Os erros fundamentais da “Sola Scritpura”

Nos debates apologéticos que travei, senti a necessidade de estabelecer pontos comuns para, a partir daí, iniciar um diálogo que seja proveitoso e tenha, como fruto primordial a ser alcançado, a remoção dos obstáculos intelectuais que possam impedir a conversão de meu interlocutor à verdade revelada. Para tal, há de se admitir que Deus é acessível pelas vias da razão, e que, ainda que certos pontos da doutrina só sejam compreensíveis pela fé, não sendo racionais, são, ao menos, razoáveis, isto é, compatíveis com a inteligência humana. A demonstração lógica dos fatos abarcados pela ciência sagrada constitui-se, por isso, em tarefa do apologista, chamado que é por Nosso Senhor nestes tempos tão confusos.

Daí que, analisando os métodos de defesa da Igreja e da doutrina por ela proposta, salta aos olhos a consideração que se deve fazer do estabelecimento de pressupostos aceitos por ambos os lados envolvidos no debate. A inteligência nos mostra isso, e a experiência o confirma.

Assim, ao tratarmos com um espírita, temos de ter em mente que, ao lado das inumeráveis facetas dogmáticas implicadas na aceitação do ensino kardecista e que se mostram totalmente diversas do ensinado por Cristo e Sua Santa Igreja Católica, tem-se uma crença comum em um Deus único. Presente está o pressuposto basilar, que não precisa ser explicado, e dele partimos aos outros assuntos: da possibilidade de Deus revelar-se, da historicidade de tal revelação, do conteúdo e das etapas da mesma, da vinda e da natureza de Jesus Cristo, de Sua obra redentora na Cruz, do evento e das provas de Sua Ressurreição, da constituição de Sua Igreja, da continuidade de sua missão no tempo etc.

Da mesma maneira, debatendo com um agnóstico, figura tão comum nos dias hodiernos, é necessária a explicitação da existência de Divindade, da possibilidade de Seu conhecimento pela intelecção, de Sua transcendência (negando a modernista imanência divina), e da conciliação entre fé e razão. Somente depois de demonstrado isso e conseguido algum progresso, passaremos a outros assuntos, numa crescente e lógica apresentação das matérias.

O presente artigo quer ser uma pequena contribuição para os que desejam iniciar-se no diálogo com protestantes. Pretende também lançar dados básicos para aqueles que querem entender melhor a posição católica frente às dúvidas lançadas por um número cada vez maior de seitas ditas “evangélicas” que se multiplicam em cada esquina. Estabelecendo um pressuposto comum com os cristãos das várias organizações surgidas da Reforma, teremos mais êxito em nossos debates. Qual é esse fundamento? – tal indagação tentará ser respondida no decorrer do ensaio. Por outro lado, formando católicos mais convictos, “sempre prontos a responder para vossa defesa a todo aquele que vos pedir a razão de vossa esperança” (I Pe 3,15), a semente do erro não florescerá e a cizânia plantada pelo inimigo poderá, desde logo ser descoberta.

Do movimento herético iniciado pelo frade agostiniano Martinho Lutero, milhares de almas foram formalmente separadas do Romano Pontífice, ao qual, segundo o Papa Bonifácio VIII, devem estar todos sujeitos para ganharem a salvação (cf. Bula Unam Sanctam). Pregando um igualitarismo entre os membros da Igreja, e supondo-a invisível, desprezou Lutero, outrossim, muitos dos meios ordinários de comunicação da graça – admitiu como sacramentos apenas a Eucaristia e o Batismo, dos quais somente este último é validamente administrado segundo a ótica da teologia católica. A fé ganhou um substrato muito mais intimista, de sorte que cada fiel passou, no dizer de muitos pregadores católicos, a ser “seu próprio papa.” Para ler a Escritura, prescindia-se da autoridade da Igreja, bastando o crente ser inspirado pelo Espírito Santo. De fato, essa atitude nega o que diz a Bíblia, que os reformadores desejavam ver ”de volta na mão do povo”. Falando das cartas de São Paulo, escreve São Pedro: “Nelas há algumas passagens difíceis de entender, cujo sentido os espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos deturpam, para a sua própria ruína, como o fazem também com as demais Escrituras.” (II Pe 3,16) Como admitir que tão ardorosos defensores da Sagrada Escritura a contrariem num ponto tão claramente exposto pelo apóstolo? Se existem “passagens difíceis de entender” é porque não basta pegar a letra bíblica para saber seu significado! Tampouco uma pretensa “iluminação” pelo Espírito Santo garantiria a fidelidade à revelação, pois não foi dado Ele aos batizados para simplesmente tornarem-se doutores em exegese! Se assim o fosse, não restariam tantas igrejolas com doutrina distinta, contrárias umas às outras, dizendo-se “inspiradas pelo Espírito Santo.” É Deus esquizofrênico para revelar contradições? Ou está o Criador brincando com Seus filhos em assunto tão importante como a compreensão de Suas palavras? Justamente para evitar que “espíritos ignorantes ou pouco fortalecidos” interpretem a Bíblia conforme quiserem, é que o Espírito Santo foi dado à autoridade propriamente constituída para o ensino: “Quem vos ouve a mim ouve” (Lc 10,16), diz Jesus aos Apóstolos. E reitera, a eles: “O Espírito Santo vos ensinará todas as coisas.” (Jo 14,26)

