Reflexão Patrística – “Voz do que clama no deserto” (Santo Agostinho de Hipona, +430)

“A Igreja celebra o nascimento de João como um acontecimento sagrado. Dentre os nossos antepassados, não há nenhum cujo nascimento seja celebrado solenemente. Celebrando o de João, celebramos também o de Cristo: tal fato tem, sem dúvida, uma explicação. E se não a sabemos dar tão bem, como exige a importância desta solenidade, pelo menos meditemos nela mais frutuosa e profundamente:

– João nasce de uma anciã estéril; Cristo nasce de uma jovem virgem.

– O pai de João não acredita que ele possa nascer e fica mudo; Maria acredita, e Cristo é concebido pela fé.

Eis o assunto que quisemos meditar e prometemos tratar. E se não formos capazes de perscrutar toda a profundeza de tão grande mistério, por falta de aptidão ou de tempo, aquele que fala dentro de vós, mesmo em nossa ausência, vos ensinará melhor. Nele pensais com amor filial; a Ele recebestes no coração; Dele vos tornastes templos.

João apareceu, pois, como ponto de encontro entre os dois Testamentos: o Antigo e o Novo. O próprio Senhor o chama de limite quando diz: ‘A Lei e os Profetas até João Batista’ [Lucas 16,16]. Ele representa o Antigo e anuncia o Novo: porque representa o Antigo Testamento, nasce de pais idosos; porque anuncia o Novo Testamento, é declarado Profeta ainda estando nas entranhas da mãe. Na verdade, antes mesmo de nascer, exultou de alegria no ventre materno, à chegada de Maria. Antes de nascer, já é designado; revela-se de quem seria o Precursor, antes de ser visto por Ele. Tudo isto são coisas divinas, que ultrapassam a limitação humana.

Por fim, nasce; recebe o nome; e solta-se a língua do pai. Relacionemos o acontecido com o simbolismo de todos estes fatos: Zacarias emudece e perde a voz até o nascimento de João, o precursor do Senhor; só então recupera a voz. Que significa o silêncio de Zacarias? Não seria o sentido da profecia que, antes da pregação de Cristo, estava, de certo modo, velado, oculto, fechado? Mas com a vinda Daquele a quem elas se referiam, tudo se abre e torna-se claro. O fato de Zacarias recuperar a voz no nascimento de João tem o mesmo significado que o rasgar-se o véu do Templo, quando Cristo morreu na cruz. Se João se anunciasse a si mesmo, Zacarias não abriria a boca. Solta-se a língua, porque nasce aquele que é a voz. Com efeito, quando João já anunciava o Senhor, perguntaram-lhe: ‘Quem és tu?’ [João 1,19]; e ele respondeu: ‘Eu sou a voz do que clama no deserto’ [João 1,23].

João é a voz; porém, o Senhor no princípio era a Palavra [cf. João 1,1]. João é a voz no tempo; Cristo é, desde o princípio, a Palavra eterna” (Sermão 293,1-3; PL 38,1327-1328).

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