Os cantos na celebração eucarística

TEXTOS NORMATIVOS DA IGREJA SOBRE O CANTO NA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA

(com os comentários do Prof. Alexandre H. Gruszynski)

INTRODUÇÃO

1.Quem participa (ou busca participar) de celebrações litúrgicas em paróquias diversas, mesmo de várias dioceses, pode observar como os cantos, propostos a toda a comunidade, ou executados por um grupo ou por um solista, muitas vezes não correspondem, em vários pontos, às exigências da autêntica celebração litúrgica.

2. A conversa com os pastores e com outros ministros, ordenados ou não, dessas paróquias, permite também perceber que essas pessoas, de modo geral, nem se dão conta de que, ao invés de proporcionarem, aos fiéis em geral, celebrações autênticas, formadoras, significativas, e efetivamente participadas com consciência, vão, pelo contrário, permitindo que essas celebrações ou degenerem em espetáculos (às vezes demorados) nos quais a participação da comunidade na verdade não ocorre, ou descambem para orquestrações do povo em manifestações nas quais o sentido do sagrado é sepultado por uma torrente mundana. Como também ocorrem celebrações «secas», em que o sacerdote celebrante, às vezes auxiliado por algum leitor ou leitora, ignora a comunidade e o canto.

3. Alguns, entretanto, diante de um comentário a respeito de tal ou qual ponto da celebração, manifestam sua surpresa ao saberem que foi contrariado algum dos princípios que a Igreja, pelo conjunto de todos os seus Bispos no último Concílio Ecumênico, explicitou como fundamentais da Liturgia, ou que foi contrariada alguma das regras explícitas que, com sua autoridade de responsável pela Igreja inteira, o Papa, pessoalmente ou através de um órgão ao qual confiou poder para tanto, editou em matéria litúrgica. E dentre esses, alguns também perguntam: mas afinal quais são esses princípios e normas? ? ninguém nos ensinou quais são.

4. Outro ponto que às vezes é questionado é a multiplicidade de cantos que são propostos nos folhetos preparados por editoras ou dioceses visando à participação do povo; a cada série de folhetos propõem-se cantos novos: quando esses começam a ser aprendidos já vêm outros. O canto termina sendo fator de alienação, ao invés de ser fator de participação. Às vezes o assunto chega a ser comentado na mídia, tanto na própria da Igreja como na geral. Isso provavelmente não ocorreria se fossem respeitadas as orientações normativas da Igreja sobre a matéria.

5. A diversidade de modos de celebração, por outro lado, resulta em perplexidades para não poucos fiéis, que comentam que na paróquia tal fazem assim, na outra fazem de outro modo, por que não fazem diferente, etc. Essa perplexidade atinge não raro os componentes de coros, que reclamam quando o regente do coral não quer que os cantores cantem sozinhos, ou então o bispo ou presbítero que presidirá à celebração veda a execução de certos cantos ou o canto em certos momentos.

6. Ocorreu-me, assim – com o objetivo precisamente de esclarecer e orientar aqueles que na verdade, com o espírito de obediência cristã que caracteriza o fiel comprometido, desejam dar a sua contribuição a uma Liturgia viva, consciente, autêntica, edificante, exemplar –  preparar um EXTRATO DE DOCUMENTOS NORMATIVOS DA IGREJA SOBRE O CANTO NA MISSA.

7. Os documentos de que foram extraídos os textos normativos são basicamente dois: a Constituição do II Concílio Ecumênico do Vaticano sobre a Liturgia, que em latim começa com as palavras Sacrosanctum Concilium, e que é indicada abreviadamente por SC, e a Instrução Geral do Missal Romano, cujo texto integral constitui as páginas iniciais do Missal, indicada abreviadamente por IGMR. Relativamente a alguns aspectos da Liturgia da Palavra, são apresentados também alguns textos da Introdução ao Elenco das Leituras da Missa, indicado abreviadamente por ELM. Os textos dos documentos encontram-se transcritos ou traduzidos em parágrafos reentrantes, e em itálico. Os textos normativos da Instrução Geral do Missal Romano são os da 3ª edição típica, aprovada por João Paulo II a 11 de janeiro de 2000 e editada a 20 de abril de 2000. Essa data é a da publicação da Instrução Geral, impressa inicialmente em separado do Missal, «para que o [seu] texto revisto, que faz parte do mesmo Missal, seja conhecido mais amplamente…» A edição completa do Missal só se deu em 2002, e vários números da Introdução (ou Instrução ? em latim Institutio) Geral sofreram alterações entre a primeira publicação (separata, em 2000) e a edição completa (2002).