Podem perguntar alguns protestantes, e mesmo católicos sem uma sólida cultura religiosa, se algumas noções de hermenêutica bíblica e a aplicação de certas regras para a interpretação das passagens da Escritura não dariam a autoridade necessária ao fiel para as interprete. Tal artimanha se desfaz logo, bastando a pergunta: quem estabelece tais regras? Existiriam tantas maneiras de se construir chaves exegéticas quantas proposições teológicas conflitantes forem cridas como verdadeiras. Assim, também o calvinista afirma, ao lado da clássica sustentação de “iluminação do Espírito Santo”, que suas teses têm “embasamento teológico” e que “seguem as regras para a interpretação bíblica.” De outra sorte, o batista, negando muito do credo de Calvino, e para ensinar teorias totalmente opostas, apelaria para os mesmas argumentos, supondo-se apenas que as referidas “regras hermenêuticas” seriam outras. Cada qual interpretaria conforme se tornasse a exegese mais coerente com o sistema teológico adotado, e estaria abolida a segurança, persistindo o problema. “Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal.” (II Pe 1,20)

Todo o erro acima aludido decorre de uma sentença do pensamento luterano, ainda que já adotada pelos precursores da Reforma Protestante. É a sustentação de que toda doutrina, para ser considerada verdadeira, deva estar contida nas páginas da Bíblia. Afirmação aparentemente piedosa, carrega em si todo o rancor contra a Igreja, e prepara os espíritos mais fracos para a inoculação do veneno protestante, traduzido na revolta contra tudo o que não satisfizer os anseios puramente humanos reclamados pela consciência escrupulosa dos reformadores. Nesse sentido, apelando para essa frase – “toda doutrina verdadeira deve estar na Bíblia” –, tentam envolver os católicos em uma rede, da qual os incautos podem vir a não mais sair. Em face da gravidade da questão, torna-se imperativo mostrar a inconsistência lógica da assertiva, que passa despercebida até mesmo pelos protestantes que aderem à heresia de boa-fé.

Se a sentença de que toda a verdade está na Bíblia é correta, ela mesma deve estar nas páginas de algum livro da Sagrada Escritura. É uma conseqüência obrigatória para quem a profere. Logo, aos que ensinam “toda doutrina verdadeira deve estar na Bíblia”, cabe indagar onde, na Escritura, está contida tal afirmação. Sim, pois a frase em si é uma doutrina, e, se é verdadeira, como propugam seus fautores, deve estar na Bíblia, sob pena de considerá-la uma contradição. Alguns responderão, citando o Apóstolo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça.” (II Tm 3,16) Entretanto, se a passagem afirma a inspiração divina da Bíblia – que não é negado pelos católicos! –, ela não sustenta, por outro lado, que somente a Escritura possui tal inspiração. Assim, afirmar “Fulano é inteligente” não importa em dizer que “Só Fulano é inteligente.” A aludida perícope escriturística não prova o argumento protestante.

