Posição da Igreja sobre Giordano Bruno

CARTA DO CARDEAL ANGELO SODANO
 POR OCASIÃO DE UM
CONGRESSO DE ESTUDOS 
SOBRE A PERSONALIDADE DE GIORDANO BRUNO


 

14 de Fevereiro de 2000

Ao Reverendo Reitor da Pontifícia Faculdade
Teológica da Itália Meridional

Com a carta de 18 de Janeiro passado, Vossa Reverência quis gentilmente assinalar ao Santo Padre a iniciativa do Congresso, que essa Faculdade Teológica celebrará nos dias 17-18 de Fevereiro do corrente ano, sobre o tema:  “Giordano Bruno:  para além do mito e das opostas paixões. Uma verificação histórico-teológica“, e ilustrou ainda o sentido que, na óptica do Grande Jubileu, se quer dar a esse Congresso.

Para a Igreja o Ano jubilar constitui uma ocasião privilegiada para reavivar e celebrar a sua fé em Cristo:  à luz da Encarnação, ela tem em vista reflectir com gratidão sobre os inumeráveis frutos de santidade amadurecidos no seu seio, no arco destes dois milénios. Contudo, isto não a dispensa de recordar as muitas incoerências que assinalaram o comportamento dos seus filhos, lançando sombras sobre o anúncio do Evangelho. É por isto que, entre os sinais do Jubileu, o Sumo Pontífice pôs o da  purificação  da  memória,  pedindo a todos  um  acto  de  coragem  e  de  humildade  ao  reconhecer  as  próprias faltas e as de quantos tiveram e têm o nome de cristãos (cf. Incarnationis mysterium, 11).

Alguns importantes simpósios desenvolveram-se nesta direcção – como por exemplo sobre o anti-semitismo, a inquisição e João Hus – que se realizaram com o patrocínio da Santa Sé, para estabelecer no plano histórico o desenvolvimento efectivo dos acontecimentos e discernir aquilo que neles deve ser julgado pouco conforme com o espírito evangélico. Semelhante verificação parece importante quer para pedir perdão a Deus e aos irmãos pelas faltas eventualmente cometidas, quer para orientar a consciência cristã para um futuro mais vigilante na fidelidade a Cristo.
Portanto, Sua Santidade soube com prazer que, precisamente com estes sentimentos, essa Faculdade Teológica quer recordar Giordano Bruno que, no dia  17  de  Fevereiro  de  1600,  foi executado  em  Roma  na Praça “Campo de’ Fiori”, após o veredicto de heresia pronunciado pelo Tribunal da Inquisição Romana.

Este triste episódio da história cristã moderna às vezes foi assumido por algumas correntes culturais como motivo e emblema de uma áspera crítica em relação à Igreja. O estilo de diálogo inaugurado pelo Concílio Vaticano II convida-nos a superar toda a tentação polémica, para reler também este evento com espírito aberto à plena verdade histórica.

Portanto, é para desejar que o mencionado Congresso, partindo dos interesses próprios de uma faculdade de teologia, possa oferecer um contributo significativo às finalidades da avaliação da personalidade e da vicissitude do filósofo de Nola que, como se sabe, recebeu precisamente em Nápoles, no convento de São Domingos Maior, a sua formação e ali fez a sua profissão religiosa na Ordem dos Pregadores.

Na realidade, também com base em actualizadas pesquisas feitas por estudiosos de diversa inspiração, parece aceite que o caminho do seu pensamento, que se desenvolveu no contexto de uma existência sobretudo movimentada e tendo como cenário uma cristandade infelizmente dividida, o tenha levado a opções intelectuais que se revelaram de maneira progressiva, sobre alguns pontos decisivos, inconciliáveis com a doutrina cristã. Compete a uma investigação ulteriormente aprofundada avaliar o efectivo alcance do seu afastamento da fé.

Resta o facto que os membros do Tribunal da Inquisição o processaram com os métodos de coacção então comuns, pronunciando um veredicto que, em conformidade com o direito da época, foi inevitavelmente portador de uma morte atroz. Não nos compete exprimir juízos sobre a consciência de quantos estiveram implicados nesta vicissitude. Quanto emerge historicamente nos dá motivo para pensar que os juízos do pensador estavam animados pelo desejo de servir a verdade e de promover o bem comum, fazendo também o possível para salvar a própria vida. Objectivamente, porém, alguns aspectos daqueles modos de proceder e, em particular, o seu final violento por mãos do poder civil, não podem deixar de constituir hoje para a Igreja – neste como em todos os casos análogos – um motivo de profundo pesar. O Concílio recordou-nos oportunamente que a verdade “não se impõe de outro modo senão pela sua própria força” (Dignitatis humanae, 1). Por isso, ela deve ser testemunhada no absoluto respeito da consciência e da dignidade de cada pessoa.

Confio-lhe, Senhor Reitor, a tarefa de transmitir estes pensamentos aos participantes no mencionado Congresso, aos quais o Santo Padre envia a sua saudação de bênção. Queira o Senhor ajudar a Igreja do terceiro milénio, também através da recordação destes eventos dolorosos, a encarnar sempre melhor o espírito do Evangelho. O anúncio de Cristo, efectuado com fervor de fé mas juntamente com atitudes de sincero e respeitoso diálogo, torna-a cada vez mais como o Concílio a delineou, “o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano” (Lumen gentium, 1).

Com as minhas cordiais saudações.

ANGELO Card. SODANO
Secretário de Estado

( O documento está escrito em português ibérico )

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