8. Relativamente a alguns desses textos escrevi também um pequeno comentário ou alguma indicação ou remissão, que seguem o texto normativo, destacado.

9. Parece imprescindível, porém, para que se possa bem entender e pôr em prática as regras vigentes a respeito do canto, ter uma perspectiva sobre a mudança radical que o II Concílio Ecumênico do Vaticano introduziu na Sagrada Liturgia, correspondendo e em alguns pontos até superando o que, a partir do início do século XX, era preconizado pelo chamado «Movimento Litúrgico».

10. Com efeito, o Concílio de Trento (1545-1563), reagindo contra a posição então pregada pelo Movimento da Reforma e contrariando a prática constante das Igrejas Orientais, cristalizou na Liturgia ocidental a língua latina (salvo a grega no Kyrie, eleison), proibindo o uso da língua do povo. Proibiu-se, ademais, que, paralelamente aos textos proferidos pelo sacerdote ou por outro ministro em latim, se recitasse em voz alta (ou cantasse) a respectiva tradução, permitindo-se na língua do povo apenas a recitação ou o canto de uma paráfrase daquele texto, ou sejam uma imitação, um texto parecido, que lembrasse o que era dito em latim. O motivo de tal regra foi este: Se fosse proferida a tradução, haveria o risco de, com o tempo, passar-se a dizer somente a tradução, e cairia o latim, que devia ser mantido a qualquer custo. Parece que a autoridade da época esqueceu que o latim fora introduzido, a seu tempo, em substituição ao grego, quando o povo não mais compreendia a língua grega, só a latina, que era então a língua do povo.

11. Foi assim que surgiram, em certa época, muitos cantos que parafraseavam o que seria a tradução do texto latino oficial: só era permitido cantar, paralelamente aos textos oficiais proferidos em latim, esses cantos do tipo paráfrase, jamais as traduções dos textos oficiais.

12. O II Concílio do Vaticano (complementado por documentos legislativos que a ele se seguiram) acabou com isso: foi gradativa-mente autorizado o uso da língua do povo em todos os textos oficiais que deviam ser proferidos em voz alta, e a participação ativa (e consciente) dos fiéis se faria (além de mediante atitudes, gestos e outros meios) proferindo, ou cantando, exatamente esses textos oficiais. Desapareceu, pois, a razão para paráfrases ou outros textos meramente evocativos daqueles que deviam ser pronunciados ou pelos ministros ou por todos.

13. Os textos a serem cantados ou proferidos são aqueles homologados pela autoridade central da Igreja Latina, inclusive quanto às traduções para a língua do povo, a serem preparadas e previamente aprovadas pela respectiva Conferência de Bispos.

14. Ora, a regulamentação da Sagrada Liturgia é da competência exclusiva da autoridade da Igreja. Essa autoridade cabe à Santa Sé Apostólica e, segundo as normas do Direito, ao Bispo.

Por poder concedido pelo Direito, dispor sobre assuntos de Liturgia, dentro dos limites estabelecidos, cabe também às competentes conferências territoriais de Bispos, de vários tipos, legitimamente constituídas.

Portanto, jamais alguém outro, ainda que sacerdote, acrescente, tire ou mude por própria conta qualquer coisa à Liturgia. (SC, 22)

A competência do próprio Bispo (diocesano), portanto, é limitada pelas normas do direito universal. Os demais sacerdotes ou outros ministros somente podem introduzir variantes nos textos estabelecidos quando norma específica explícita, indicada no rito, assim o previr.