Voltamos à pergunta, e a reformulamos, para destruir de vez o esquema dos hereges: existe, acaso, na Bíblia, a sentença de que só que nela está contido é verdadeiro, ou de que tudo, para ser verdadeiro, deve estar em suas páginas? Solapada a primeira tentativa, com a carta a São Timóteo, resta um exame acurado de todo o conteúdo da Escritura, o que resulta na resposta negativa. O ensino da “Sola Scriptura” – do latim, “Só a Escritura” –, resumo do significado de “toda doutrina verdadeira deve estar na Bíblia”, não encontra respaldo na mesma. A “Sola Scriptura” não está na Bíblia! Se uma doutrina, para ser verdadeira, deve estar na Bíblia, só temos duas conseqüências: ou a Escritura confirma semelhante proposição, o que vimos não ser correto, pela completa ausência de frases a respeito; ou a “Sola Scriptura”, por não estar na Bíblia, não é verdadeira. A própria sentença protestante que diz ser somente correto o que está na Escritura, nela não se encontra, fazendo-nos crer que não é verdadeira – resultado lógico! Interessante que aquilo que justifica a fé protestante na Bíblia (fé essa correta, ainda que distorcida), não é uma verdade, mas um falso silogismo já desmontado. Não é possível que a “Sola Scriptura”seja verdadeira se seu significado é de que a doutrina, para ser legítima e aceita como revelada da parte de Deus, deva estar na Bíblia, e ela mesma não está!

Feita a apreciação negativa da base doutrinária protestante, resta-nos, antes de passarmos ao segundo erro fundamental da mesma, expôr argumentos positivos subsidiários. Não só a doutrina que afirma que é verdadeiro somente o expresso na Sagrada Escritura nela não se encontra, como também justamente o contrário é ali afirmado. Se não, vejamos o seguinte. São Paulo, escrevendo a São Timóteo, exorta-o a guardar o que foi a ele ensinado – e esse ensino não está na Escritura, de modo que temos de entender como passado oralmente –, dizendo: “Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado!” (I Tm 6,20), e repetindo, em outra ocasião: “Guarda o precioso depósito, pela virtude do Espírito Santo que habita em nós” (II Tm 1,14). Explicando textualmente que o ensino cristão não se dá apenas pelo contido na Bíblia, o mesmo Apóstolo, escreve: “Assim, pois, irmãos, ficai firmes e conservai os ensinamentos que de nós aprendestes, seja por palavras, seja por carta nossa.” (II Ts 2,15); a doutrina verdadeira está na Bíblia – carta –, mas também no ensino oral – palavras dos Apóstolos. E reafirmando o valor da Tradição – do latim “Traditio”, que significa “passado adiante” –, e que se dá oralmente, exorta-nos o santo que evitemos tudo o que contrariar a “tradição que de nós tendes recebido.” (II Ts 3,6) O que é livre de erro não é somente a Escritura, mas o ensinamento apostólico, que se dá, outrossim, pela pregação – aliás, antes de termos definido o cânon, isto é, a lista dos livros que pertencem à Bíblia, já tínhamos a pregação dos Santos Apóstolos, a Tradição oral: “a nossa PREGAÇÃO não provém de erro, nem de intenções fraudulentas, nem de engano.” (I Ts 2,3; grifos nossos) As próprias leis que norteiam a administração da Igreja nos tempos primevos não estavam presentes na Bíblia, mas mesmo assim é ordenado que sejam acatadas: “Eu te deixei em Creta para acabares de organizar tudo e estabeleceres anciãos em cada cidade, de acordo com as normas que te tracei.” (Tt 1,5) São João, o discípulo amado, escreve um Evangelho e três epístolas, e contudo deixa ensinos, por certo verdadeiros, para ser transmitidos oralmente: “Tinha muitas coisas para te escrever, mas não quero fazê-lo com tinta e pena. Espero ir ver-te em breve e então falaremos de viva voz.” (III Jo 13-14) A Bíblia não foi escrita para abrigar a doutrina, vemos, pois ela foi transmitida pelos Apóstolos a seus sucessores legítimos, e tanto que nos primeiros anos o cânon não estava definido – cabe lembrar que quem o fez foi uma reunião de sucessores dos Apóstolos, os Bispos, provando que a Bíblia é “filha da Igreja” e não sua “mãe”, como querem os protestantes: “foi a Tradição apostólica que fez a Igreja discernir que escritos deviam ser enumerados na lista dos Livros Sagrados.” (Catecismo da Igreja Católica, 120) Redigiu-se a Bíblia, sob a inspiração do Espírito Santo, como compilação da doutrina cristã, o que é atestado implicitamente pelo mesmo São João, ao afirmar que nem tudo o que Cristo fez está na Escritura: “Fez  Jesus, na presença dos seus discípulos, ainda muitos outros milagres que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos, para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome.” (Jo 20,30-31) Não é outro o entendimento da Igreja, reunida no Concílio Ecumênico Vaticano II: “E isto foi fielmente executado tanto pelos Apóstolos, que na pregação oral, por exemplos e instituições, transmitiram aquelas coisas que receberam das palavras, da convivência e das obras de Cristo ou que aprenderam das sugestões do Espírito Santo, como também por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, puseram por escrito a mensagem da salvação.” (Constituição Dogmática “Dei Verbum”, 7) “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão, portanto, estreitamente conexas e interpenetradas. Ambas promanam da mesma fonte divina, formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim. Com feito, a Sagrada Escritura é a fala de Deus quanto é redigida sob a moção do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos para que, sob a luz do Espírito de verdade, eles em sua pregação fielmente a conservem, exponham e difundam. Resulta, assim, que não é através da Escritura apenas que a Igreja consegue sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado. Por isso, ambas – Escritura e Tradição – devem ser recebidas e veneras com igual sentimento de piedade e reverência.” (Constituição Dogmática “Dei Verbum”, 9)

