiu àquele sagrado concílio em nome do romano pontífice, e foi o primeiro a assinar-lhe as atas. E era a todos tão patente, tão clara a concórdia entre a Sé Apostólica e a Alexandrina, que ao se ler publicamente na segunda sessão do concílio a carta de são Celestino, os padres assim clamaram: “É este um juízo justo. Ao novo Paulo Celestino, ao novo Paulo Cirilo, a Celestino guarda da fé, a Celestino concorde com o concílio, a Celestino todo o concílio rende graças. Um Celestino, um Cirilo, uma fé conciliar, uma fé no orbe terrestre”.(30) Nada, portanto, de admirar que pouco depois Cirilo respondesse: “A retidão de minha fé deu testemunho a Igreja romana e o santo concílio reunido, por assim dizer, de todo o orbe que existe debaixo do céu”.(31)

14. Além disso, essa mesma união de são Cirilo com a Sé Apostólica aparece eloqüente se considerarmos o que ele fez para promover e consolidar a paz com os bispos da província antioquena. De fato, aprovando nosso predecessor são Celestino, e confirmando tudo o que o prelado de Alexandria fizera no concílio de Éfeso, julgou no entanto dever excetuar a sentença de excomunhão lançada contra os antioquenos pelo presidente e os outros padres conciliares. “Quanto aqueles (diz o romano pontífice) que parecem pensar com Nestório e com igual impiedade… apesar de vossa sentença contra eles, nós entretanto determinamos o que nos aparece. Em tais causas, devem-se levar em conta muitas coisas que a Sé Apostólica sempre considerou… queremos que o de Antioquia, se há esperança de emenda, receba cartas de vossa comunidade… Deve-se esperar da misericórdia divina que todos voltem ao caminho da verdade”.(32) Obedecendo a esta norma dada pela Sé romana, são Cirilo começou a tratar de restabelecer a paz e concórdia com os bispos da província de Antioquia. E como entrementes, morto piedosamente são Celestino, alguns dissessem que seu sucessor Xisto III não aprovava a remoção de Nestório do múnus episcopal, o patriarca alexandrino refutou tais rumores com estas palavras: Xisto “escreveu de acordo com o santo concílio, confirmou tudo o que nele se fez, e pensa conosco”.(33)

15. De tudo isso se deduz líquido que são Cirilo em tudo consentiu com esta Sé Apostólica, e também que nossos predecessores consideraram os feitos dele como próprios e os exaltaram com merecidos louvores. De forma que são Celestino, além de lhe proporcionar inúmeros testemunhos de confiança e gratidão, escrevia entre outras coisas: “Congratulamo-nos de encontrar tanta vigilância em tua santidade, que já sobrepujaste o exemplo de teus predecessores, que foram também sempre defensores da fé ortodoxa… descobriste todas as armadilhas de uma pregação astuta… É um grande triunfo de nossa fé terdes defendido tão valentemente o que é nosso e terdes assim vencido, com argumentos das Sagradas Escrituras, a posição adversária”.(34) E como o sucessor deste no Supremo Pontificado, são Xisto III, recebesse do bispo de Alexandria a notícia de ter alcançado a paz e a conciliação, escreveu-lhe com alegria: “Eis que a nós, solícitos por não querer que ninguém se perca, tua santidade informa em carta que o corpo da Igreja foi restabelecido. Voltando a união aos membros, já não vemos ninguém errar por fora, porque uma única fé atesta que todos foram colocados dentro… A comunidade toda afluiu ao bem-aventurado apóstolo Pedro: eis o tribunal congruente aos que vão ouvir, conveniente aos que devem ser ouvidos… Voltaram a nós os irmãos; a nós, digo, que atacando a doença com esforço comum, cuidamos da saúde das almas. …Exulta, caríssimo irmão, exulta vitorioso pela volta dos irmãos a nós. A Igreja procurava aqueles que recebeu. Pois se não queremos que pereça nenhum dos fracos, quanto mais nos devemos alegrar pela santidade dos retos?”(35) Animado por estas palavras de nosso predecessor, o bispo de Alexandria, defensor invicto da fé ortodoxa, conciliador esforçadíssimo da concórdia cristã, descansou na paz de Cristo.