15. A presença, nas celebrações litúrgicas de nosso tempo, de cantos ou outros textos que não os oficiais, portanto, somente pode ocorrer naquelas partes em que especificamente se permite «outro canto adequado», como por exemplo no Canto de Entrada e no Canto de Comunhão da Missa, ou para acompanhar certos ritos que também podem ocorrer dentro da Missa (entrega das vestes nas ordenações, procissão do Ssmo. na quinta-feira santa, etc.). Mesmo esses cantos, porém, devem ter prévia aprovação expressa da Conferência de Bispos. Fora dessas hipóteses de permissão expressa, o uso dos velhos cantos de paráfrase, ou, o que é pior, a composição de novos cantos sem observância do texto oficial, original ou traduzido, constitui um arcaísmo, um retorno ao passado já superado pela Igreja, motivado talvez por falta de conhecimento de tratar-se de fase já ultrapassada, ou talvez (o que seria muito mais grave), por rebeldia contra a autoridade constituída na Igreja. Se a essa conclusão já se podia com tranqüilidade chegar anteriormente, a nova IGMR agora é explícita em proscrever tais práticas.

16. A Liturgia é pastoral por vocação, não pode jamais perder o sentido pastoral. A reforma litúrgica determinada pelo II Concílio Ecumênico do Vaticano teve precisamente esse perspectiva, como se pode ver do nº 43 da Sacrosanctum Concilium. Como a celebração da Eucaristia, como de resto toda a Liturgia, faz-se mediante sinais sensíveis, através dos quais a fé é alimentada, fortalecida e expressa, deve cuidar-se ao máximo em escolher aquelas formas e aqueles elementos propostos pela Igreja que, tendo-se em conta as circunstâncias pessoais e locais, estimulem mais intensamente uma participação ativa e plena, e mais adequadamente respondam à utilidade espiritual dos fiéis. Por isso é preciso que os pastores responsáveis pelas celebrações tenham suficiente formação e sejam dotados de aprimorada sensibilidade para escolher, dentre as propostas pela Igreja, as alternativas mais frutíferas, ouvindo os fiéis a seu cargo e ajustando seus próprios gostos àquilo que seja o melhor para aquela determinada assembléia. As ovelhas conhecem a voz do pastor, sim, mas precisam também de momentos de silêncio e de contemplação. Elas principalmente esperam, do pastor, que ele lhes dê tranqüilidade, paz e segurança, e isso exige, por parte do pastor, respeito aos padrões de comportamento. A paz que todos buscamos é a tranqüilidade na ordem, segundo clássica definição de Sto. Tomás de Aquino. É o respeito à ordem que traz a tranqüilidade, a segurança. Na Igreja, e especialmente na Liturgia, fonte e cume da vida da Igreja, não pode ser diferente: para que a Liturgia terrena seja a prefiguração da Liturgia celestial (como nos propõem tantos textos da própria Liturgia), ela não pode ser nervosa nem inesperada nem improvisada.

Mas a Liturgia não pode ser morta, precisa ser vívida, e para tanto precisa ser vivida pelos que nela atuam, precisa ser espontânea. Não se pode, de modo algum, ser um «rubricista»: é preciso insuflar na regra o espírito, é preciso dar vida (e não pode ser uma vida artificial) à regra. Como escreveu um mestre da vivência litúrgica: A verdadeira espontaneidade, a verdadeira criatividade consistem em preparar-se bem para fazer viver um texto, dando espírito à letra da liturgia.

Os ministros ordenados e os ministros leigos da Liturgia devem ser o que a palavra «ministro» exprime: servidores, dispensadores dos mistérios de Deus, administradores de algo que não é seu, que foi confiado à Igreja. Ora, o que dos administradores se exige é que sejam fiéis. Até para poderem, no último dia, ir ao encontro do Senhor e dele ouvir estas palavras: Servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor.

17. Espero, ao preparar este trabalho, estar fazendo bom uso de graça que me foi conferida (cf. Mateus, 25, 14 e ss.), ao manifestar a fiéis em geral, e eventualmente a pastores e outros ministros, um parecer sobre matéria que pertence ao bem da Igreja, sempre em vista da utilidade comum.

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