O segundo erro contido na “Sola Scriptura” é a petição de princípio, definido como “o colocar a autoridade do objeto no próprio objeto”. Assim, pregam milhões de protestantes que crêem na Bíblia porque ela afirma ser verdadeira. Ora, nada mais infantil! O Corão dos muçulmanos também se afirma verdadeiro, e nem por isso cremos os católicos nele! O Livro de Mórmon, com todas as suas hediondas insanidades, diz de si mesmo que é legítimo e que contém a verdade. Algo não pode ser verdadeiro somente porque se diz verdadeiro. “O papel aceita tudo”, é o ditado popular.

A autoridade da Bíblia não pode residir exclusivamente nela mesma, pois dessa maneira não teríamos argumentos para rebater os islamitas ou os mórmons, que admitem outros livros sagrados. A resposta protestante aos muçulmanos não os convence da verdade bíblica e da falsidade corânica – se maometanos se convertem ao cristianismo de matriz protestante, o fazem por outros motivos e com argumentos diversos do apresentado pela “Sola Scriptura”. A “Sola Scriptura” produz versões contraditórias entre as denominações protestantes.Não há unidade doutrinária.

Nós, católicos, também cremos na autoridade da Bíblia, mas não porque ela se nos afirma dessa maneira. A razão de nossa fé na Escritura reside também fora dela, por razões lógicas – cairíamos, já o dissemos, em petição de princípio, se sustentássemos a mesma tese protestante de que a autoridade bíblica reside somente em suas páginas. Cremos na Bíblia porque assim nos manda a Igreja. A origem da autoridade da Bíblia está na Igreja, que tem sua autoridade em Cristo, Seu Fundador, que, por ser Deus, é a fonte primária de toda legítima autoridade. Com Santo Agostinho, aliás tão utilizado (e distorcido, claro!) pelos protestantes para defender seus impropérios predestinacionistas, fazemos profissão de fé: “Eu não creria no Evangelho, se a isto não me levasse a autoridade da Igreja católica.” (Contra epistulam Manichaei quam vocant fundamenti, 5,6; PL 42,176)

Temos de ver, na Sagrada Escritura, a orientação segura para nossa vida, mas como presente de Deus para nós através da Igreja. Não somos os católicos pessoas que desprezam a Bíblia. Antes de tudo, queremos é defendê-la, colocando-a no justo lugar, e não acima da Igreja, ambiente no qual ela foi gerada. “Na Sagrada Escritura, a Igreja encontra incessantemente seu alimento e sua força, pois nela não acolhe somente uma palavra humana, mas o que ela é realmente: a Palavra de Deus. Com efeito, nos Livros Sagrados o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com eles fala.” (Catecismo da Igreja Católica, 104)

A compreensão do que a Bíblia representa e o reconhecimento de que, se isolada da Tradição Apostólica em que foi gerada, não é fonte da Revelação, tornam-se o pressuposto necessário ao sadio debate com cristãos pertencentes a comunidades protestantes. Se não for estabelecida a fonte de nossa fé, de nada adianta debatermos com eles sobre a Imaculada Conceição de Nossa Senhora, ou sobre como se dá a presença de Cristo no sacramento da Eucaristia, ou ainda sobre tantos outros pontos conflitivos (existência do Purgatório, intercessão dos santos, veneração de imagens, confissão sacramental, sacerdócio hierárquico, primado pontifício, infalibilidade papal etc). Defenderemos nossa crença baseando-nos em uma fonte e eles, por a negarem, não aceitarão. Aquele ponto comum que buscávamos para, daí partirmos a um diálogo sério e frutífero, é justamente o papel da Tradição e da Escritura. Sem cuidarmos de uma base nesse princípio da autoridade, construiremos um debate tendente ao fracasso.

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