Por que a Igreja não recomenda a cremação de cadáveres?

– “Por que a Igreja proíbe a cremação de cadáveres?” (C.S.F. – Rio de Janeiro-RJ).

Para se entender a posição da Igreja, será útil breve esboço histórico da maneira de tratar os cadáveres.

Na medida em que se pode julgar, o homem da pré-história praticava a inumação dos mortos, como o atestam as ossadas fósseis encontradas nas cavernas: em Aurillac, Cro-Magnon, Menton, terão existido lugares de sepultura regular, à entrada dos quais havia restos de sacrifícios e banquetes celebrados em honra dos mortos. Contudo, a cremação parece ter estado em uso na mesma época, pois se encontram também cinzas de cadáveres humanos.

Nos tempos históricos anteriores a Cristo, o modo de tratar os corpos dos defuntos variava de povo a povo, com predominância, porém, da inumação.

Entre os romanos, a praxe mais antiga era o sepultamento. Sob a República, porém, começaram a aplicar o fogo aos cadáveres, julgando que assim ajudariam o espírito a se libertar do corpo; a cremação, contudo, nunca suplantou por completo o rito primitivo; a Lei das Doze Tábuas. no ano de 308 da fundação de Roma. reconhecia a plena legitimidade de um e outro costume.

Os semitas em geral, inclusive os israelitas, não queimavam, mas sepultavam os seus mortos. A Lei de Moisés mandava inumar os supliciados no dia mesmo da execução capital (cf. Deuteronômio 21,22-23); os judeus só incineravam em casos extraordinários de guerra ou peste; tenham-se em vista a sorte dos cadáveres de Saul e seu filhos (1Samuel 31,12-13) e a profecia de peste consignada por Amós 6,9-10.

Eis o fundo ao qual sobreveio o Cristianismo.

Este nunca praticou senão a inumação. Até mesmo com perigo de vida, os antigos discípulos de Cristo recolhiam os restos mortais dos seus mártires para os sepultar. Os pagãos por vezes se compraziam em violar os túmulos dos cristãos; e embora o pudessem evitar praticando a cremação, os fiéis não adotavam este costume. Os perseguidores, em certos casos, mandavam mesmo queimar os cadáveres dos mártires e atirar suas cinzas às águas ou aos ares, entendendo assim combater a fé cristã na ressurreição; ao que retrucavam os fiéis que nem por esse recurso ficaria coibida a Onipotência Divina, que prometeu ressuscitar os mortos.

Terminada a era antiga, Carlos Magno em 789 publicava severa lei contra a cremação, ainda [então] praticada esporadicamente como reminiscência do paganismo; ao transgressor seria imposta a pena de morte.

Em plena Idade Média (séculos XIII/XIV) tem-se notícia de cristãos que faziam ferver os cadáveres em água, principalmente os de dignitários e nobres, a fim de separar carne e ossos e os transportar mais comodamente para a sepultura! Contra tal uso, tachado pelo Papa Bonifácio VIII de “ímpio e cruel”, a Igreja reagiu punindo de excomunhão os que assim procedessem (Extravag.Com. 1,3,t.4, Decretal.”Detestandae feritatis”).

Na Idade Moderna, representantes da Revolução Francesa, mediante uma petição apresentada ao Conselho dos Quinhentos no dia 21 do Brumário do ano V (11 de Novembro de 1796), tentaram implantar a cremação na França, sem encontrar, porém, o devido apoio. Finalmente, a partir de fins do século passado, a Maçonaria, propugnando tal praxe, [passou a conseguir] o reconhecimento oficial da mesma por parte de alguns governos. A campanha se abriu na Itália, onde Brunetti em 1872 fez algumas experiências; em 1873 o Senado Romano permitiu às famílias recorrer a tal rito. Em consequência, o primeiro caso de cremação legal se registrou em Milão aos 22 de Janeiro de 1876. Por essa ocasião, fundaram-se em Dresden, Zürich, Gotha, Londres e Paris, numerosas sociedades que visavam propagar a praxe. O sucesso por elas obtido explica a existência, nos nossos dias, de estabelecimentos e fornos crematórios na Europa, nos Estados Unidos e em outras nações [inclusive o Brasil]; contudo, fora do Japão (onde a incineração parece ser praticada sem repugnância alguma por parte do povo), o seu funcionamento é relativamente exíguo; os que desejam ser incinerados ainda constituem uma exceção.

E essa exceção, por muito que se queira justificar, [continuou] sendo reprovada pela Igreja, a qual [mandava] aos seus fiéis:

1) abstenham-se de mandar queimar os seus próprios cadáveres ou os de outras pessoas;

2) tenham por inválida a ordem de cremação do próprio cadáver expressa por outrem, quando ainda em vida;

3) os serventes e oficiais subalternos não colaborem em cremação a não ser que conste claramente que tal serviço, no caso dado, não significa reprovação da doutrina católica nem profissão de ideologia acatólica;

4) não deem seu nome a sociedades promotoras da incineração.