16. Celebrando, veneráveis irmãos, a memória quinze vezes secular desta data, o que mais ardentemente desejamos é que todos aqueles que têm o nome cristão, a exemplo e sob o patrocínio de são Cirilo, promovam cada dia mais a feliz volta dos irmãos orientais dissidentes a nós e a única Igreja de Jesus Cristo. Tenham todos uma só fé imaculada; uma só caridade que una a todos juntamente no corpo místico de Jesus Cristo; e, afinal, uma diligente e operante fidelidade para com a sede de são Pedro. Para esta obra digna e meritória, dêem suas forças não só aqueles que vivem nas partes do oriente (e que pela mútua estima, benévola convivência e exemplo de virtude integérrima poderão mais facilmente atrair os irmãos separados, e principalmente os ministros sagrados, à unidade da Igreja), mas também todos os fiéis cristãos, implorando e deprecando a Deus seja um por toda a terra o reino do divino Redentor, um o rebanho de todos. A todos recomendamos em primeiro lugar aquele valiosíssimo auxílio que no empreendimento de toda obra de salvação deve ser o primeiro e o principal, tanto no tempo quanto na eficácia: queremos dizer a oração ardente, dirigida a Deus com ânimo submisso e confiante. E desejamos que interponham o poderosíssimo patrocínio da virgem Mãe de Deus, para aos rogos desta benigníssima e amantíssima Mãe de todos, o Divino Espírito ilumine de sua luz superna as almas dos povos orientais, e para que todos sejamos um na Igreja una fundada por Jesus Cristo e pelo mesmo Espírito Paráclito nutrida de uma perene chuva de graças e movida à santidade. Àqueles, porém, que vivem nos seminários ou em outros colégios, queremos de um modo particular recomendar o chamado “Dia pelo Oriente”; dia em que mais ardentes preces se elevem ao divino Pastor da Igreja universal, e as almas dos jovens mais profundamente se estimulem no desejo de obter esta unidade. Todos, enfim, que ou são investidos de ordem sagrada, ou inscritos nos exércitos da Ação católica e nas outras associações, prestam um trabalho auxiliar à hierarquia eclesiástica, incessantemente promovam nas orações, nos escritos, nas alocuções, a tão desejada união de todos os orientais com o pai comum.

17. E queira Deus que este nosso paternal e insistente convite seja recebido com benevolência também por aqueles bispos dissidentes e seus rebanhos, que, ainda que de nós separados, louvam e veneram o patriarca alexandrino como uma glória doméstica. Que o preclaríssimo doutor lhes seja mestre e exemplo para de novo instaurar a concórdia naquele tríplice vínculo que ele tanto recomendou como coisa absolutamente necessária, e pelo qual o divino Fundador da Igreja quis que todos os seus filhos fossem unidos. Lembrem-se os mesmos de que nós hoje, por desígnio de Deus providente, ocupamos aquela Sé Apostólica à qual, impelido pela consciência do próprio ofício, recorreu o bispo de Alexandria, tanto para defender com armas seguras a fé ortodoxa contra os erros de Nestório, quanto também para que o consenso pacífico dos irmãos dissidentes fosse como que marcado por um selo divino. E saibam que nós somos movidos da mesma caridade que os nossos predecessores; e com votos e preces constantes temos em vista sobretudo que – removidos com felicidade os antigos obstáculos – raie, enfim; o dia em que haja um só rebanho num só redil, obedecendo com ânimo concorde a Jesus Cristo e a seu Vigário na terra.

18. Dirigimo-nos porém de modo particular aos filhos dissidentes das regiões orientais, que estimam a Cirilo com suma veneração, mas não reconhecem a autoridade do concílio Calcedonense, por ter-se nele definido solenemente haver duas naturezas em Jesus Cristo. Considerem esses que o decretado no concílio Calcedonense, ao nascerem novos erros, não contradiz a doutrina do patriarca de Alexandria. Ele, com efeito, escreve abertamente: “nem tudo que os hereges dizem deve-se imediatamente fugir e repudiar: pois confessam muitas coisas que também nos defendemos… Assim também de Nestório, bem que diga haver duas naturezas (significando a diferença da carne e do Verbo de Deus: uma é a natureza do Verbo, outra a da carne), contudo não professa conosco a união de ambas”.(36)

19. Seja-nos permitido esperar que também os sequazes hodiernos de Nestório (se, afastado o ânimo de idéias preconcebidas, buscarem e atentamente estudarem os escritos de são Cirilo) vejam abrir-se o caminho da verdade, e sintam-se sob o auxílio e inspiração de Deus, novamente chamados ao seio da Igreja Católica.

20. Já nada mais resta, veneráveis irmãos, senão que nesta comemoração quinze vezes secular, imploremos o valiosíssimo patrocínio deste santo doutor sobre toda a Igreja, e principalmente sobre todos aqueles que nas partes do oriente se gloriam do nome cristão, rezando sobretudo para que aos irmãos e filhos dissidentes aconteça felizmente o que ele outrora, congratulando-se, escrevia: “Eis que os membros separados do corpo eclesiástico, novamente se uniram, e já nada mais existe que separe pela discórdia os ministros do evangelho de Cristo.” (37)

21. Confiantes nessa suavíssima esperança, de todo o coração no Senhor concedemos a bênção apostólica, presságio dos bens celestes e testemunha de nossa benevolência paterna, a cada um de todos vós, veneráveis irmãos, e aos rebanhos a cada um confiados.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 9 de abril, domingo da Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, do ano de 1944, VI do nosso pontificado.

Pio XII Papa

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