Reflexão Patrística – “O teu desejo é a tua oração” (Santo Agostinho de Hipona, +430)

“‘Meu coração grita e geme de dor’ [Salmo 37,9]. Há gemidos ocultos que não são ouvidos pelos homens. Contudo, se o coração está possuído por tão ardente desejo que a ferida interior do homem se manifesta em sons externos, procuramos a causa e dizemos a nós mesmos: Talvez ele tenha razão de gemer; e talvez lhe tenha ocorrido algo. Mas quem pode compreender esses gemidos, senão Aquele a cujos olhos e ouvidos eles se dirigem? Por isso diz: ‘Meu coração grita e geme de dor’, porque os homens, se às vezes ouvem os gemidos de um homem, ouvem frequentemente os gemidos da carne; mas não ouvem o que geme em seu coração.

E quem seria capaz de compreender por que grita? Escuta o que diz: ‘Diante de Vós está todo o meu desejo’ [Salmo 37,10]. Não ‘diante dos homens’, que não podem ver o coração, mas ‘diante de Vós’ está todo o meu desejo. Se, pois, o teu desejo está diante do Pai, Ele que vê o que está oculto, te recompensará.

Teu desejo é a tua oração: se o desejo é contínuo, também a oração é contínua. Não foi em vão que o Apóstolo disse: ‘Orai sem cessar’ [1Tessalonicenses 5,17]. Será preciso ter sempre os joelhos em terra, o corpo prostrado, as mãos levantadas, para que ele nos diga: ‘Orai sem cessar?’ Se é isto que chamamos orar, não creio que possamos fazê-lo sem cessar.

Há outra oração interior e contínua: é o desejo. Ainda que faças qualquer outra coisa, se desejas aquele ‘repouso do sábado eterno’, não cessas de orar. Se não queres cessar de orar, não cesses de desejar.

Se teu desejo é contínuo, a tua voz é contínua. Ficarás calado, se deixares de amar. Quais são os que se calaram? Aqueles de quem foi dito: ‘A maldade se espalhará tanto, que o amor de muitos esfriará’ [Mateus 24,12].

O arrefecimento da caridade é o silêncio do coração; o fervor da caridade é o clamor do coração. Se a tua caridade permanece sempre, clamas sempre; se clamas sempre, desejas sempre; se desejas, tu te recordas do repouso eterno.

‘Diante de Vós está todo o meu desejo’. Se o desejo está diante de Deus, o gemido não estará? Como poderia ser assim, se o gemido é a expressão do desejo?

Por isso o Salmista continua: ‘Meu gemido não Vos é oculto’ [Salmo 37,10]: Não é oculto para Deus, mas é oculto para a multidão dos homens. Ouve-se por vezes um humilde servo de Deus dizer: ‘Meu gemido não Vos é oculto’ e vê-se também esse servo sorrir. Será por que o desejo está morto em seu coração? Se o desejo permanece, também permanece o gemido; este nem sempre chega aos ouvidos dos homens, mas nunca está longe dos ouvidos de Deus” (Comentário ao Salmo 37,13-14; CCL 38,391-392).

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