Em particular, a respeito de membros (braços, pernas, etc.) amputados em intervenções cirúrgicas, Religiosas que trabalhavam num hospital dos Estados Unidos da América, não sabendo como proceder, interrogaram a Santa Sé a propósito; e aos 3 de Agosto de 1897 receberam em resposta as seguintes normas: seria desejável, nas dependências do hospital se reservasse pequeno espaço de terra, que, após a bênção do Ritual, ficasse destinado a receber os membros extraídos de católicos; caso, porém, esta praxe fosse difícil ou inexequível, se conformassem aos costumes vigentes no lugar, ou sepultando em terra profana ou, se os médicos o mandassem, recorrendo à cremação.

E quais os motivos de tal atitude da Igreja?

Não [foi] propriamente o dogma, nem mesmo o da ressurreição dos corpos, que a [inspirou]; o cristão sabe perfeitamente que na consumação dos tempos o Senhor poderá reconstituir o corpo próprio a cada alma humana, independentemente da sorte que tenha tocado ao cadáver.

Contudo a Igreja [se deixou e ainda] se deixa mover:

1) Pelo respeito à natureza: O senso cristão reverencia as obras de Deus; julga não lhe ser lícito retocar o curso natural das coisas instauradas pelo Criador; é esta uma norma geral que se aplica ao caso da decomposição dos cadáveres e (com muito mais premência ainda) a tudo que diz respeito à geração de novo ser humano;

2) Pela consciência da dignidade sobrenatural do corpo humano: O Filho de Deus, encarnando-se, tocou e santificou a carne. Mais ainda: esta, pelo batismo, é feita portadora de Deus, templo da Santíssima Trindade; a Eucaristia a põe em contato íntimo com o corpo santíssimo de Cristo. Sendo assim, repugna espontaneamente ao cristão tratar o corpo humano, principalmente o corpo de quem pelo sacramento foi enxertado no Cristo, como se trata uma porção de matéria tomada inútil, lançada ao lixo e destruída pelo fogo; a carne que, conforme Santo Agostinho, “o Espírito Santo usou para toda obra boa” (De cura pro mortuis gerenda 2), merece respeito, respeito que os antigos já na pré-história tributavam aos seus mortos, embora se inspirassem em motivos diferentes. O sepultamento exprime bem a fé na ressurreição ou a ideia de que a morte é, como diziam os antigos, um sono; é o cemitério (“koimetérion”, em grego) um dormitório, onde os defuntos aguardam o dia de despertar e ir ao encontro do Senhor. Se é com a morte que começa a verdadeira vida, porque praticar com os cadáveres um rito que insinua a total dissolução do sujeito?

3) Acresce que nos tempos modernos o movimento pró-cremação tem sido inspirado pela ideologia racionalista da Revolução Francesa e da Maçonaria, e frequentemente equivale a uma profissão de fé anticatólica ou de materialismo. Os que propugnam a incineração em nossos tempos não raro visam em primeiro lugar incutir concepções filosóficas contrárias ao Cristianismo.

São estes os motivos da posição da Igreja. Em casos esporádicos, porém, principalmente quando se trate de salvaguardar o bem comum ameaçado por guerra ou epidemia, as autoridades eclesiásticas não se opõem à cremação.

A este propósito não se poderia objetar que, mesmo fora dos casos de epidemia, a cremação, suprimindo o perigo de emanações nocivas dos cadáveres, é mais condizente do que a inumação com a higiene pública. Os peritos médicos ensinam que a putrefação normal no seio da terra equivale a lenta cremação, cujos produtos, quer parciais, quer definitivos, são inócuos não acarretando perigo nem para as águas nem para a atmosfera; com efeito, o poder natural de depuração do solo impede que as águas provenientes de terrenos de inumação venham à flor da terra contaminadas; também se tem averiguado que a composição do ar dos cemitérios não difere da das cidades adjacentes. Naturalmente, para garantir essa imunidade, impõem-se cautelas de higiene (certa distância das aglomerações de casas, drenagem adequada…) a que se deve conformar qualquer projeto de cemitério.

Ademais pesa em favor do sepultamento um motivo de índole médico-legal: excetuados certos casos de envenenamento, a cremação extingue qualquer vestígio de morte violenta e torna-se impossível um ulterior exame do cadáver; o sepultamento, ao contrário, sempre deixa margem a uma autópsia judiciária.

  • Fonte: Revista Pergunte e Responderemos nº 5:1957 – set/1957.

 

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